Uma Revolução Silenciosa

Robôs surgirão em todas as áreas da nossa vida --e daremos nossas responsabilidades a eles num piscar de olhos

Liu Cixin
Renaud Vigourt/The New York Times

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Embora o primeiro acidente fatal envolvendo um carro autônomo tenha ocorrido em julho de 2016, veículos sem motorista foram adotados por todo o mundo.

Em 2016, carros autônomos chegaram às ruas em vários países, muitos dos quais reescreveram suas leis para acomodar a nova tecnologia. Como escritor de ficção científica, é meu dever avisar a humanidade que a revolução robótica começou — mesmo que ninguém tenha notado ainda.

Quando alguns carros autônomos apareceram nas estradas para serem testados nos últimos anos, não pensamos neles como robôs porque não têm a forma humanoide que filmes de ficção científica nos ensinaram a esperar.

Em 2016, eles foram amplamente adotados: ônibus nos Emirados Árabes Unidos e na Holanda, táxis em Cingapura e veículos particulares nos Estados Unidos e na China. Houve um acidente fatal na Flórida, envolvendo um desses carros, o que causou algumas preocupações, mas não afetou significativamente nossa aceitação dessa tecnologia.

Em vez de nos armarmos contra essa presença alienígena, como sugeriram temerosos alguns dos meus colegas escritores de ficção científica, entramos neles maravilhados quando param no meio-fio.

Os veículos sem condutor, alguns dos quais sem volante ou pedais, enfrentaram o tráfego e brecam em placas de "Pare", levando-nos suavemente a nossos destinos. Nós nos esparramamos confortavelmente, às vezes fazendo selfies.

Ramin Rahimian/The New York Times Ramin Rahimian/The New York Times

O caminhão autônomo da companhia de tecnologia Otto, de propriedade da Uber, que em outubro completou sua primeira entrega comercial do mundo -- duas mil caixas de cerveja -- no Colorado (EUA)

O aprendizado de máquina tem sido uma ferramenta importante para as empresas de carros autônomos no desenvolvimento de seus sistemas. Em vez de seguir rigidamente a programação como um aplicativo de celular, um sistema de inteligência artificial (IA) pode tentar aprender uma tarefa sozinho usando técnicas emprestadas da aprendizagem humana, como o reconhecimento de padrões e a tentativa e erro, e pode usar hardware modelado na arquitetura de um cérebro humano.

Atualmente, as responsabilidades das IAs estão basicamente limitadas a tarefas como traduzir textos, ajudar em diagnósticos médicos e escrever artigos simples para empresas de mídia. Mas podemos esperar ver um progresso inimaginável nesse campo no futuro — e a disseminação do carro autônomo vai acelerar esse processo, conforme empresas de tecnologia e automobilísticas investem cada vez mais recursos no seu desenvolvimento.

Vamos tentar imaginar esse futuro. Como durante todas as outras revoluções tecnológicas, os robôs irão primeiramente transformar nossa economia. As pessoas que ganham a vida dirigindo vão perder seus empregos — cerca de três milhões só nos EUA. O comércio eletrônico pode experimentar um maior crescimento devido à automação, e a posse de carros provavelmente irá se tornar praticamente obsoleta quando o compartilhamento e os sistemas de transporte público forem desenvolvidos.

No final, os carros robóticos poderão ser integrados a outros sistemas de transporte. Digamos que você viva na cidade de Nova York e queira ir para a província de Henan, na China: você vai digitar o endereço em um aplicativo, um carro irá levá-lo até seu avião no aeroporto e, depois de pousar, outro irá levá-lo diretamente ao seu destino.

Os robôs começarão a penetrar outras áreas de nossas vidas — servindo como empregados ou garçons, por exemplo — quando os investimentos em transporte robótico melhorarem seus feitos em áreas tais como detecção e modelagem ambiental, solução de problemas hipercomplexos e aplicativos de lógica complexa. Com cada avanço, o uso de robôs movidos a IA vai se expandir para outros campos: saúde, policiamento, defesa nacional, educação.

Haverá escândalos quando as coisas derem errado, além de movimentos de reação dos novos luditas, mas não acho que protestaremos muito. Os sistemas de IA que dirigem nossos carros irão nos ensinar a confiar na inteligência de máquina que supera a humana — os acidentes vão se tornar muito raros, por exemplo — e quando houver a oportunidade de delegar um trabalho a um robô, placidamente o faremos sem que isso seja algo espantoso.

Em todas as revoluções tecnológicas anteriores, as pessoas que perderam o emprego basicamente migraram para um novo, mas isso será menos provável quando os robôs assumirem. A inteligência artificial que pode aprender com a experiência irá substituir muitos contadores, advogados, banqueiros, corretores de seguros, médicos, pesquisadores científicos e alguns profissionais criativos. Inteligência e formação superior já não vão significar estabilidade no emprego.

Jeff Swensen/The New York Times Jeff Swensen/The New York Times

O sistema sem motorista da Uber andando pelas ruas de Pittsburgh

Gradualmente, a era da IA vai transformar a essência da cultura humana. Quando deixarmos de ser mais inteligentes que nossas máquinas, quando elas puderem facilmente nos superar dando o tipo de salto intuitivo na pesquisa e em outras áreas que atualmente associamos aos gênios, uma espécie de desamparo provavelmente nos tomará, e a ideia do trabalho em si pode deixar de ter um significado.

Quando a IA assumir, os postos de trabalho restantes podem diminuir para uma fração do que eram, empregando talvez 10% ou menos do total da população. Esses podem ser trabalhos altamente criativos ou complexos, que os robôs não conseguem fazer, tais como gerenciamento, direcionamento de pesquisa científica ou cuidados e assistência a crianças.

Nesse cenário distópico, conforme o número de desempregados for aumentando em todo o mundo, nossas sociedades afundam em uma turbulência prolongada. O mundo poderia ser tragado por intermináveis conflitos entre aqueles que controlam a IA e o restante. Os 10% de tecnocratas poderiam acabar vivendo em um condomínio fechado vigiado por guardas robóticos armados.

Há um segundo cenário, utópico, onde antecipamos essas mudanças e chegamos a soluções de antemão. Aqueles no poder político planejariam uma transição mais suave, talvez usando IA para ajudá-los a antecipar e modular os problemas. No final, quase todos nós viveríamos da seguridade social.

Como vamos usar nosso tempo, é difícil prever. "Aquele que não trabalha, não comerá" sempre foi a base das civilizações através dos tempos, mas isso vai ter desaparecido. A história mostra que aqueles que nunca tiveram de trabalhar — digamos, os nobres — muitas vezes passam seu tempo entretendo e desenvolvendo seus talentos artísticos e esportivos, ao mesmo tempo em que respeitam escrupulosamente os rituais elaborados de vestimenta e boas maneiras.

Nesse futuro, a criatividade é altamente valorizada. Nós desenvolveremos maquiagem, penteados e roupas cada vez mais fantásticos. O trabalho de antigamente parecerá uma barbaridade.

Mas os nobres governaram nações; na época da IA, serão as máquinas que pensarão. Porque, ao longo das décadas, nós gradualmente fomos abrindo mão de nossa autonomia, passo a passo, nos permitindo ser transformados em animais de estimação dóceis, fabulosamente mimados pela inteligência artificial.

Como a IA nos leva de um lugar para outro — visitas a familiares, galerias de arte e eventos musicais — vamos olhar pela janela tão inconscientes de seus planos para nós quanto um poodle a caminho de um banho.

The New York Times The New York Times

O escritor de ficção científica Liu Cixin recebeu nove vezes o Prêmio Galaxy, a maior honraria chinesa para obras de ficção científica.

Ele é o primeiro escritor chinês a receber o Prêmio Hugo de Melhor Romance, que veio por seu best-seller internacional "The Three-Body Problem"; uma adaptação em 3D para o cinema será lançada em 2017.

Outros artigos

Curtiu? Compartilhe.

Topo