O futuro da privacidade

Os segredos mais bem guardados do mundo, de cidadãos privados e instituições do Estado, um dia serão revelados

William Gibson
Bryan R. Smith/The New York Times

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

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Nunca fui capaz classificar os conceitos de privacidade, de história e de criptografia de forma satisfatória, embora continue achando que eu deveria. Cada um desses conceitos tem a ver com informação; cada um pode ser considerado uma preocupação do público e do privado; cada um envolve aspectos da sociedade e, talvez particularmente, da sociedade digital.

Mas a experiência me ensinou que tudo o que espero fazer com esses três conceitos é demonstrar os problemas que considerá-los em um todo pode causar.

A privacidade me confunde, indo além da minha compreensão mais simples —que basicamente é a preferência do indivíduo, em diferentes graus, de que suas informações pessoais não sejam livremente disponibilizadas a outros. Eu mesmo desejo privacidade, e entendo por que outros indivíduos a queiram. Mas quando a entidade que deseja privacidade é um Estado, uma corporação ou alguma outra instituição, meu entendimento do assunto se torna confuso.

Jewel Samad/AFP  Jewel Samad/AFP

Pode ser verdade que Estados e corporações muitas vezes desejam privacidade, mas frequentemente querem que eu tenha menos. O que significa, em uma democracia declarada, que o Estado esconda coisas de seus cidadãos? A ideia do Estado secreto parece antiética para a democracia, já que seus cidadãos, os eleitores, não podem saber o que seu governo está fazendo.

Desse modo, existem as inúmeras teorias da conspiração de hoje, muitas delas supondo que temos muito menos privacidade do que na verdade temos. Os defensores do Estado secreto, desejando nos consolar, às vezes elogiam uma transparência forçada: se você não tem nada a esconder e confia em seu governo, o que possivelmente pode temer? Exceto que se pode facilmente perguntar: se não há nada a esconder, o que há realmente além da panóptica atenção de um Estado que guarda segredos?

Até mesmo essa simples consideração de privacidade me confunde. Será que a privacidade individual e a privacidade do Estado são a mesma coisa? Elas são conceitualmente antiéticas? Há alguma vantagem para o Estado em permitir que seus cidadãos guardem segredos? Os Estados que querem saber os segredos dos cidadãos são notoriamente conhecidos por torturar o próprio povo no processo de incentivá-los a revelar o que sabem. Sabemos disso historicamente, e sabemos que ainda é verdade, embora isso só nos afete pessoalmente dependendo em grande parte de onde vivemos.

Tenho noções de história, mais do que tenho sobre privacidade, e é aqui que minha confusão aumenta exponencialmente. Acredito que nossa capacidade de criar a história, de transcender gerações através de nossos extraordinários equivalentes a próteses de memória, seja nossa característica mais notável. A menos que nos esqueçamos de algo, que o percamos na história, ainda temos de encontrar outra espécie capaz de fazer a mesma coisa.

Será que o FBI ou outras agências deveriam ser capazes de desbloquear iPhones de terroristas? Se são capazes desse feito, isso os torna capazes de desbloquear o seu ou meu celular. Eu deveria ser capaz de criptografar documentos de tal forma que o FBI não possa descriptografá-los? Se eu puder, os terroristas também podem. (Não que eu necessariamente aceite o terrorismo como o derradeiro ângulo de tais argumentos, mas ele se tornou o mais frequentemente empregado.)

Kena Betancur/AFP/Getty Images Kena Betancur/AFP/Getty Images

Em curto prazo, o período de uma vida, muitos defenderam a privacidade e, portanto, a falta de transparência. Mas a história, em longo prazo, é a transparência; é a ausência de segredos. Então, somos bastante impiedosos, enquanto historiadores, quando se trata dos segredos do passado, os segredos dos mortos. Nós os conhecemos com uma intimidade que seria impossível em sua época. Seria impensável nos afastarmos de seus segredos, permitir a privacidade ao homem do gelo ou não vasculhar sob o betume para recuperar as tatuagens de uma sacerdotisa egípcia.

E aqui, para completar meu emaranhado de confusão, está a criptografia, sem dúvida agravada pela minha incapacidade de compreender matematicamente seu conceito. Presumo (talvez incorretamente) que o futuro dará um jeito na mais sofisticada tecnologia de criptografia atual. Imagino que os segredos mais bem guardados do mundo —aqueles de cidadãos privados e instituições do Estado— um dia serão revelados em qualquer que seja o dispositivo usado por nossos descendentes para acessar dados.

Cientes dessa informação, ao nos examinar, nossos antepassados nos verão de um modo diferente do que hoje vemos a nós mesmos, assim como nós agora conhecemos os vitorianos de maneira bem diferente da qual eles se viam. O passado, nosso próprio passado, do qual nossos descendentes nos verão emergindo, não será o passado do qual nós agora nos vemos surgir, mas uma reinterpretação dele, com base na informação disponível posteriormente, na maior transparência e em menos segredos.

Se nossa história, que continuamente se amplia, cada vez mais transparente, é a soma total do que somos enquanto espécie, então nossa espécie fica mais pobre a cada segredo fielmente guardado.

Qualquer criptografia permanentemente inquebrável parece ir contra isso.

Eu ainda prefiro manter certos segredos, como suponho que a maioria quer. Então, talvez esse desejo seja tão parte de nós, como espécie, quanto nossa necessidade de construir palácios da memória.

Michael O?Shea Michael O?Shea

William Gibson é escritor e ensaísta. Seus livros incluem "The Peripheral", "Zero History" e "Neuromancer"

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