O que você faria para mudar o mundo? Esta é uma pergunta que pode ser respondida através de diversas vertentes.
De maneira leve, digo: "Se não fui eu que criei o mundo, como posso mudá-lo?".
De maneira filosófica, respondo: "A impermanência é a característica principal do planeta Terra. Independentemente de nossa vontade, ele mudará sempre".
De maneira realista, digo: "Ninguém, até hoje, conseguiu mudar o todo, apenas a parte; quero dizer que consigo, com muito esforço, mudar apenas a mim mesma e, assim, tento atingir o mundo".
De maneira sacerdotal, que é a que me cabe, respondo a essa pergunta dizendo: "Eu procuro ser digna, para nunca perder a capacidade de me indignar com as mazelas humanas".
Aproveito a oportunidade que aqui me oferecem para transmitir, um pouco, a sabedoria expressa no idioma do povo iorubá, de quem os brasileiros herdaram muito da arte de viver.
A palavra "dignidade" no referido idioma é "olá", palavra que, quando muda a acentuação --"olà"--, é traduzida como fortuna, riqueza. A sabedoria africana nos ensina, portanto, que só deveriam ser possuidores de riqueza aqueles que tivessem dignidade para fazer com que os bens materiais fossem distribuídos com justiça.
Tenho 92 anos de idade e há pelo menos uns 80, quando comecei a prestar atenção nas conversas dos adultos, escuto a frase: “Precisamos fazer algo para mudar o mundo”. Tão envolvida fiquei com aquela frase que me senti responsável por fazer algo que diminuísse, pelo menos um pouco, tamanha preocupação, que roubava tempo e energia de meus tios (que me criaram) e dos amigos que frequentavam nossa residência.
Diante de um problema com proporções grandiosas, demorei anos para tomar a primeira atitude: criei, por fim, o Clube dos Amigos. O objetivo era reunir amigos, todos vivenciando a juventude, para identificar e buscar soluções para os problemas da cidade de Salvador (Bahia).
As reuniões aconteciam, a frequência era maravilhosa, mas, usando um jargão relativamente atual, literal e metaforicamente, “tudo terminava em pizza”. Foi meu primeiro “balde de água fria”. Disse para mim mesma que não desistiria. Acreditei que era apenas aquele grupo que não se importava com os problemas em comum.
Acredito que minha preocupação foi tanta que o universo me levou a ser uma ialorixá, uma líder religiosa do candomblé, e durante muitos anos tentei responder a essa pergunta: “O que posso fazer para mudar o mundo?”. Experimentei todos os sentimentos possíveis a um ser humano: angústia, tristeza, raiva, medo e, principalmente, impotência.
Até que um dia, me senti humilhada diante dessa impotência. O sentimento de humilhação me conduziu a uma reflexão profunda: quem sou eu para dizer que o mundo precisa ser mudado? Logo eu, que na maioria das vezes nem consigo identificar o que é preciso modificar em mim.
Extremamente humilhada, parecia que o chão se abria para que eu entrasse em um poço profundo. Sabia que corria um grande risco de ter uma depressão física, emocional e espiritual. Foi a consciência de que muitas pessoas tinham em mim um braço forte para levantá-las que me deu a coragem necessária para descer ao fundo do poço e de lá retirar a riqueza que minha essência divina tanto ansiava.
O fundo do poço, com sua terra úmida, fez com que minha essência divina relembrasse que ela estava vinculada ao planeta Terra, que ela estava vinculada a um corpo limitado feito de matéria densa, feito de lama, feito de terra úmida.
Depois de se chegar ao fundo do poço, só resta uma alternativa: retornar, transformando humilhação em humildade. Humilhação, humildade, humano, humanidade. Desci de meu pedestal de senhora capaz de mudar o mundo, para ser apenas um ser humano que cumpre a cada dia, ou melhor, a cada instante aquilo que o mundo lhe manda fazer.
Dou, então, a seguinte resposta para a pergunta 'o que você faria para mudar o mundo?': viveria, e busco viver, minha vida como um rio que flui, esforçando-me bastante para não ser obstáculo no fluir da vida do outro
Sou Maria Stella de Azevedo Santos; sou Mãe Stella de Oxossi; sou Odé Kayodê --o Caçador que traz Alegria. Como Odé Kayodê, dou a seguinte resposta: pegaria uma borracha, apagaria o que está aí e pediria às crianças, não de idade, e sim de sentimentos, que fizessem um novo desenho.
Eu tenho certeza que elas desenhariam uma família, com todos os membros de mãos dadas. União, unidade, humanidade.
* Mãe Stella de Oxossi, 92, ialorixá do candomblé.