6 meses sem celular

Orelhões quebrados, exclusão social e jejum do WhatsApp: repórter encara perrengues da rotina sem smartphone

Marcos Candido Do UOL, em São Paulo

Meu telefone foi roubado pela segunda vez em menos de um ano, em maio passado. Decidi viver sem ele, estava de saco cheio de bancar essa conta. Foram seis meses sem reclamar do 3G que não pegava no metrô, sem perguntar a senha do wi-fi ao garçom, nem pedir táxi no app

Tenho 23 anos. Quando nasci, o celular já estava meio por aí. Mas pude brincar sem que minha mãe me filmasse e postasse tudo no Instagram. Também não existia a vontade incontrolável de tirá-lo do bolso para checar o Facebook e ninguém mandava nudes ou "Bom dia, grupo!" no WhatsApp. A tela não quebrava quando o aparelho caía no chão – era mais fácil o piso rachar com aqueles tijolões. 

Ao abrir mão do smartphone, regredi patamares básicos da vida em sociedade. Ficava sem saber as horas e não podia nem enviar um torpedo avisando que atrasaria.

Coloquei minha vida moderna em jogo, mas tirei algumas lições.

Sair sem celular é ter a sensação de que o gás ficou ligado

Sabe aquela aflição de sair de casa achando que deixou a porta destrancada? Ou o gás ligado? Sofri essa angústia nas primeiras semanas sem celular. Quando percebia o bolso da calça levinho, era um frio na barriga... 

Na minha cabeça, o chefe convocaria para uma reunião decisiva e meus amigos deixariam de me convidar para uma festa maneira. Em segundos, eu poderia estar alheio a uma hecatombe nuclear.

Eu era desses que julgava quem demorasse para responder mensagens. Sério, como alguém tem coragem de visualizar e não responder?

Com o aparelho, tinha o que fazer enquanto esperava o elevador. No almoço, curtia fotos entre uma garfada e outra. Mexia no celular enquanto o garçom se aproximava com a conta. Rolava a timeline entre os nanosegundos que levam para a maquininha registrar o pagamento.

O celular roubava demais meu tempo.

"Não tenho celular. Serve o fixo?"

Fui renovar meu cadastro no banco. A atendente me olhou desconfiada quando eu disse que não tinha celular. "Serve o de casa?", perguntei.

Pela reação negativa dela e de todas as pessoas sempre que eu oferecia meu número fixo, concluí que só faz isso hoje em dia quem é fugitivo da Justiça.

Ninguém me ligou no telefone de casa durante os seis meses em que fiquei sem celular. Nem as pessoas que gostam de mim.

Para falar a verdade, atendi uma ligação na minha casa. Para minha surpresa, a do banco.

"Até quem está na cadeia tem celular"

A sociedade rechaça quem não tem celular. É sério.

Logo no primeiro mês, em uma mesa de bar, ouvi de um amigo: "Cara, até quem está na cadeia tem celular". Fato.

Não ter o smartphone sempre à mão, como todo mundo, era como uma demonstração às pessoas de que eu não gostava mais delas. Ou das coisas em comum que tínhamos. Parentes e amigos ficavam chateados.

Minha irmã, uma das maiores devotas do WhatsApp que conheço, ficou estarrecida com a situação. Ela chegava em casa com catálogos de ofertas. "Olha esse aparelho, que bonitão! Não sei como você consegue ficar sem celular… Logo você, um jornalista!".

Fui entrevistar o rapper Emicida para uma reportagem. Cheguei ao escritório dele apenas com bloquinho e caneta na mão e me senti como naqueles filmes de detetive. Ele me olhou e, antes mesmo que eu o cumprimentasse, cravou: "Então, você é um cara analógico!".

Celulares alheios operavam por mim

Oferecer o número do fixo e chamar o táxi na braçada me colocava em um grupo que corre risco de extinção. Era por isso que eu, uma pessoa totalmente introvertida e quieta, ganhava atenção em qualquer círculo. "Não tem celular? Como assim? Como você fica sabendo das coisas?", me perguntavam.

Eu estava vivendo em uma vidinha analógica, mas os celulares alheios continuavam operando ao meu favor. 

Virei piada entre meus colegas quando minha mãe foi adicionada ao grupo de WhatsApp do trabalho. Foi como se ela me levasse na porta da escola aos 16 anos e me chamasse de 'bebê' na frente da turma

Para passar algum recado, meus familiares enviavam mensagens às pessoas próximas. Exemplo: meus pais mandavam WhatsApp para minha namorada quando eu não estava em casa. Já minha namorada enviava torpedos para meus pais. Minha irmã mandava mensagem (com ofertas de celular) para minha namorada, meus pais e até para minhas tias. Vai que elas me convenciam...

Por que é tão difícil encontrar relógios de rua?

Tem noção do que é, hoje em dia, marcar um encontro, a pessoa atrasar meia hora e você não ter como saber o que aconteceu? Sei bem como é isso. 

Para mim, os atrasos alheios significavam que um acidente fatal havia acontecido. O metrô tinha quebrado. A pessoa simplesmente desencanou de me ver no meio do caminho. Ou havia sido sequestrada por uma gangue internacional.

Minha percepção de tempo mudou após quatro meses sem celular. Até então, nunca havia reparado como os relógios de parede e de rua são difíceis de achar. Então perguntava as horas para alguém na rua. Ou simplesmente esperava o tempo passar, até que a pessoa com que eu havia marcado o encontro aparecesse.

Passei a usar termos genéricos para calcular o tempo. Em vez de reclamar: 'Pô, te esperei meia hora!', aderi ao 'Pô, te esperei cara!'

A alegria de achar o orelhão (e ligar a cobrar)

Fui encontrar minha namorada e ela atrasou. Procurei um orelhão e nunca imaginei que gastaria tanto a sola do meu tênis atrás de um.

Em São Paulo há de 36.344 orelhões disponíveis, segundo a Anatel. Pode parecer muito, mas a cidade tem 1.521,11 km². Dá para andar vários quarteirões sem encontrar um. Mais sorte ainda é achar o que esteja funcionando.

Quando encontrei, liguei a cobrar para ela. Não sou cara de pau: só não achei cartões telefônicos à venda, pois nem sabia onde vendia...

Na minha saga por um telefone público, percebi que não era o único a manusear esse meio arqueológico de comunicação. Uma moça, mais perdida do que eu, perguntou: "Você sabe como eu disco interurbano nisso? É diferente do celular?".

Disque 134 para acordar e a saga por táxi sem app

Para levantar da cama sem contar com o despertador do celular, programei meu telefone fixo discando o número 134. Esse serviço me salvou algumas vezes de chegar atrasado aos compromissos e angustiar quem estivesse me esperando e não tinha como falar comigo.

Quanto tempo você costuma levar para pegar um táxi no aplicativo? Eu demorava "um tempão" em avenidas. Em bairros, era mais provável que um navio passasse do que um táxi.

Por outro lado, percebi que me tornei um alvo mais difícil da publicidade em meu período analógico. Você pode até não suspeitar, mas os apps analisam os locais onde você vai, mora e trabalha para sugerir serviços e produtos.

Basta você comentar ou buscar nas redes sociais que precisa comprar uma geladeira para ver a sua timeline "invadida" por novos modelo frost free, que dão gelo na porta. Tanto o Instagram, quanto o Facebook tinham dificuldade em rastrear meu comportamento. Como eu postava menos minha rotina, os anúncios que apresentados ficaram confusos, pouco assertivos.

Spoiler: eles me contaram como é voltar a ter celular

"Agora só uso em modo avião"

"Quando dizia que não tinha celular, me achavam esquisito. Então mentia que estava quebrado. O difícil era ter que falar com estranhos para pedir comida, fiquei mal acostumado com os apps. Por causa do trabalho, voltei a usar smartphone após um ano. É terrível! Só uso em modo avião para não receber ligações" (Ronald Rios, 29, roteirista)

"Aprendi a procrastinar menos"

"No começo, parecia que tinha perdido um rim. Depois acabei me acostumando a ficar sem celular. Mas por não conseguir falar com as pessoas na hora, perdia oportunidades. Hoje só se fala por chat e ninguém liga mais só para conversar. Ficar três meses sem o aparelho me tornou uma pessoa nova: procrastino menos" (Bárbara Correia, 22, universitária)

Eu, meu novo celular e minhas velhas revoltas digitais

Acredite: após seis meses de jejum, passei a achar os celulares incríveis. Quando tirei meu novo aparelho da caixa, envolto em plástico bolha, juro que pensei que demoraria para retornar à rotina que ele impõe. Em poucas horas, porém, me senti de volta ao mundo mágico de rolar a timeline. Enviei áudios, recebi áudios, baixei games novos.

Também vi um mito cair: o de que não ter celular é sinônimo de menos ansiedade. Tinha ouvido vários relatos de como se desapegar do smarthphone pode nos desacelerar e nos tornar menos preocupados. Não é mentira que ficar sem o aparelho me ajudou a refrescar um pouco a memória. Mas houve momentos angustiantes, sim!

Abracei, mais uma vez, as pequenas revoltas que o fácil acesso ao mundo digital nos causa. Sério: por que visualizar a mensagem se não vai responder?!

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