Dieta diversificada

A França se torna o primeiro país a proibir o desperdício de alimentos

Dan Barber
Jim Wilson/The New York Times

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Cristiana Couceiro via The New York Times Cristiana Couceiro via The New York Times

Nós de fato não temos de comer o milho do campo, mais usado para ração animal, o que significa que não deveríamos plantá-lo para começo de conversa.

Pouco tempo atrás, antes de embarcar em um voo transatlântico, ouvi uma mulher dizer à amiga que ela havia trazido sua própria garrafa de água, porque não gostava de jogar fora todas as garrafas plásticas dadas nos aviões. Poucos minutos depois ela falava ao telefone com outra amiga, explicando que estava a caminho da Europa para passar o fim de semana fazendo compras e relaxando.

O que me fez pensar no desperdício de alimentos.

Aqueles que protestam contra o desperdício de alimentos gostam de criticar os supermercados por descartar as frutas "feias" e os legumes disformes. (Sei disso porque sou um deles.) Questionamos a curta validade dos produtos lácteos e pregamos contra os restos de comida deixados no prato. Essas atrocidades foram destacadas em documentários, revelações jornalísticas e talk shows noturnos. Tudo isso já gerou iniciativas de supermercados, além de legislação e programas de recuperação de comida ao redor do mundo. A Dinamarca abriu sua primeira loja de produtos alimentares excedentes no começo de 2016, e um movimento de base recentemente forçou a França a se tornar a primeira nação no mundo a proibir o desperdício de alimentos nos supermercados.

Essas campanhas têm boas intenções e produzem resultados reais, mas você poderia dizer que equivalem um pouco a não jogar garrafas plásticas fora ao mesmo tempo em que queima sete horas de combustível de aviação: ações bem-intencionadas que, no grande esquema das coisas, não são maiores que um montinho de feijão.

Seria melhor comer mais feijão. Em vez disso, os americanos comem —na verdade plantam e colhem— cerca de 45 milhões de hectares de milho. Apenas o estado de Iowa planta milho em mais da metade de suas terras de cultivo. Não comem a maior parte disso. Ele é usado para produzir plásticos ou adoçantes, acaba enchendo os tanques de gasolina ou alimentando criações de animais (o que significa que comem uma parte dele, mas só se comem carne). Não faria mais sentido preparar refeições com todo esse milho?

Cristiana Couceiro via The New York Times Cristiana Couceiro via The New York Times

Eu tentei. O problema, logicamente, é que esse tipo de milho não é gostoso; tem muito amido e pouco sabor, não tem nada a ver com o milho doce que os americanos colhem todos os verões. Nós de fato não temos que comer esse tipo de milho, o que significa que não deveríamos plantá-lo para começo de conversa. Na verdade, podemos dizer o mesmo em relação a muitas culturas do mundo: 36% das calorias das colheitas do planeta são dedicados à alimentação pecuária, de acordo com um estudo de 2013.

E se usássemos esses hectares para plantar feijões, ou qualquer uma das inúmeras culturas leguminosas que ajudam a manter o solo fértil e saudável? E se a próxima safra plantada fosse de trigo ou cevada, para tentar eliminar as ervas daninhas, e espécies do gênero Brassica, como repolho ou couve-flor, para quebrar ciclos de pragas? Mais "ses": E se depois das Brassicas tivéssemos uma lavoura não comestível, de cobertura, como o trevo, que iria manter o solo bem coberto e reabastecê-lo de nutrientes como carbono?

E se, ao invés de levar montanhas de milho do campo para nossas vacas, trouxemos essas vacas para o campo para que pastassem o trevo? (Como um agricultor me disse, "trevo é como combustível de foguete para os ruminantes".) E se adaptássemos essa rotatividade de região para região (e de país para país), com culturas substitutas que melhor se adaptam a microclimas específicos?

O resultado não seria menos comida, apenas menos milho — ou qualquer monocultura mundial. (E menos carne, o que não é nada mal.) Nesse processo, utilizaríamos esses hectares de uma forma muito mais eficiente, alimentando mais pessoas. Para não mencionar —ou melhor, para mencionar e também para celebrar— que teríamos jantares infinitamente mais deliciosos.

Jake Naughton for The New York Times Jake Naughton for The New York Times

Cerca de um terço de todos os alimentos produzidos globalmente para consumo humano é desperdiçado, afirma a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Aqui, os alimentos que sobram nas escolas públicas de Nova York serão levados a campos de compostagem

Há muitos "ses". Mas mesmo assim todos estão dentro das possibilidades se começarmos a exigir uma diversidade real em nossas dietas. Nenhum agricultor vai plantar uma colheita que não tem mercado, é por isso que devemos pensar em combater o desperdício de alimentos de forma significativa e sistêmica, incentivando a mudança através da culinária.

Essa não é uma ideia nova. É o que camponeses que cozinham e agricultores fazem há milhares de anos. Suas culturas alimentares —francesa, chinesa, indiana, norte africana, mas também as muitas cozinhas regionais dentro de cada uma dessas regiões— foram fundadas sobre a diversidade e os muitos recursos do campo. E eram apoiadas pela criatividade e pela técnica na cozinha, que utilizava "sobras" (seja em forma de culturas pouco desejadas ou cortes de carne de segunda) sem nunca chamá-las de sobras, aproveitando-se do que a terra pode prontamente fornecer.

Isso é algo que está faltando na maioria dos Estados Unidos —e, cada vez mais, no resto do mundo— e que pode ser o motivo pelo qual nossa atual conversa sobre desperdício de alimentos foge do ponto. Para combater o problema aparentemente insuperável de desperdício de alimentos, o que realmente precisamos é repensar como cultivar e consumir alimentos, a partir do solo.

Pouco tempo atrás, ouvi outra conversa. Dessa vez estava em Des Moines, Iowa, em um novo restaurante dedicado a carnes curadas e queijos envelhecidos. Escutei dois jovens empreendedores falando sobre seus planos para o futuro. Um estava prestes a abrir uma microcervejaria usando grãos locais. Perguntei-lhe onde encontraria esses grãos em um mar de milho. Ele me disse que conhecia alguns produtores de milho que iriam plantar cevada e centeio, contanto que o mercado estivesse garantido.

O outro jovem era aspirante a padeiro. Seu plano era utilizar parte da cevada e do centeio na sua cozinha, incentivo ainda mais o agricultor. Ele também planejava usar os grãos descartados pela cervejaria —o mosto— em seus produtos. Quando pensei que sua conexão não poderia ser mais simbiótica, fiquei sabendo que o cervejeiro planejava fazer uma cerveja utilizando o pão que sobrasse do padeiro.

E lá estava, bem no meio de Iowa, um sistema governado pela diversidade e maximizado pela eficiência: um plano básico para o futuro da comida.

Mark Ostow Mark Ostow

Dan Barber é chef e sócio-proprietário dos restaurantes Blue Hill e Blue Hill at Stone Barns em Nova York e autor de "The Third Plate: Field Notes on the Future of Food”. Em 2015, lançou o wastED, restaurante pop-up dedicado à reutilização e ao combate do desperdício de alimentos

 

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