Torcida invisível

Torcedores LGBTs se escondem e o discurso de ódio disseminado nas eleições só piora a sensação de insegurança

Karla Torralba Do UOL, em São Paulo
REUTERS/Ueslei Marcelino

Eles tiveram que aprender: homossexualidade, no ambiente de estádio, é pejorativo. É o grito de “bicha” quando o goleiro rival vai cobrar um tiro de meta. É chamar de viado o adversário quando quer ofender. Tudo era filtrado pelos torcedores homossexuais em nome do amor ao time do coração. Mas isso se agravou no período eleitoral conturbado que o Brasil vive atualmente. 

“Ô bicharada, toma cuidado, o Bolsonaro vai matar viado”.

Os cânticos ecoados por torcidas dentro e fora de estádios nos últimos meses aumentaram o medo de torcedores LGBTs de frequentar o ambiente do futebol. A sensação de insegurança aumentou com os discursos de ódio contra minorias. 

O relato abaixo é de Bruno, 30 anos, torcedor palmeirense e gay. O sobrenome não foi publicado para preservá-lo.

Nunca serei eu mesmo no estádio

Eu vou a todos os jogos do Palmeiras, principalmente Libertadores. É como se fosse uma família torcendo pela mesma coisa e essa coisa é o Palmeiras Não tem homem, mulher, gay... Você se sente parte de uma família.

Ali todo mundo é igual, palmeirense mesmo. Mas, na quarta-feira do jogo contra o Colo-Colo [pelas quartas de final do torneio], a ficha caiu. Eu estava sozinho. Quando não consigo companhia para assistir aos jogos, vou sozinho mesmo. Sento cada dia em um lugar. É onde tem vaga e onde é menos caro. Nesse dia, passei no banheiro antes de ir para a arquibancada e foi aí que ouvi um grupo de torcedores gritando: "É Bolsonaro! Bolsomito!".

Eu não acreditei no que estava ouvindo. Fiz uma cara feia e com certeza alguém viu. Voltei para o meu lugar muito bravo, com uma sensação estranha.  Senti um clima ruim, pesado. Como pode a gente gostar da mesma coisa, que é o Palmeiras, e apoiar ideias tão tortas do candidato. É algo que me dá medo.

Nesse período eleitoral, em que o Brasil está mais polarizado do que nunca, eu penso que nunca serei eu mesmo dentro de um estádio de futebol. Antes, eu já pensava assim. Agora é ainda pior.

Alex Livesey/Getty Images Alex Livesey/Getty Images

Medo até de gritar gol

Uma vez, um torcedor gritou pedindo para outro tirar a camisa que estava usando por ser preta. Só por ser preta e remeter ao Corinthians. Imagina se alguém percebe que sou gay ali? É difícil falar isso, mas tenho sorte por não ser tão afeminado. Se eu fosse, teria medo até de gritar gol.

Uma outra vez, estava em um ônibus passando próximo ao Pacaembu e entrou um grupo de torcedores do Corinthians. Dentro do veículo estavam dois amigos. Um era gay e dava para perceber no jeito de falar. Os torcedores foram chegando perto e falaram: "Fala direito, rapaz". Tinha uma mulher passando na rua e continuaram: "É daquilo que você tem que gostar. Não tem que falar, fica quietinho".

Eu senti mais ou menos isso quando ouvi as pessoas gritando o nome do candidato no estádio no jogo contra o Colo-Colo.

Michael Regan/Getty Images Michael Regan/Getty Images

Se levasse namorado ao estádio, não demonstraria carinho

Nunca levei um namorado ao estádio, mas, se levasse, eu não ia demonstrar carinho. Beijo, abraço, nem pensar. No máximo um carinho na perna e olha lá. Se eu vejo um homem bonito lá dentro, tenho medo até de olhar. Imagina se ele percebe, acha ruim e chama amigos para me agredir?

Muitas vezes, vou ao estádio com amigos héteros. A gente se reúne antes da partida, toma cerveja, escuta a torcida cantar. É engraçado porque no futebol as pessoas, sem perceber, chamam o outro de viado, como algo pejorativo. Meus amigos fazem isso, mesmo comigo do lado. Foi algo que aprendi a filtrar, acho que isso vai além. É cultural e não vai mudar. As pessoas não percebem que isso é homofóbico.

Minha família é toda corintiana. Meu pai quis me bater duas vezes na vida. A primeira, quando falei que era palmeirense. A segunda, quando disse ser gay. Mas hoje ele aceita bem. Eu converso bastante sobre política com minha irmã, principalmente nos dias de hoje. Foi ela que me mostrou o vídeo de torcedores aos gritos "bicharada toma cuidado o Bolsonaro vai matar viado". Eu fiquei com nojo.

Amilcar Orfali/Getty Images Amilcar Orfali/Getty Images

Vai piorar e tenho mais medo

Antigamente, gritavam muito "bicha", quando o goleiro adversário ia cobrar o tiro de meta. A torcida do Palmeiras parou com isso. Agora, esses cânticos... Voltamos muitos passos para trás.

Eu me sentia mais seguro que hoje. Eu me sentia melhor dentro do estádio. A primeira vez em que fui ao Allianz, depois da reforma, eu chorei. É muito louco, todo mundo cantando, o estádio é lindo.

Mas alguns ignorantes acham que podem fazer coisas só porque tem alguém como presidente. E vai piorar. Por causa desses ignorantes, eu fico com mais medo. Quando escuto as pessoas gritando o nome de alguém assim, fico com vergonha de ser palmeirense. Mas nunca deixarei de ser. A não ser que aconteça algo muito grave de violência, nunca deixarei de ir ao estádio.

Torcida do Atlético-MG usa Bolsonaro para atacar rivais

Cânticos violentos com nome de candidato

No dia 16 de setembro, torcedores do Atlético-MG ecoaram cânticos homofóbicos contra torcedores do Cruzeiro no Mineirão. Além do já tradicional e homofóbico grito de "bicha", quando o goleiro rival vai cobrar o tiro de meta, uma música violenta foi cantada. "Ô bicharada, toma cuidado o Bolsonaro vai matar viado".

Fora do estádio, os gritos foram reproduzidos por outras torcidas. No começo de outubro, pessoas com a camisa do Palmeiras gritaram a mesma coisa contra homossexuais em uma estação de metrô de São Paulo. Os dois exemplos mostram que isso não é algo específico de uma ou duas torcidas, de um clube ou outro, mas a chegada do discurso radical no futebol.

"Fiquei indignada com o que aconteceu [contra o Cruzeiro] e procurei grupos de torcedoras para me refugiar e discutir como isso é problemático. O fato de ter conversado com outras torcedoras me acalentou. Eu fui ao estádio depois desse dia, contra o América-MG, e confesso que eu fiquei mais na minha, na defensiva mesmo. A gente está num momento eleitoral delicado, e com o fato recente eu me policiei mais", relatou Kelly, 23 anos, torcedora do Galo e lésbica.

Pedro Vale/AGIF Pedro Vale/AGIF

Discurso que gera ódio

Os cânticos têm origem em uma declaração do candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) de 2011. Ele dizia ser incapaz de amar um filho gay e que preferia um filho morto a vê-lo "com um bigodudo por aí".

"É como se a gente estivesse autorizando esse discurso de ódio. Ele sempre existiu, mas tinha um contexto de moderação no espaço público. Inclusive, falando em espaço público, o estádio de futebol já era um lugar que tinha menos moderação. No estádio sempre se xinga mais mulheres e homossexuais", explicou Gustavo Andrada Bandeira, doutor em educação e pesquisador em futebol e masculinidade há mais de uma década.

Gustavo ressalta que o discurso de ódio não é só culpa do discurso de um candidato. "A onda conservadora é maior que o candidato e ela se justifica em alguma medida pelo direito à liberdade de pensamento, o que é equivocado, porque a liberdade de pensamento só existe até o momento em que não fere ninguém. Se sugere que uma vida vale menos que a sua. Você não pode argumentar que tem liberdade de pensar assim".

Palmeirenses cantam grito homofóbico

A diferença da homofobia no estádio hoje é que, antes, os gritos contra bichas, viados, homossexuais ou quaisquer que sejam, eram gritos contra coisas abstratas, contra todo torcedor adversário, por exemplo. Me parece que agora também é contra indivíduos como o caso de torcedores do Palmeiras no metrô. Eles gritaram contra uma pessoa que parecia ser homossexual

Gustavo Andrada Bandeira, sobre a diferença no tratamento de torcedores LGBTs no estádio

O movimento dos últimos anos é que existia espaço para uma torcida que poderia abrir bandeira de arco-íris ou reivindicar o fim do machismo. Com essa virada conservadora, a situação dos LBGTs voltará a ser condicionada a um certo esconder-se no meio da heterossexualidade, um torcedor invisível. É um processo de morte simbólica

Gustavo Andrada Bandeira, sobre a onda conservadora e homofóbica em estádios

Bruno Cantini / Atlético Bruno Cantini / Atlético

Torcedora se afasta do time após gritos

Kelly vai ao estádio ver o Galo jogar desde a adolescência e sempre acompanhada da família. Os tradicionais gritos de "bicha" contra o goleiro rival e xingamentos contra homossexuais no estádio fizeram com que ela deixasse de querer ser sócio-torcedora e repensasse a presença nos jogos do próprio time.

Depois do episódio contra o Cruzeiro, Kelly ficou com mais medo. "Eu gostaria de frequentar mais clássicos, mas sei que a violência contra quem eu sou acontece o tempo todo, gritada por torcidas de todos os lados", disse.

A ida ao estádio acompanhada da namorada está descartada por enquanto. "A presença dela no estádio não vai ser por agora, enquanto esses ânimos estão exaltados e os ataques tem sido mais ecoados", ressaltou.

"O estádio sempre foi um lugar que ecoa masculinidade, o torcedor rival nunca fica imune. No Galo, a forma de chamar o cruzeirense é Maria. É uma conotação homofóbica e isso, para mim, é inaceitável. Estádio não pode ser terra de ninguém", opinou.

Meus pais pedem para que eu não me posicione tanto, que não demonstre quem eu sou dentro do estádio e também fora dele, por medo de represálias. Esse discurso de ódio é visto e propagado para todos os lugares

Kelly, sobre o medo que a família tem por ela

Me incomoda não haver mesmo um movimento de educação. O grito de bicha é ecoado em todos os setores e o clube não se posiciona nesse sentido. Se posicionou agora, no jogo contra o Cruzeiro, porque se viu ameaçado

Kelly, sobre a falta de posicionamento dos clubes

Buda Mendes/Getty Images Buda Mendes/Getty Images

Rivalidade só quando o assunto é futebol

"Essa vergonha eu não passei". A frase é de Pamella, 26 anos, torcedora do Corinthians e lésbica. Apesar de brincar com o fato de torcedores rivais do Corinthians terem cantado gritos homofóbicos, a corintiana sabe da seriedade do assunto e ressalta que o problema extrapola as arquibancadas e a rivalidade.

"Eu me coloco na posição da torcedora do Palmeiras. É a postura machista e preconceituosa. Eu pensava que a galera [pessoas preconceituosas] tinha voltado para o armário, mas estão todos saindo das covas, das tumbas. É pavoroso. Eu fico triste apesar de ser uma torcida rival, eu quero ver um jogo legal, não quero ter nojo. Porque cria um sentimento de nojo, tristeza, lamento e infelicidade", analisou.

Pamella não frequenta o estádio com a namorada por ela ser torcedora do São Paulo. Mas fora do esporte, vive situações de medo e enfrenta olhares preconceituosos na rua. "Na minha vida, eu já passo por situações de medo e precaução. Parece bobo, mas hoje eu tenho medo de beijar a minha namorada na rua".

"É como se o espaço fosse particular e ninguém pode deixar que 'outas pessoas', as minorias, entrem. Existe um medo das minorias tomarem um espaço de protagonismo. É um espaço que a gente nunca teve. A gente, minimamente, tenta lutar por direitos básicos. Infelizmente, o futebol reproduz muitos, muitos padrões machistas e homofóbicos. Patriarcais. O que acontece é que existia um início de movimento para tentar diminuir isso. Começou a existir essa discussão de uma maneira sutil. Com essas novas dimensões, a gente joga isso fora".

Tem um tio velho que grita 'viado'. É algo tão enraizado na cultura. Não vou dizer que não me incomoda, mas não me sinto ofendido. Eu não mudo meu jeito. A única diferença é que, na hora de gritar que o juiz errou, eu não vou gritar 'porra, viado'

Guto, torcedor do Palmeiras e gay sobre as gírias homofóbicas

Eu não deixaria de ir para o estádio com medo de ser discriminado. Eu já fui com namorado, sentamos um do lado do outro e a gente só não ficou de mão dada. Não sei se perceberam e ficaram quietos. Acho que eu sou um ponto fora da curva

Guto, sobre levar namorado ao estádio

Todos os sobrenomes de torcedores foram omitidos propositalmente.

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