Meus oito anos

Carlos Sánchez era criança quando passou fome após abandono do pai. Uma decisão sua, aos 8 anos, mudou tudo

Gabriel Carneiro e Samir Carvalho Do UOL, em São Paulo
Ivan Storti/Divulgação

"Não ter um pai para te acompanhar no futebol é duro. Não tive. Era sempre minha mãe em qualquer lugar que eu fosse. Tudo isso me marcou bastante. Minha mãe foi mãe e pai e foi sempre assim. Seguimos em frente. Nossa situação financeira não era das melhores. Não tinha um pai em casa para trabalhar e ajudar. Era minha mãe para tudo. Foi difícil, não havia um prato de comida todos os dias. Quem já passou por essa situação sabe o que estou falando. Mas dou graças a Deus por termos saído disso.

É um orgulho para minha mãe que eu não tenha entrado no crime. Vivíamos em um bairro violento, estávamos enredados pelo crime. Mas sabíamos dos nossos objetivos de vida e sempre seguimos em frente. O futebol me salvou. Salvou muito (risos)".

Carlos Sánchez, volante do Santos e da seleção do Uruguai

Acervo pessoal Acervo pessoal

Uma vida transformada

Casimiro de Abreu, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, tinha saudades da "aurora da vida", do "despontar da existência", dos tempos "em que doce a vida era".

Adriana Calcanhoto imitou uma criança perguntando, em música lançada em 2004, "por que os dentes caem, por onde os filhos saem, quanto é mil trilhões vezes infinito?".

Os dois falavam de crianças de oito anos. Carlos Sánchez, jogador de futebol, nascido em Montevidéu, provavelmente nunca ouviu falar de nenhum deles. Mas discorda de ambos. Para o meio-campista do Santos, oito anos é uma idade de transformação. Foi nessa época que sua vida mudou. E por uma decisão do próprio Carlos, ainda criança.

O menino uruguaio foi marcado pelo abandono paterno. O pai da família simplesmente saiu. Nunca mais procurou os filhos ou a ex-mulher. Sem explicações ou respostas: "Foi simples assim", ele reflete. Ao lado de quatro irmãos e da mãe, Nelly, foi preciso recomeçar a vida em meio a profundas dificuldades financeiras. Foi aí que veio a decisão: era preciso ajudar a mãe, empregada doméstica, a pagar as contas. E, aos oito anos, passou a fazer testes em clubes para saber se o talento elogiado no bairro poderia um dia ajudar a família financeiramente. 

Sánchez não se sente completamente confortável ao tocar no assunto. As dificuldades financeiras impuseram fome à família. Um passado que ele não apaga, mas ressente: "Foi uma realidade nas nossas vidas não fazer todas as refeições. Eu convivia todos os dias com isso, não tinha como evitar. Foi algo que eu tive que viver. Foi difícil, claro, mas deu força aos meus sonhos."

Para ele, oito anos é idade de correr atrás.

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Da padaria aos gramados

A família sem pai foi abraçada por um tio. Eles ocuparam um pequeno quarto em uma região vulnerável de Montevidéu, onde conviviam com violência e privações. Carlos, 8, lembra que se alimentava bem ao meio-dia, na escola. Depois disso, não havia garantias. A mãe voltava tarde do trabalho e não havia pagamento diário. O tio era pedreiro, mas não era sempre que encontrava trabalho. Em algumas noites, não tinha nada na mesa. Era comum só tomar um leite e ir dormir. Ou pedir para comer na casa de um amigo.

Diante desse cenário, os quatro irmãos buscaram trabalho. Carlos se arranjou em uma padaria, onde entregava pedidos. Ao fim do expediente, levava para casa os pães ou biscoitos feitos no dia que sobrassem. Se sobrassem. Mas já era alguma coisa. Aos poucos, a situação foi sendo remediada.

Nelly se casou de novo, teve mais seis filhos. Hoje, é avó com 22 netos. E bisavó de 12 bisnetos. Orgulhosa por seus dez filhos não terem desviado por caminhos errados. O antigo entregador da padaria inclusive. Carlos entrou em um time de futebol de bairro chamado Nueva Juventud. Fez testes e mais testes. Foi recusado em Wanderers, Fênix, Cerro e River. Até que um antigo treinador foi parar no Liverpool uruguaio e o convidou para entrar no time. O resto é história.

Eu saía muito cedo para treinar, todo encantado. Ia treinar de bicicleta, caminhando. Sempre me lembrarei disso. É o que me marcou. Eu me sinto um vencedor, porque, de onde venho, é bastante difícil sair um jogador profissional. Agradeço a esse treinador (Carlos Iglesias), que confiou em mim para ser jogador. Eu ponho essa história como exemplo

Carlos Sánchez

Carlos Sánchez, volante do Santos e da seleção uruguaia

Charly Diaz Azcue/AFP Charly Diaz Azcue/AFP

Argentina, México e Brasil: a carreira do Rei da América

Carlos Sánchez se profissionalizou pelo Liverpool (URU). Lá, sofreu uma séria lesão no joelho. Entre idas e vindas, ficou quase dois anos fora do futebol. Mesmo assim, fez mais de 100 jogos pelo clube. Em um deles, encantou um olheiro do Godoy Cruz (ARG) que tinha ido observar o atacante Emiliano Alfaro. No fim, levaram Sánchez.

Foram duas temporadas no Godoy Cruz até ser comprado por 2,9 milhões de dólares pelo River Plate, que em 2011 estava na segunda divisão da Argentina. Ele chegou a ser emprestado ao Puebla (MEX) na temporada 2013/2014, onde jogou até como centroavante, mas voltou ao Monumental de Nuñez para se tornar um dos jogadores mais importantes do time de Marcelo Gallardo. Ganhou a Copa Sul-Americana, a Recopa (com gol nas duas partidas contra o San Lorenzo) e, depois, a Libertadores, em que marcou 4 gols (inclusive um no Cruzeiro, nas quartas de final, e outro na decisão contra o Tigres). Fez gol e deu assistência no título da Copa Suruga. Foi vice-campeão do mundo.

Eleito como melhor jogador da América em 2015, recebeu uma oferta "irresistível" do Monterrey (MEX) e assinou por três anos. O contrato acabaria no fim de 2018, mas o Santos pagou quase R$ 4 milhões e fechou com o reforço em julho. Até agora, são 16 jogos, três gols e quatro assistências. É titular incontestável de Cuca, unanimidade para a torcida. Um dos destaques do melhor time do segundo turno do Brasileirão. No que poderia ser seu auge, porém, aparece uma mágoa.

Ale Cabral/AGIF Ale Cabral/AGIF

"Eu sinto culpa. Era meu nome ali"

Carlos Sánchez foi contratado pelo Santos para os mata-matas da Libertadores e da Copa do Brasil. Experiente, campeão, decisivo... Após o primeiro jogo das oitavas de final, um valioso empate fora de casa com o Independiente (ARG), o adversário contestou a escalação do uruguaio, que estava suspenso em razão de expulsão ainda pelo River. Aquele cartão vermelho foi dado em novembro de 2015, pela Copa Sul-Americana. O Santos foi considerado culpado pela Conmebol e o 0 a 0 foi alterado para 3 a 0 a favor dos argentinos. No jogo de volta, no Pacaembu, um novo placar sem gols levaria aos pênaltis originalmente. Com a punição, quem fez a festa foi o Independiente. 

O "Caso Sánchez" expôs o reforço do Peixe. Em pouquíssimo tempo de clube, aquele que tinha sido contratado para resolver foi o pivô da eliminação. 

"Fiquei bastante sentido com isso, mas já passou. Eu sinto culpa. Era meu nome ali. Eu que não estava apto para jogar. Me sinto culpado, mas assimilei rápido. O melhor possível dessa situação é sair rápido, tentar reverter e fazer grandes atuações para que as pessoas sintam carinho e não rancor por mim. Que eu lute em campo e consiga superar. Mas, sim, fiquei mal", desabafa o experiente jogador.

"Não tem uma explicação certa para o que se passou. Nem ele [o técnico Cuca] e nem eu temos culpa. É uma situação muito difícil, não sei explicar se foi culpa de alguém. Mas eu me sinto envolvido. Foi meu nome e eu estava expulso. Doeu muito ficar fora da Libertadores dessa maneira, porque não perdemos. Iríamos para os pênaltis. Foi muito duro o que aconteceu".

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Sánchez promete Santos cascudo

Para Sánchez, a responsabilidade de jogar bem pelo Santos aumentou depois do episódio da Libertadores. Ele quer ser idolatrado. Alcançar uma vaga na próxima edição do principal torneio continental é a grande missão. O Peixe, hoje, é sétimo colocado, com os mesmos 46 pontos do Atlético-MG, que fecha o G6. A campanha no Brasileiro é boa sob o comando de Cuca, mesmo com as eliminações na Libertadores e na Copa do Brasil. É o que dá esperança para 2019.

"Temos que seguir adiante. O grande desafio é a vaga na Libertadores. Nosso clube é bom, a torcida é boa, nosso técnico é bom, temos muitos jovens bons, jogadores técnicos e alguns estrangeiros que são o tempero. É uma soma boa, uma fórmula que pode render muito mais ao Santos. Nosso torcedor pode ter confiança, pode esperar grandes coisas. Neste ano, o Santos passou por muitas situações, como a Libertadores e a Copa do Brasil encerrando o jogo antes do fim. Que isso sirva para o bem, que o clube e o elenco se fortaleçam e o fruto seja colhido ano que vem."

Você sabia?

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Careca convicto

Carlos Sánchez cultiva o estilo atual, sem cabelo, desde a infância. Ele decidiu raspar porque sofria com a zoeira dos amigos de escola em relação ao cabelo crespo. Não gostava do bullying e nem do cabelo. Nunca mais mudou o penteado.

AFP AFP

Fã de Salas

Na infância, o jogador uruguaio era fã do astro chileno Marcelo Salas, que defendeu Universidad de Chile, River Plate, Lazio e Juventus. Sánchez via os lances de "El Matador" pela TV e imitava as comemorações de gol no futebol de bairro.

Reprodução/Santos Mil Grau Reprodução/Santos Mil Grau

O apelido

Um dos irmãos mais velhos tinha apelido de Pato. Quando foram jogar bola juntos, o atual volante do Santos virou "Patito". Daí Pato e ninguém sabe a razão. No Peixe, a camisa da apresentação era "C. Sánchez". Hoje é "Pato Sánchez".

Daniel Vorley/AGIF Daniel Vorley/AGIF

Treinador?

Sánchez ainda não tem um planejamento concreto, mas aprova a ideia de ser treinador: "Eu gostaria". No futebol brasileiro, quatro jogadores chamaram sua atenção: Rodrygo e Arthur Gomes (Santos), Dudu (Palmeiras) e Léo Pelé (Bahia).

Joe Klamar/AFP Joe Klamar/AFP

Choro de uma Copa inusitada

Carlos Sánchez foi convocado pela primeira vez à seleção uruguaia em novembro de 2014. Logo depois da Copa do Mundo, fez parte de um processo de restruturação comandado pelo técnico Óscar Tabárez. O inusitado em tudo isso é que o jogador, então no River Plate, já tinha 29 anos. "É muito difícil pensar que eu iria para a seleção com 29 anos. É muito louco. Eu estava muito bem no River, era um dos meus melhores momentos, mas não me passava pela cabeça a seleção. Minha família dizia para eu ter paciência, porque chegaria a oportunidade. E chegou."

Convocado em 2014, participou de todo o ciclo até a Copa do Mundo da Rússia. Em cinco jogos até a eliminação para a França nas quartas de final, esteve em três, sendo um como titular, e deu duas assistências (contra Egito e Arábia Saudita). Depois de uma das partidas, Sánchez enviou para sua esposa Selene uma selfie no vestiário. Camisa celeste no corpo e seu rosto coberto por lágrimas e com os olhos vermelhos.

"Jogar uma Copa do Mundo é o mais bonito que existe. Poder estar lá, como sonhei a vida inteira, é o objetivo máximo. Eu vivi tudo aquilo como uma criança de 8 anos, feliz, não importava se jogasse ou não. Foi incrível. Mil coisas na cabeça. A verdade é que aproveitei muito a Copa. Você desfruta mais quando é maduro. Foi muito gostoso", se derrete o veterano volante, que continua sendo convocado por Tabárez e tem um sonho, ainda distante, de estar em 2022, no Qatar.

Em 2016, a final da Liga Mexicana foi adiada. Não se jogou no dia marcado por conta das condições climáticas. Na data em que marcaram a nova partida, eu teria que estar com a seleção. Eu perguntei ao técnico do Uruguai se poderia jogar a final e ir depois, mas não foi permitido. Tive que escolher, porque se jogasse a final poderia não ir à Copa do Mundo. Tive que tomar uma decisão e, para mim, tomei a certa. Tive o prêmio de estar na Copa

Carlos Sánchez

Carlos Sánchez, lembrando do episódio que fez com que torcedores do Monterrey o ameaçassem após a recusa de atuar na final

Reprodução/Twitter Reprodução/Twitter

Mais um pedaço do Uruguai no Brasil

Pai de três filhos, Máximo, Juan Manuel e Luciana, Carlos Sánchez mantém laços com a terra natal. Manda trazer doce de leite e ervas para o preparo do mate e não abre mão de um churrasco nas folgas, quando convida os outros gringos do elenco do Santos, Derlis González, Bryan Ruiz e Copete. Também já pensou em encerrar carreira no Liverpool depois de "mais de três anos no Santos, talvez cinco, seis". Para ficar mais perto do Uruguai, há a chance de trazer outro pedaço de lá em breve: seu irmão caçula, Nicolás De La Cruz.

Nicolás é o outro dos dez filhos de Nelly que seguiu carreira no futebol. Aos 21 anos, defende atualmente o River Plate, da Argentina, que o comprou por R$ 11 milhões em 2017 do próprio Liverpool. Joga como meia, tem histórico na seleção de base do Uruguai e contrato até junho de 2021. Mas não tem jogado. Daí nasceu um desejo de Sánchez: que o Santos contrate Nicolás em 2019 e os irmãos atuem juntos na Vila Belmiro. O clube gostou da ideia e está buscando informações. "Quero trazê-lo para jogar comigo, tenho esse sonho e nunca o escondi. Espero que aconteça um acordo."

O menino de oito anos jamais imaginaria a vida que leva aos 33. E, pelas promessas que fez ao torcedor do Santos, mais glórias vêm por aí. 

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