
Encerrada a Rússia-2018, prepare-se para uma Copa do Mundo como você nunca viu em quatro anos. O Qatar-2022 não será apenas o primeiro Mundial realizado no Oriente Médio: com área de cerca de 11.500 km², será o menor país que já recebeu o torneio.
Para você ter ideia das (pequenas) dimensões da nação da península arábica, seu tamanho equivale ao da cidade de Manaus. O estádio mais distante de Doha, a capital, está a apenas 35 km. E mais: quatro dos oito estádios planejados para a Copa estão na própria capital de 800 mil habitantes. As torcidas dos 32 países participantes [pelo menos esses são os planos atuais] basicamente ocuparão os mesmos lugares.
Outro detalhe: o torneio do Qatar também vai mudar o calendário dos campeonatos de futebol mundo afora, da Premier League ao Brasileirão. Com o clima extremo do verão árabe, a Fifa marcou a Copa para os dias 21 de novembro e 18 de dezembro. É a primeira que não disputada no meio do ano, durante o verão europeu.
Internamente também há uma série de desafios a superar, especialmente no campo dos direitos humanos. O primeiro, e mais conhecido, é a denúncia de que operários trabalham nas obras da Copa em regime análogo à escravidão. As mulheres andam com os rostos cobertos. Ser gay lá é crime. Isso sem contar a eleição do país como sede, cercada de denúncias de corrupção que praticamente custaram a cabeça de Joseph Blatter.
Como forma de compensação (ou disfarce?), o Qatar promete instalações suntuosas e inovações tecnológicas. Você já está preparado?
Nos próximos quatro anos, o brasileiro vai cansar de escutar que "o Qatar é o menor país a já receber uma Copa do Mundo". Para se ter uma ideia da diferença em relação ao Brasil, que teve jogos no Amazonas e no Rio Grande do Sul, e à Rússia, que foi de Sochi a São Petersburgo, o estádio mais distante de Doha é o Al-Bayt, na cidade de Al-Khor, que fica a 35 quilômetros do centro da capital. Ou seja, a cada dia será possível escolher qual seleção e torcida acompanhar. Ou então acompanhar mais de uma.
Em condições normais, em menos de uma hora é possível circular entre os dois estádios mais distantes do próximo mundial. Outro atestado da falta de normalidade da próxima Copa: serão colocados à venda 2,8 milhões de ingressos. O número é maior do que os 2,5 milhões de habitantes do país-sede. As consequências no trânsito podem ser calamitosas. Imagine São Paulo em véspera de feriadão...
Vendo as pessoas e como elas se locomovem, estamos tentando imaginar como o tráfego vai fluir na Copa do Mundo. Nós estamos reconsiderando onde colocar a Fan Fest, por exemplo"
Nasser Al Khater, oficial sênior da Copa do Qatar
Mas também é possível que dê certo. As Olimpíadas concentram cerca de 30 instalações, geralmente em uma única cidade. E as coisas funcionam. Para se antecipar a possíveis problemas, a organização da primeira Copa do Oriente Médio enviou 180 pessoas à Rússia. Eles verificaram a paixão das torcidas, principalmente da América Latina, e prometem ajustes para evitar o caos.
Entre as peculiaridades da próxima Copa está a data. A final da Copa de 2022 será na mesma semana das festas de Natal. Com o fim do Mundial marcado para 18 de dezembro, todo o calendário do futebol terá de ser adequado. O Brasileirão e os outros campeonatos nacionais, por exemplo, terão um ano atípico. Nenhuma informação sobre como a adequação será feita no Brasil foi divulgada pela CBF, por exemplo, mas é improvável que o torneio não seja paralisado.
O motivo da mudança nas datas da Copa são as temperaturas extremas no verão do Qatar, onde os termômetros passam dos 50 graus. Lembrando que em junho e julho, os meses tradicionais do torneio para a Fifa, é verão no Qatar. A organização prometeu ar condicionado nos estádios, mas ainda assim resolveram mudar as datas.
A senha foi uma declaração do então presidente da Fifa, Joseph Blatter: "Após muitas discussões, deliberações e críticas, cheguei à conclusão de que jogar a Copa do Mundo no verão do Qatar simplesmente não é uma coisa responsável a fazer, apesar do fato de que eu sei muito bem que o Qatar tem os meios para desenvolver a melhor tecnologia de refrigeração. Foi um erro. É por isso que venho a público e sugiro ao Comitê Executivo da Fifa que reveja e analise as consequências de a Copa do Mundo 2022 seja disputada no inverno.” Assim foi feito.
As temperaturas extremas fizeram o Qatar inaugurar a primeira arena do mundo com sistema de ar condicionado. Foi em maio do ano passado - o estádio Khalifa International também foi o primeiro a ficar pronto para o Mundial de 2022. Trata-se de um método complexo de refrigeração, com uma central de energia a 1 km do estádio e envolve fluxo de água gelada.
Desta maneira é possível produzir ar frio que é espalhado pelo estádio através de 500 saídas de ar. O objetivo é manter a temperatura no interior do local, que é aberto, em 26 graus, mesmo que o exterior passe de 50. O primeiro teste após o fim das obras foi a final da Copa do Emir, em que o Al Sadd venceu a final contra o Al Rayyan. O estádio começou a ser erguido antes da decisão de mudar as datas do Mundial, tomada em setembro de 2015.
Localizado sobre reservas de petróleo e gás natural, o Qatar é muito rico. O país tem a sexta maior renda per capta do mundo de acordo com o Banco Mundial – R$ 244,5 mil. Mas o país não tem o status mundial que gostaria. E vai usar a Copa do Mundo para conquistar prestígio.
A competição será suntuosa como se espera de um xeque árabe. O custo não é revelado porque transparência não é o forte do país. Mas o palco da abertura e da final do Mundial dá uma ideia de que a conta será elevadíssima. Ele foi batizado com o simbólico nome de Estádio Icônico de Lusail. Ao redor da obra está sendo construída uma cidade para até 450 mil pessoas. Não, você não leu errado.
O custo é de faraônicos R$ 173 bilhões.
Usar o esporte como afirmação política não é novidade no Qatar. A empresa aérea Qatar Airways patrocina o Barcelona. Um fundo de investimentos do país também financiou a transferência de Neymar para o Paris St. Germains. Foram os árabes que pagaram o mais caro negócio da história do futebol (mais de R$ 820 milhões) e ainda pagam os salários do brasileiro. Lembrando: o fundo de investimentos do governo é dono de 70% do PSG.
O Estádio Ras Abu Aboud, em Doha, será o primeiro estádio desmontável da história das Copas. No anúncio do projeto, os organizadores afirmaram que o estádio será construído em blocos e contarão com assentos removíveis. “É o legado perfeito, capaz de ser remontado integralmente em um novo lugar ou dividido em partes menores de instalações de esporte e cultura”, disse o secretário-geral do comitê organizador, Hassan Al Thawadi.
A promessa é doar o Ras Abu Aboud a países em desenvolvimento. Ainda não foi explicado se a doação será da instalação completa para uma única nação ou se será feita a divisão, para beneficiar mais pessoas. O estádio está em construção e a promessa é de entrega em 2020 – ano em que todos os estádios estarão concluídos de acordo com os organizadores.
Além da possibilidade de ser doado, o Ras Abu Aboud é vendido pelo Qatar como uma obra de menor impacto ambiental. O argumento é que os blocos exigem menos material, geram menos lixo e reduzem a emissão de carbono.
Por trás da riqueza e da suntuosidade em nome do tal prestígio internacional, a Copa do Mundo de 2022 é cercada por denúncias de trabalho escravo em obras de infraestrutura. A acusação é da Anistia Internacional, entidade que atua na proteção dos direitos humanos. Imigrantes pobres de países próximos, como Índia, Nepal e Bangladesh, estariam vivendo em condições humilhantes de trabalho e vida, como dormir amontoados com pouca higiene, entre baratas e submetidos a agressões.
O Governo nega essas e outras acusações, como as que dizem respeito a mortes por acidente de trabalho. De acordo com a imprensa inglesa, foram mais de 1.200 mortes diante destas condições sub-humanas de vida. Além disso, também existem relatos de apreensão de passaportes dos trabalhadores de outros países. Como o processo é conduzido com pouca transparência, a Fifa abriu investigação e exigiu providências. O emir diz que trata as pessoas com respeito.
Estima-se que de 500 mil a 1 milhão de trabalhadores entrará no país até o fim das obras.
"A violação de direitos dos trabalhadores migrantes é uma mancha na consciência do futebol mundial. Para jogadores e torcedores, um estádio de Copa do Mundo é um lugar de sonhos. Para alguns dos trabalhadores que conversaram conosco, pode ser como um pesadelo", disse o secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty.
Entre as denúncias, investigadas pela entidade desde 2016, baseadas em entrevistas com 132 operários do Estádio Khalifa Internacional e 99 paisagistas de um centro de treinamento, estão as seguintes reclamações: alojamentos sujos e apertados, pagamentos de grandes taxas a recrutadores em seu país de origem por um emprego no Qatar, mentiras dos contratantes sobre o salário, pressões financeiras e emocionais com demora do pagamento, empregadores que não renovaram autorização de residência, permitindo risco de detenção e deportação e confisco de passaportes para que eles não deixem o país.
Se a Rússia já não foi um país amigável aos gays, no Qatar deve ser pior. O país considera crime o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, uma restrição que tem a ver com a religião islâmica. Em entrevista à agência de notícias "AP", o ministro dos Esportes do Qatar, Salah bin Ghanem bin Nasser al-Ali, disse que as pessoas que fossem à Copa do Mundo teriam que se adaptar ao sistema, lógica e leis do país, não o contrário. "Não queremos criar a impressão de que não nos importamos com nossa tradição e nossos valores éticos", disse, antes de indicar que o país poderia buscar "soluções criativas" para receber públicos "com outras preferências".
O Qatar é composto por sunitas do movimento salafista. Ele é ultraconservador, prega uma abordagem literal e rigorosa do islã e defende a Jihad, a luta armada contra os inimigos e infiéis. No país, há acusações de ajuda a grupos terroristas, como a Irmandade Muçulmana. Em 2014 e 2017, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes e Bahrein, os países mais poderosos do mundo árabe, cortaram laços com o Qatar. O bloqueio que isolou o país da próxima Copa tem origem no apoio ao terrorismo.
Quanto à comunidade gay, a primeira reação após a confirmação da Copa do Qatar foi de Joseph Blatter, então presidente da Fifa. Ele sugeriu que os gays "se abstivessem de relação sexual" durante o Mundial. O Qatar proíbe campanhas por direitos LGBT e a homossexualidade masculina já chegou a ser crime com cinco anos de prisão estipulada - hoje a pena vai de um a três anos.
Na Rússia, é preciso osso quebrado para atestar violência doméstica. No Qatar, a situação também é alarmante. A imensa maioria da população feminina não mostra o rosto quando caminha pelas ruas. As que fazem, evitam olhar para o lado para não serem mal interpretadas. A igualdade de gênero é uma realidade ainda mais distante na sede do próximo Mundial.
Um episódio que demonstra a realidade do Qatar foi a entrevista que a escritora Maryam Al-Subaiev deu a um canal francês que trata de assuntos árabes em 2016. Ela foi a primeira mulher catariana entrevistada em uma década e apareceu com a cabeça descoberta. Na sua terra natal, o gesto foi considerado falta de respeito e um ato vergonhoso. Ela reagiu dizendo que o caráter não está num pedaço de pano.
Além de menos direitos, as mulheres estão em menor número no Qatar. Elas correspondem a 36% da população. A diferença se explica porque o país atrai muitos trabalhadores estrangeiros, sendo a maioria homens. As profissionais que escolhem o país para seguir carreira muitas vezes entram em conflito com os costumes restritivos que a sociedade reserva às mulheres.
A lisura da escolha do Qatar como sede da Copa do Mundo sempre foi questionada. A Fifa decidiu não divulgar detalhes de sua investigação interna sobre o assunto. O responsável pelo trabalho, o americano Michael Garcia, renunciou ao cargo na sequência. Quando o relatório vazou, surgiu o nome de Ricardo Teixeira como possível beneficiário de corrupção.
Outro ex-presidente da CBF que está envolvido com a escolha da próxima sede da Copa é José Maria Marin. Ele foi condenado em seis de sete acusações feitas pela Justiça americana. A eleição do Qatar para sediar a Copa de 2022 é um dos assuntos investigados. O cartola estava no grupo de dirigentes presos em um hotel de luxo na Suíça em maio de 2015.
A escolha ainda custou a presidência da Fifa a Joseph Blatter. Pressionado e vendo aliados de longa data caindo ao seu redor, ele anunciou a abertura de um congresso para a escolha de um substituto em 2015. O suíço Gianni Infantino assumiu a entidade em 2016 - até hoje, Blatter está suspenso pela entidade.