Não sou (tão) bonzinho

Zico fala de brigas no vestiário, da entrada que quase acabou com a carreira e de (não) fazer tipo para a TV

Rodolfo Rodrigues e Vinicius Castro Do UOL, no Rio de janeiro
AFP PHOTO / LOUISA GOULIAMAKI

Galinho 3.0

Arthur Antunes Coimbra é muitas coisas. Maior artilheiro e principal jogador da história do Flamengo. Estrela da seleção brasileira em Copas do Mundo. Técnico na Ásia e na Europa (mas nunca no Brasil). Mas, bonzinho? Isso ele não é. Pelo menos não o tempo todo.

Zico é um cara legal, bom de papo, mas já entrou em brigas quando era jogador, nunca vai perdoar Márcio Nunes, o jogador que quase acabou com sua carreira em uma noite no Maracanã, e se acha injustiçado pela fama de nunca ter vencido com a seleção brasileira.

Quem fala com o Galinho hoje, aos 64 anos, conhece o Zico 3.0: um avô orgulhoso de seis netos que deu um tempo na carreira de treinador e agora aventura-se como youtuber - com o seu recém-lançado Canal Zico 10. É, também, comentarista do Esporte Interativo, mas só durante os dias de semana, como ele exige.

Ele recebeu a reportagem do UOL no CFZ, seu clube de futebol no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. Falou sobre sua geração, a Copa de 1982 e por que poderia ter sido o melhor do mundo, sobre a ida para a Udinese, suas decepções por lá e a frustração por não ter jogado com Maradona no Napoli. Divirta-se:

Conmebol/Divulgação Conmebol/Divulgação

"Eu me considero, pelos meus números, um grande nome do futebol"

Ninguém chega onde eu cheguei à toa, por amizade, por carinho ou benevolência de alguém. Foi por conquistas e por números. E os meus números estão aí para comprovar isso. Eu me considero, e fui considerado pela crítica esportiva mundial, um dos expoentes do futebol brasileiro

Sobre onde o próprio Zico se enxerga no cenário do futebol mundial

Se fosse pelas revistas, eu seria o melhor do mundo ALGUMAS vezes

Homero Sérgio-15.out.1988/Folhapress Homero Sérgio-15.out.1988/Folhapress

Já briguei muito no vestiário. Vocês nem imaginam...

A cara de bom menino acompanha Zico desde o começo de carreira. Quando chegou ao Flamengo, franzino, era difícil olhar para ele e imaginar alguém capaz de iniciar uma briga. Mas ele garante: arrumou muita confusão.

“Já discuti muito em vestiário, você nem imagina. Uma vez, por exemplo, nós estávamos jogando lá no Maranhão. Estava uma moleza, cinco ou seis gols. E os caras querendo dar balãozinho para o goleiro, meter gol de letra, de calcanhar... Eu ficava sozinho e ninguém me dava a bola. E eu não tinha feito gol e estava puto da cara”, lembra.

Quando eu cheguei no vestiário, disse que domingo tinha Fla-Flu e que eles iriam se arrepender de não dar a bola para mim. Gritei: ‘Façam essa palhaçada que estão fazendo. Vão à merda todos, esqueçam de mim no domingo’.

“Tinha essas coisas de futebol, eu explodia mesmo. Mas explodia ali, no meio do vestiário. Era coisa que, quando a veia subia, o cara já sabia: ‘Aí vem merda’”.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Eu não queria ser jogador. Só queria jogar bola

Essa paixão pelo jogo, que o fazia perder a calma nos vestiários, mas correr mais do que todo mundo dentro de campo, é fruto de como Zico vê o futebol: muito mais como paixão do que como negócio.

“Quando entrei no futebol, entrei porque estava no sangue do povo brasileiro. Eu nunca imaginei que ia fazer disso o meu emprego. Era a minha alegria, um sonho de criança. Jogar no Flamengo, aquela coisa do Dida, da camisa 10, de torcedor”.

Foi por isso que Zico, ao contrário de muitos jogadores hoje, seguiu estudando. “O meu pai não deixava ninguém jogar bola se não estudasse. Todo mundo foi para a faculdade. E eu tive que, com todas as dificuldades, fazer também esse mesmo caminho”. Zico fez cinco períodos de educação física. Só parou quando foi jogar na Itália.

É diferente de hoje. Agora, há uma preocupação do garoto ser profissional e já começar a receber para ajudar a família. Às vezes, até aquela cesta básica que deveria ser do garoto é para a família inteira. Os valores mudaram, né?

Sobre as diferenças do futebol atual e de quando começou

A entrada que quase custou uma carreira

Na noite de 29 de agosto de 1985, Flamengo e Bangu jogaram no Maracanã. Pouca gente lembraria daquele jogo não fosse por um lance com Márcio Nunes. O lateral pulou com os dois pés na direção do joelho direito de Zico.

O lance é quase criminoso. Zico sai de campo na maca e precisa ser operado. Foi a primeira das contusões que custaram caro ao Galinho: ele ficou quase um ano sem voltar a jogar normalmente, passou por três cirurgias e até hoje sente dores no local. Foi essa entrada que o fez jogar a Copa do Mundo de 1986 sem plenas condições físicas.

Quem perdoa é Deus. Mas eu nunca vou aceitar como ele entrou naquele lance

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Poderia ter jogado com o Maradona

Quem Zico também não perdoa é o presidente da Udinese na época em jogou na Itália. Contratado aos 30 anos, ele quase foi campeão italiano, quase foi artilheiro e quase jogou no Milan, na Inter e ao lado de Maradona. Mas as mentiras de Lamberto Mazza o fizeram voltar para o Brasil.

Quando eu fui para a Itália, a Udinese vinha crescendo, montou um time bom, mas era uma equipe jovem. Fez um grande campeonato no primeiro ano, mas se desfez no segundo. Os jogadores foram ter sucesso depois, no Milan, no Napoli, na Juventus, na Roma...

Sobre o potencial da Udinese

O presidente disse que iria fortalecer o time, mas teve uma briga no meio da temporada. A gente estava em 3º lugar, brigando até o final, mas acabou não conseguindo a vaga na Copa da Uefa, que era o objetivo. No 2º ano, o cara se desfez de mais da metade do time

Sobre as promessas da diretoria

Ainda teve outro problema, da questão fiscal. Esse presidente me enganou no contrato de imagem. Eu tinha assinado em 10 de junho, mas ele alterou para 3 de agosto. Com essa nova data, para vender a minha imagem, teria que pedir autorização ao Ministério de Finanças da Itália. E ele não deixou mostrar o contrato com a data de 10 de junho, que era sujeito ao pagamento de imposto no Brasil

Sobre os problemas com a diretoria

Esse presidente ainda me enganou porque não me deixou ir para Napoli, Inter de Milão e Roma, que eram times que me queriam. Mais ainda o Napoli e a Inter, que tinham muitos estrangeiros. Mas ele avisou: "Fica que eu vou fazer um bom time"

Sobr as propostas que recebeu

A ideia do Napoli era de me colocar para jogar ao lado do Maradona, mas ele não permitiu isso. Eu fiquei sozinho na Udinese com o Edinho. A gente teve um segundo ano difícil. Eu até teria ficado se não tivesse todos esses problemas com o presidente

E a dupla que nunca aconteceu

Sou 3º artilheiro do Brasil. E ainda dizem que não sou jogador de seleção

Antônio Gaudério/Folha Imagem Antônio Gaudério/Folha Imagem

A influência no tetra

Zico pode não ter ganhado uma Copa do Mundo. Mas olha para a conquista do tetracampeonato de 1994 com orgulho: para ele, a conquista de Romário e Parreira teve um dedo do Galinho.

“A seleção de 1994 tem alguns caras que começaram comigo. Só contando os que eu ajudei diretamente tem cinco: Jorginho, Aldair, Bebeto, Zinho e Leonardo. Essas caras eu vi crescer, ajudei a carreira deles”.

“O Leonardo, por exemplo, entrou no time depois de uma conversa que eu tive com o Carlinhos. Ele treinava com a gente e eu falei: Pode botar de lateral. Ele entrou contra o Vasco e jogou. Com Zinho e Bebeto eu dava toques sobre o que eles precisavam fazer”.

Prova de que os tetracampeões sentiram o apoio foi dada por Bebeto: “A primeira coisa ele fez quando chegou no Brasil foi pegar uma camisa e me entregar. Eu tenho ela lá comigo guardada com os meus troféus. Isso é maravilhoso, esse reconhecimento”.

Steve Powell/Getty Images

E a derrota em 1982?

Nós fizemos de tudo para ganhar a Copa, mas acho que a nossa derrota beneficiou muitos para a frente. Eu só não aceito dizer que não ganhou porque não jogou de forma diferente. Isso não! Só faz aquele futebol quem sabe. Quem não sabe tem que fazer diferente

Sobre as críticas que recebeu pela Copa

Em qualquer lugar o pessoal é apaixonado pela seleção. Será que está todo mundo errado? Futebol é assim, ganha e perde. A Itália ganhou porque já sabia jogar daquela forma. Não o contrário. A gente sabia jogar de outra e perdeu. Paciência

Elogiando os campeões italianos

Copa de 2014: "Era melhor perder do Chile. A vergonha não seria tão grande"

Felipão é culpado? Lógico! É o comandante. Mas ele também é o responsável pela vitória de 2002. Ser comandante tem disso. E eu acho que a ligação Parreira e Felipão não combina. São dois polos que, a meu ver, não se atraem. Mas o cara lá de cima fez o quê? Quem ganhou as últimas Copas? Parreira e Felipão. Vou botar os dois, livro a minha pele e ninguém pode dizer nada

Sobre a Copa de 2014

A seleção hoje, segundo Zico

  • Perdemos tempo com Dunga?

    O Dunga teve oportunidade e depois só trabalhou no Internacional. Não venceu nada de especial e, de repente, volta à seleção? Vale para o Felipão, também. O Palmeiras estava caindo e ele foi para a seleção? Passado é passado. Se jogador não é convocado quando joga mal porque técnico é contratado pelo passado? Nós perdemos dois anos pela não colocação do Tite naquela hora.

    Imagem: Jim Rogash/Getty Images/AFP
  • A seleção de Tite já é favorita em 2018?

    Claro que é cedo. Mas ele arrumou a filosofia. Aconteceu uma mudança de espírito e de treinamento. Eu acho que está no caminho certo. Está colocando em prática tudo o que aprendeu nesses anos todos, tudo o que o transformou em um vencedor. E a gente tem que aplaudir e dar força. Dar força para um cara vencedor é obrigação.

    Imagem: Pedro Martins/ MoWa Press
  • Neymar pode ser o nome da Copa?

    Tomara que seja. E que seja importante para a seleção brasileira. O Brasil tem que conquistar uma Copa do Mundo urgentemente para acabar com essa coisa da geração de 2014. Neymar já podia ter ganho uma Bola de Ouro. É um jogador fantástico. Sou fã. Eu não vejo ele atrás de ninguém, não. Os números estão provando o que ele tem feito.

    Imagem: Evaristo Sá/AFP

Como foi ser diretor do Fla durante o caso Bruno

Zico é ídolo do Flamengo, mas não pretende voltar a trabalhar no clube. Ele já se aventurou uma vez: em 2010, foi diretor-executivo. Durou apenas quatro meses. Saiu falando de pressões internas. Diz que nunca mais vai voltar:

Chance zero, nenhuma. Talvez algum cargo em termos de base, sem ser cargo de resultado”. Ele gostaria de orientar garotos, falar sobre a história do clube, contar um pouco como é ser ídolo. O impacto de trabalhar na linha de frente foi grande.

Um dos motivos foi o caso mais polêmico da história recente do Flamengo: a prisão do goleiro Bruno por assassinato de Elisa Samúdio. “Eu vivenciei isso. Foi um momento muito ruim da minha volta. Eu não tive a oportunidade de conversar com ele antes de estourar aquela coisa toda. Cheguei até a dizer para ele que deveria ser o goleiro da Copa de 2014. Ele estava no caminho para isso”.

Mal sabia eu o que estava acontecendo...”

Washington Alves/UOL Washington Alves/UOL

Bruno foi preso em 2010, condenado a 22 anos de prisão. Foi solto temporariamente em fevereiro, mas já voltou ao cárcere. Enquanto esteve livre, assinou contrato com o Boa Esporte Clube, de Varginha, em Minas.

“Todos temos que pagar pelos nossos atos. Se ele tivesse pago por tudo dentro da lei, não veria problema em ter outra oportunidade. Agora, o problema é que não foi paga toda essa pena. A soltura veio em uma brecha. Acho que foi uma forma de aproveitar, em termos de mídia. Mas deu errado. Estava na cara que isso ia dar errado. Então, eu não acho que foi correta a atitude do Boa Esporte”, opina.

Agência O Globo Agência O Globo

Nunca quis ser técnico no Brasil. Mas foi convidado por grandes

O Flamengo está se reerguendo. Quem chegar agora vai pegar um clube estabilizado. O clube começou agora a fazer investimentos em jogadores, montou uma estrutura fantástica para os profissionais. No passado, jogador mudava de roupa debaixo da caixa da água, dentro de container...

Comparando a situação atual com o passado

Hoje, o Flamengo tem um CT que não fica devendo a nenhum do mundo. O trabalho está perfeito. Eu fico feliz de poder ter mudado, a partir de 2012, essa mentalidade. O saneamento das finanças é positivo. O Flamengo não vai mais aceitar aquela mentalidade ultrapassada que corroía o clube

Elogiando a gestão atual

Antonio Lacerda/EFE Antonio Lacerda/EFE

Candidatura à Fifa foi coisa de momento

Em 2015, Zico foi um dos nomes que tentou concorrer à presidência da Fifa. Com Joseph Blatter afastado e inúmeros escândalos que seguiram ao Mundial de 2014, a entidade vivia uma situação complicada. O Galinho chegou a trabalhar pela candidatura, mas não obteve os apoios necessários.

"Aquilo foi um momento. A vida é feita de momentos. Eu não pensava nisso, mas apareceu uma chance por causa de um apoio possível ao Figo (que também lançou a candidatura). Ele virou candidato e não tinha ninguém da América do Sul. Eu disse ‘vamos ver como é que é’. Uma coisa é você estar de fora. Outra é você ir ali ver como a força funciona. Foi bom para ver como tudo gira”.

Preparado eu estou para qualquer cargo no futebol. Eu te garanto".

Pedro Martins/Agif Pedro Martins/Agif

Zico contra o politicamente correto

Zico é autêntico. E, por isso mesmo, tem opiniões fortes sobre alguns temas. Lembra dele falando das brigas nos vestiários? Se o que fica no vestiário fica no vestiário, ele também é contra a patrulha do politcamente correto. Principalmente no futebol.

"Futebol é torcida, é brincadeira, internet e memes, é gozação, é sadio. Eu não gosto é daquele politicamente correto, que está muito chato. Em tudo na vida. Não podemos falar nada, temos que nos policiar. É duro estar no campo e não poder falar nada, não poder xingar porque tem leitura labial", reclama.

Isso é um nojo. É horrível, entendeu? Parece que não pode andar, parece que está vivendo dentro de um big brother. No meio da rua não pode falar que o cara te filma, te pega, te manda... "

Nós somos seres humanos sujeitos a ações certas e erradas. Ninguém é perfeito. Agora você tem que andar se policiando, isso gera um estresse muito grande. É por isso que hoje tem gente morrendo de infarto com 20 anos. Há uma tensão muito grande em tudo que você faz

Sobre o estresse do mundo moderno

Os humoristas de outra época iam sofrer. Não poderiam falar de uma série de assuntos. Música de carnaval virou um debate... As pessoas estão vivendo em um mundo muito tenso e isso te leva a doenças. A gente tem que se preocupar porque botou algo aqui, amanhã está na internet

Comentando sobre como se policia

Você gosta de ser famoso?

Maior ídolo do Flamengo, um dos maiores artilheiros da seleção brasileira. Zico não consegue andar pelas ruas do Rio de Janeiro, a cidade que adora, sem ser reconhecido. E, como seu protesto contra o politicamente correto mostra, sabe que está sempre sendo observado.

“Eu nunca quis ser famoso, mas me tornaram famoso. É questão de atender a todo mundo como se fossemos íntimos. Isso é difícil. Aparece alguém que eu nunca vi na vida e diz: ‘Ô, Galo, beleza? Como é que está?’ Eu digo que estou bem que está tudo legal. As pessoas gostam de saírem felizes. Receberam um sorriso, um abraço, um autógrafo, uma selfie ou um videozinho”, diz.

Segundo ele, é o mínimo que pode fazer por quem o recebe em casa, pela televisão. “Quando eu entro na casa das pessoas para comparecer a um jogo beneficente ou faço propaganda de um produto meu, estou invadindo a vida da pessoa que está em casa através do vídeo. O cara sente que está conversando contigo. Então, quando ele estiver na rua, por causa dessa ligação, ele vai falar contigo”.

Friedemann Vogel/Getty Images Friedemann Vogel/Getty Images

Exigência para TV: não trabalhar no fim de semana

A nova aventura de Zico é no vídeo. Ele é comentarista do Esporte Interativo. Tem trabalhado nas principais partidas da Liga dos Campeões. "São quase cinco anos. É uma casa aberta. Ninguém diz o que tenho que dizer ou fazer. Vou lá, falo o que vejo. Não trabalho nos finais de semana, exceto na final da Champions", diz. "Meu compromisso é um programa na semana e os jogos da Champions. E acabou. Não queria voltar para aquela vida de jogador. Outras TVs tentaram, mas tem que trabalhar sábado e domingo. Não quero mais isso".

Divulgação Divulgação

Quem tem que ter boa imagem é televisão, não eu

Outra aposta é no YouTube, com o canal Zico 10. São entrevistas e desafios feitos pelo próprio Galinho. "O trabalho no YouTube me fascina. O conteúdo é inspirado no que está acontecendo no mundo, mas não faço personagem. Não adianta dizer para cuidar do cabelinho, para fazer a barba... Quem tem que ter boa imagem é a televisão", fala. "Eu sou uma pessoa normal. Falo o que quero. Brinco da maneira que eu brinco. Fico pau da vida na hora que fico pau. Não quero que tentem me mudar. Fazer alguma coisa para melhorar a imagem. Isso não é comigo".

Zico agora é YOUTUBER...

Mas isso significa que você não volta ao futebol?

Eu gostaria de voltar a treinar um time. Ou então ficar aqui no Rio, perto dos netos, fazendo algo que me dê satisfação

Sobre o futuro

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