"Acho que eu venci"

Lais Souza defende eutanásia, fala sobre sexo depois do acidente e diz que quer ser mãe

Felipe Pereira e Luiza Oliveira Do UOL, em São Paulo

O dia em que tudo mudou

A memória de Lais Souza do dia 27 de janeiro de 2014 começa com ela no chão, olhando para o lado, sem entender o que acontecia. “Pedi ajuda para o meu técnico: ‘Help, help, please’”. Poucos instantes antes a vida de uma das ginastas mais talentosas que o Brasil já produziu mudou completamente.

Naquele dia, Lais treinava para as Olimpíadas de Inverno de Sochi, na Rússia. Estava classificada para ser a primeira atleta do país a disputar a prova de esqui aéreo, modalidade que passou a se dedicar após a ginástica. Descia uma montanha esquiando ao lado do técnico, Ryan Snow, e de sua parceira Josi Santos, quando bateu em uma árvore.

De repente, a memória de Lais volta e ela não está mais no chão, na neve, mas em cima do helicóptero. “Foi aí que eu vomitei e aspirei. E tive uma pneumonia”. A doença é só um dos resultados do acidente. Ela fraturou a vértebra C3 da coluna cervical e ficou tetraplégica, com movimentos acima do pescoço.

Eu lembro, também, deles [paramédicos] pedindo autorização para fazer um furo deste lado da minha cabeça e um deste, para voltar no lugar o meu pescoço”.

Nos meses seguintes, ficou se perguntando porquê. “Precisei de seis meses para me encontrar, entender. Encontrei alguns cadeirantes que já são muito evoluídos  espiritualmente e se encontraram. Depois desse tempo, as coisas melhoraram”.

O UOL Esporte conversou com Lais Souza já com as coisas bem melhores. Ela aceita o que aconteceu, não culpa ninguém pelo acidente e fala de como é sua nova vida, sem o constante movimento dos dias de atleta.

Ela chegou a pensar que seria melhor morrer

Eu estava com vergonha. Saí dos EUA sentada em uma cadeira. Com a minha parte física mudada 100%

Sobre a volta ao Brasil após meses no hospital

Margaret Cheatham Williams/The New York Times Margaret Cheatham Williams/The New York Times
Divulgação/CBDN Divulgação/CBDN

"Eu voltaria a esquiar"

Já são três anos do dia em que tudo mudou. E você acha que ela se arrependeu? “Faria ginástica, faria esqui, faria tudo. Eu estava amando esquiar, amando competir. Estava super, super feliz pela vaga para Sochi (Olimpíada de Inverno). Não sei se teve algum erro, acredito que não. Não dá para prever essas coisas. Acho que se eu voltasse a andar, com certeza eu voltaria a esquiar.”

Não lembrar detalhes do acidente talvez ajude. “Eu não tive trauma e também não tenho lembrança de como foi o meu acidente, se doeu, se não doeu. O corpo bloqueou aquele momento. Não me machuquei pulando, não me machuquei fazendo os mortais”.

Os últimos instantes antes do acidente foram descendo uma montanha ao lado do técnico e da também atleta Josi (que acabou ficando com a vaga de Lais nas Olimpíadas), algo que muita gente faz no inverno. “Eu olhei para trás e falei: ‘Josi, vem de lado’. Estava muito liso. Quando virei, já não lembro mais nada. Meu cérebro deve ter apagado tudo.”

Bruno Miani / Coca-Cola Bruno Miani / Coca-Cola

Por que Lais chora

Lais tem seus dias ruins. Às vezes, chora. “Muitas vezes eu me frustro em tentar me mexer e não conseguir. Mas tem outra parte, também. Na maioria das vezes é financeira. Todo mundo passa por isso, não é só um problema do cadeirante, do deficiente. Tenho certeza de que vocês não fazem tudo o que querem. E até uma pessoa que é super rica também deve sentir falta de alguma coisa.”

Com o tempo, Lais desenvolveu um método para não deixar o desânimo tomar conta. “Se eu estou triste de manhã, pensando em alguma coisa como ‘que bosta, eu nunca mais vou voltar a me mexer’, primeiro eu paro de me perguntar porquê. Depois, eu preencho o meu dia", explica.

Eu não me dou tempo para pensar nos problemas. Só tenho espaço para fazer o dia valer a pena.”

Lais não pode passar mais do que 10 minutos sozinha

Margaret Cheatham Williams/The New York Times Margaret Cheatham Williams/The New York Times

"Sempre fui independente, agora minha mãe troca minhas fraldas"

Lais corria o mundo quando o acidente interrompeu o voo e a obrigou a voltar para a Ribeirão Preto (SP), ao lado de sua mãe, dona Odete. Não foi fácil. “Eu sempre fui muito independente. De repente, fui para casa com a minha mãe e ela cuida de tudo, tudo, tudo. Das minhas coisas e de mim. Literalmente trocando as minhas fraldas. Foi uma adaptação grande, mas hoje a gente se entende quase 100%.”

A adaptação para isso, no entanto, foi grande. Lais precisou evoluir para encarar a nova realidade. “Passei por fases. Primeiro, precisei cuidar da saúde. Depois, me adaptar a uma vida nova. E só então voltei a ter sonhos novos. Foi uma mudança geral. Acho que só passando por isso para explicar mesmo. É quase impossível.”

Lais abre o jogo sobre sexo depois do acidente

Margaret Cheatham Williams/The New York Times Margaret Cheatham Williams/The New York Times

O rótulo de ser gay

Depois do acidente, Lais assumiu uma namorada. A reação das pessoas não agradou. "Não é que eu não goste de falar. Eu não tenho nada contra falar sobre o assunto, mas o momento que eu estava passando era diferente. Ali, era muito mais importante falar sobre a minha lesão do que discutir minha sexualidade". A ex-ginasta não curtiu ser rotulada. "Agora, sou cadeirante e gay, cadeirante e sapatão, cadeirante e bissexual. Fiquei chateada, mas o que eu poderia fazer? Ninguém paga as minhas contas. Mas se quiser, eu estou aceitando". O problema nunca apareceu dentro de casa. Pai, mãe e irmão conheciam a situação e aceitaram numa boa.

Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

O fim do namoro

Lais e a namorada ficaram juntas depois do acidente. "A gente encarou firme, forte e junto. A minha família nunca me deixou, estava do meu lado. E ela estava junto. Mas as coisas foram acontecendo e eu a afastei". Lais não soube lidar com o relacionamento em meio ao turbilhão de mudanças. "Tudo parou. A parte hormonal mudou. Espinha, menstruação. Foi complicado entender. Mas em três anos está bem entendido". Lais diz que os dias de sofrência ficaram para trás e hoje ambas são amigas. "Não me senti preparada para aquilo, mas imaginei que... Sei lá o que eu imaginei... Foram algumas coisas que minha cabeça criou automaticamente. Foi melhor assim".

Eu pensava: "Não posso mais dar a felicidade que ela merecia. Não posso mais dar a liberdade que ela merecia"

Sobre o fim do namoro

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Sem espaço para novo relacionamento

Hoje, Lais Souza tem o coração fechado. Nada a ver com rancor, decepção ou falta de fé no amor. As prioridades simplesmente mudaram. “Não é mais o foco. Eu não consigo imaginar tendo um relacionamento com a vida que tenho hoje. Parece que não tem espaço para dar atenção para a outra pessoa. Por mais que seja gostoso estar em um relacionamento, ter alguém próximo e dar carinho, envolve também os problemas, o lado psicológico da outra pessoa, a paciência...”

A menina que saiu de casa aos dez anos para aprender a dar piruetas e mortais hoje vive um ritmo de vida mais lento. Para ela, é improvável encontrar alguém que se encaixe a isso. “Eu fiquei muito mais caseira. É difícil imaginar alguém comigo. Mas não é impossível”.

O sonho da maternidade está vivo

Lais Souza quer ter um filho. “Uma Laisinha ou um Luisinho”, para usar as palavras dela. É um plano sem data para acontecer porque a saúde é a prioridade total. Por este motivo, ela nem sabe se o plano é viável. Mas a ex-ginasta gosta de criança e diz que o sobrinho tira o melhor dela.

Ocorre que querer nem sempre é poder. “Já está bem difícil assim lidando com a pressão, eu tenho muito enjoo do estômago já, tomo muita medicação, então precisa ser bem estudado para eu poder ter um filhinho.” Adotar ou contar com ajuda de outra mulher para fazer a gestação são possibilidades.

Como é um plano para o futuro, há tempo para pensar. Ela diz que precisa acertar a vida financeira antes de qualquer movimento. “Eu vejo um pouco distante, ainda tem que ser um pouco mais para frente. Enquanto eu não conseguir ter as minhas contas em dia não dá para colocar mais uma pessoínha, né?”

Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

De cobertor no verão

O termômetro de Lais parou de funcionar. Sua sensação de frio ou calor independe da temperatura. Tem dia em que faz calor e, mesmo debaixo do cobertor, ela treme de frio. São coisas que pessoas com lesão na cervical têm aprender a lidar, explica a ex-ginasta. Pressão baixa e suas consequências também são um desafio cotidiano.

“Hoje mesmo eu estou com a pressão muito baixa. Nesses dias, tudo muda. Meu ouvido está um pouco tampado e, ao mesmo tempo, eu estou captando todos os sons que estão no ambiente. Está entupido, mas está sensível. Sei lá, são coisas estranhas que eu acabei trazendo depois do meu acidente. Muito frio ou muito calor, também”.

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Todos os dias eu levanto e penso: vai ser hoje! O dia inteiro eu fico tentando mexer a minha mão. É o primeiro sonho. A primeira coisa que eu penso. E isso acontece todos os dias

Sobre a força de vontade para recuperar os movimentos

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O banho para Lais é muito mais importante do que para você

O valor das coisas muda conforme as experiências de cada pessoa. A maioria imagina que não poder se lavar sozinho é um martírio. Mas eventos extremos, como não mexer o corpo do pescoço para baixo, mudam essa perspectiva.

“No começo, eu tomava banho de leito, deitada. Quando fui para uma cadeira e me colocaram debaixo do chuveiro... Foi a melhor coisa. Não tive essa rebeldia de reclamar de não conseguir fazer nada. Até porque foi muito difícil ficar no hospital. Muito difícil”.

O raciocínio vale para outras situações. Lais chegou a ser alimentada por sonda e respirar por aparelhos. “Eu comi o pão que o diabo amassou primeiro. Depois, conforme fui deixando essas coisas para trás, tudo foi melhorando. Hoje eu tenho uma vida que eu considero normal. Faço tudo o que eu tenho vontade. Com alguém ao lado, óbvio”.

Quando estava internada, tinha um monte de fios no meu braço, agulha, catéter para todo lado, traqueostomia, o barulho das máquinas. Acho que eu venci, né? Pensando assim foi uma recuperação rápida até...

Sobre sua vida hoje, sem tantas limitações

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Cada xixi vale R$ 3,20

A condição de tetraplégica inseriu uma nova rotina na vida de Lais. Até coisas banais como ir ao banheiro mudaram. “Dia sim, dia não eu coloco supositório e aí eu consigo ficar mais tranquila e não fazer cocô na rua. E xixi também. A cada 4 ou 5 horas, até 6 horas, eu posso ficar sem passar a sonda.”

Mas ir ao banheiro se tornou um incômodo. “Às vezes é chato. Meu dia está super legal, passam 4 horas animais e... vamos fazer xixi. E eu AAAIII... Porque aí tem que parar: deita a cadeira, sobe o pé, tira a calça, coloca a sonda e espera. Aí volta tudo de novo. Tem que parar uns 15 minutos para o xixi. E são seis xixis. Faz as contas. Uma hora e meia no dia para o xixi.”

Ela ainda lembra que precisa pagar para ir ao banheiro. “Fora o preço da sonda (R$ 3,20, cada uma). Mas o supositório é mais caro ainda.”

Apertada de grana, Lais teve ajuda de Luciano Huck e Neymar

Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Quando você lembra que têm pessoas em condições piores...

A pessoa acaba de sofrer um acidente, estava na cadeira e a família não tinha condições de pagar nem a alimentação. Isso me deixa triste, sabe? Porque é a realidade de milhões de brasileiros

Colocando seu problema em perspectiva

Já ouvi histórias em que a família largou a pessoa no hospital depois de um acidente. Largou o rapaz no hospital e ele não tinha ninguém para cuidar dele. Só as enfermeiras se preocupavam

Comparando seu caso a outros

Uma criança nasce com uma deficiência e a família pede ao governo uma cadeira de rodas. Até a cadeira chegar, ela já está velha, já está grande e a cadeira está lá e não serve para nada

Sobre as dificuldades de conseguir apoio

A aposentadoria polêmica

O governo federal aprovou um benefício vitalício para Lais Souza. Houve quem reclamasse e ela não tira a razão destas pessoas. "Eu entendo quem acha injusto que eu receba e outros não. Entendo 100%. Se não tivesse acontecido comigo, eu também tentaria entender, tentaria me colocar numa posição e entender".

Pela lei aprovada, Lais recebe R$ 4,3 mil por mês. Mas o valor não paga nem os remédios. “Hoje, o que eu recebo é o meu medicamento. Então, chegou na minha mão vai tudo para a medicação. Tudo, tudo. E eu ainda inteiro com R$ 600”.

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Ao mesmo tempo em que perdi o medo de morrer, aprendi a dar valor para outras coisas, como estar com quem gosto e ao lado de pessoas inteligentes

Sobre sua nova percepção de vida

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