Personalidade forte

Abel Braga fala do Flu, mas também discute vinho, violência, Moro, Cabral e até Ditadura

Leo Burlá Do UOL, no Rio de Janeiro
Luciano Belford/AGIF

"Converso sobre tudo, mas o que menos discuto é política"

O técnico do Fluminense é um cara sincero. Se perguntado, ele responde. Em uma longa conversa com o UOL Esporte, ele falou sobre sua vida no Rio de Janeiro, sua adega (muito bem abastecida) de vinhos, o apartamento que o fez ficar no Rio e, claro, futebol.

Ele também disse que não gosta de falar de política, mas opinou bastante. Admitiu a tristeza com a situação do país e o espanto quando soube de todas as irregularidades do governo Sérgio Cabral (“Conheci muito bem o pai. Assusta um pouco”). Admitiu, também, que nunca foi combativo e até questionou se na época do regime militar a situação não era mais honesta.

Concorde ou não com suas opiniões, ele faz questão de deixar claro o que pensa.

Divulgação/Photocamera Divulgação/Photocamera

"Não falo de futebol com quem não conheço"

Quando você pensa em um técnico de futebol, é normal esperar uma conversa sobre esporte. Mas não com Abel Braga. Aos 64 anos, ele prefere escolher os assuntos que vai debater de acordo com seu interlocutor.

“Converso sobre tudo um pouco, mas o que menos discuto é política. O que mais discuto é futebol, mas não gosto de falar de futebol com quem eu não conheço. Às vezes, acham que sou sério. Se alguém faz um comentário na rua, eu não gosto de entrar. Mas com quem tenho amizade, acho legal. É bom explicar de uma maneira que o cara consegue entender. E os amigos têm paciência”, explica.

Apolítico. Mas discute tudo...

  • "Queria discutir mais, gritar mais"

    O que menos discuto é política. Ouço muito mais. No fundo, sou meio revoltado por ser apolítico. Eu não tinha essa revolta em mim, mas agora tenho. Eu queria discutir mais, gostaria de gritar mais, gostaria de estar falando um montão de verdades agora. Mas não vai me fazer bem. Eu leio muito, e tem um momento em que a televisão não sai do Globonews...

    Imagem: Alexandre Lops/Divulgação/Inter
  • Sérgio Moro é ídolo

    Camarada, você vive de exemplo. Você se forma a partir de exemplos e condutas. Qual exemplo bom você tem nesse país? Nosso grande ídolo hoje quem é? É o Moro. É o ídolo do país. E meu também. Parece ser uma pessoa que está lutando contra uma nação. Esse cara tem que ter um busto em todos estados desse país. Em todas as grandes cidades. Eu, sinceramente, não gostaria que fosse ele. Gostaria que fosse o Roberto Carlos, a Nana Caymmi, o Neymar...

    Imagem: Heuler Andrey/Dia Esportivo/Estadão Conteúdo
  • Ditadura e o caos atual

    Eu não tenho medo de falar de política. Tenho medo de andar na rua. No sinal parado, tenho um cuidado desgraçado... Eu era apolítico na adolescência, mesmo durante a Ditadura. Era um momento em que as causas eram mais justas e os problemas eram pequenos. E eu não concordava com aquilo. Mas, te juro: pode ser que hoje seja um dos milhões que reclamam que com a Ditadura não estaria esse caos que está. Essa é a verdade: perdeu o controle. Então, como eu fui apolítico naquele momento que era muito mais tranquilo, com restrições democráticas e de manifestação, agora eu só me decepciono.

    Imagem: Folhapress
  • Corrupção no Rio assusta

    Não falo com 100% de convicção que não vou sair do Brasil. Dessa vez, quando começou esse escândalo todo, com Petrobras, Lava Jato... A sacanagem transcende. Olha o governador do Rio (Sérgio Cabral). Eu conheci muito, muito, muito bem o pai... Assusta um pouco.

    Imagem: Rodrigo Félix/Agência de Notícias Gazeta do Povo/Estadão Conteúdo

Um tio meu sempre me falava: quando um homem passa do meio século de vida, fica devendo o que viver depois. Eu já estou devendo alguns anos. Gostaria que meus filhos tivessem uma vida melhor. Mais segura. Com mais certeza do ir e vir

Sobre a violência no Rio de Janeiro

Entre Portugal e Rio de Janeiro

Débora Costa e Silva/UOL Débora Costa e Silva/UOL

Todo esse dissabor com o Rio fez com que Abel repensasse a vida. Após morar em Portugal e França, chegou a pensar em trocar o país pela Europa definitivamente. Mas o amor (pela mulher, Cláudia, e pelo Rio) não deixaram: "Moramos em Portugal por cinco anos e meio. Nós não ficamos porque ela queria morar em Lisboa e eu queria ficar na Cidade do Porto. Aí viemos embora. Mas chegou um momento, do Rio e do Brasil, em que falei para ela: 'Vamos embora. Como nossos filhos e netos vão viver? Se não está dando para viver agora, como vai ser daqui a 10 anos?' Só piora, não tem melhora nunca?".

Júlio César Guimarães/UOL Júlio César Guimarães/UOL

"Aí o apartamento [no Leblon] foi ficando pronto. Hoje, fico muito mais em casa. Saio menos para jantar do que antes. E pensei: Vou dar as costas para minha cidade? Essa cidade maravilhosa? Não posso. Como sempre fui um otimista, achei que seria covardia dar as costas para a minha cidade", diz. "No meu apartamento eu vejo o mar, o [morro] Dois Irmãos, o Cristo... Para que sair daqui. Andando eu vejo tanta coisa absurda. Saio menos, mas vivo mais. Mas tem outro lado. Você fica num mundo restrito, pequeno. Saio menos e conheço menos gente. É o preço do país, dos políticos?.

NELSON PEREZ/FLUMINENSE F.C NELSON PEREZ/FLUMINENSE F.C

Um "bon vivant"

Fora do futebol, as paixões de Abel são a música e a gastronomia. Mas com os amigos, o que ele gosta mesmo é compartilhar um bom vinho. “Hoje, tenho uma adega de 400 garrafas no meu apartamento novo. Sempre faço degustação em casa, toco um piano....”

O negócio é levar vinhos com custo benefício legal. Pagar 300 pratas num vinho é mole ser bom...Essa é minha vida”.

Foi esse gosto que o levou a entrar no ramo de restaurantes. Em 2013, por exemplo, ele abriu um restaurante no centro do Rio de Janeiro, o Uniko. Foi o segundo: quando era treinador em Portugal, ele também teve um restaurante.

“No fundo, isso é o que eu mais gosto. Estar em restaurante com os amigos. Amizades você não escolhe, elas aparecem. As grandes amizades que tenho vieram do vinho. Não tem um cervejeiro, um do whisky: é tudo pessoal do vinho, que discute vinho”.

João Caldas Fº João Caldas Fº

Sempre vou ao teatro com alguns amigos. A melhor coisa que vi em anos foi a peça do Dan Stulbach [Morte Acidental de um Anarquista]. Fiquei esperando para dar um abraço e tirar foto com ele. Saí dali viajando.  Como é bom ver uma grande interpretação... É um negócio sensacional".

REUTERS/Nacho Doce REUTERS/Nacho Doce

Tudo começou no Maracanã

Mas, como Abel Braga é um técnico de futebol, futebol não podia deixar de entrar na conversa. E veio justamente unindo esse amor pelo Rio de Janeiro e pelo esporte. O centro disso é o Maracanã, o lugar mais importante para a carreira do treinador.

"Tudo começou na minha vida no Maracanã. Com nove anos, eu vi Santos contra Milan”.

É por isso que o treinador ficou indignado com o que aconteceu com o estádio nos últimos meses. “Quando vi as fotos do Maracanã com depósitos de lixo... Cara, aquilo me fez um mal. Não consigo me calar quando vejo os grandes clássicos disputados fora do Rio de Janeiro. Nada disso me conforma, mas ver acontecer no meu país e na minha cidade”.

Site Oficial do Fluminense Site Oficial do Fluminense

"Jogador comum"

"Talvez, com toda a mídia que tem hoje, eu fosse considerado um pouco melhor. Mas eu sempre me achei um jogador bem comum. Para os meus jogadores, eu tento mostrar que joguei por anos. Fui o primeiro campeão em Cannes, levantando taça. Disputei pré-olímpico, Olimpíada, Copa do Mundo. Joguei na França, no PSG, fui treinador do Marseille. Nada veio de mão beijada. Foi ultrapassando obstáculos".

Junko Kimura/Getty Images Junko Kimura/Getty Images

A proposta mais indecente

Um dos obstáculos a que Abel se refere aconteceu em Portugal. Em cinco anos no país, ele conseguiu dois acessos à primeira divisão, com o Famalicão e com o Belenenses. Mas durante esse período, ele recebeu a proposta mais indecente de sua carreira:

Quando cheguei ao Famalicão, tinha um jogo marcado contra o Freamunde. Nós nos preparamos para o jogo, eu fiz a palestra e mostrei o vídeo. Aí, antes de começar, o presidente me chamou:

“Nós não podemos ganhar o jogo, temos que empatar. Nós combinamos, temos que empatar”. Eu respondi: “Não vou falar isso para os meus jogadores, você fala com eles”.

Ele foi lá e falou. Fomos para o jogo e os adversários logo perderam um gol. Mas dava para ver que estavam tentando. Aí eu gritei para os meus jogadores: “O negócio é à vera. Essa história é mentira. Vamos para dentro deles”.

Por incrível que pareça, o jogo acabou empatado. Eu me vi tão transtornado que não fiquei nem no banco. Fiquei perto do delegado do jogo. Ele disse que eu não podia ficar ali e eu falei que estavam atirando areia no banco. Fiquei revoltado. Agi errado. Não devia ir para o banco. Foi a pior coisa que aconteceu.

Almeida Rocha/Folhapress Almeida Rocha/Folhapress

"Não entendo a violência de torcedor organizado"

Essa indignação também aparece em outros aspectos do esporte, como na violência das torcidas organizadas. “Vi na TV um quadro muitíssimo interessante sobre organizadas. Meu Deus do céu. não dá para entender um ser humano falando que trabalha de segunda a sexta e, no sábado e no domingo, não quere saber de nada e sai sabendo que vai brigar e matar outra pessoa. E ainda falar depois: “Segunda volto a trabalhar normalmente. Mas se eu encontrar dois, três caras de outra torcida eles vão me matar”.

“O que que é isso, gente? Me deram muito pau quando eu apoiei a torcida única. É uma maneira educativa. Se tem tudo e isso não acaba, de repente a torcida única vai educar as pessoas”.

Você deixa seu filho ir no futebol de camisa? Eu não deixaria nem para pegar o metrô para ir para a faculdade... Aparecem dois ou três malucos de outro clube e arrebentam ele na porrada. E é sempre assim. Três, quatro ou cinco contra um. Nesse programa que vi, um vem com um bastão escondido, outros dois com camisa de outro time. Estavam em sentido contrário. Um deu um soco no cara, o outro caiu de pau. Toda essa situação ruim na educação, na saúde, está sendo descontado no futebol. É uma situação problemática

Sobre a violência no futebol

REUTERS/Paulo Whitaker REUTERS/Paulo Whitaker

A incômoda fama de ser vice...

Hoje, Abel é considerado um dos maiores treinadores do Brasil. Mas nem sempre foi assim. Em 2004, com o Flamengo, ele perdeu a final da Copa do Brasil para o Santo André. No ano seguinte, voltou à decisão do torneio com o Fluminense. E perdeu para o Paulista de Jundiaí. "A gente só sabe o gosto da vitória quando conhece o sabor da derrota. As pessoas me chamavam de vice. Meu filho falava: 'Pai, os caras falam que você só é vice'. Eu falava: 'Filho, o pai chegou ganhou estadual e chegou na final da Copa do Brasil com o Flamengo. Mudou de clube e ganhou estadual e chegou na final da Copa do Brasil de novo. O pai não pode ser tão ruim assim, né'".

Alexandre Lops/Divulgação Inter Alexandre Lops/Divulgação Inter

...e o trabalho que mudou tudo

"Cheguei ao Inter com esse estigma. Aí, vem 2006 e uma Libertadores e um Mundial. Eu precisei viver aquilo. Talvez tenha conduzido de uma forma diferente, foi uma final com o São Paulo, não com um time qualquer. Só perdi para a LDU na Libertadores", lembra. "E o Mundial dispensa comentários. A gente vai dando exemplos e sempre dizendo para eles que não existem histórias de vida iguais. A minha é diferente da do meu irmão. Diziam que ele jogava mais bola que eu. Quando eu estava no infantil, levei para o Flu. Mas quando passei para o juvenil, falei para ele largar. Ele ia fazer medicina. Passou para a federal e é um médico muito bem conceituado".

Alexandre Lops/AI Inter Alexandre Lops/AI Inter

Decepção no Inter em 2014

Apesar de ter vivido o melhor momento de sua vida como treinador no Inter, também foi no clube gaúcho que teve uma de suas últimas decepções. Aconteceu entre 2014 e 2015.

“Algumas decisões me causam decepção grande, mas não fica rancor ou mágoa. Vou citar um exemplo: o Inter em 2014. No último jogo de 2013, o Inter não caiu de divisão e me chamaram para a temporada seguinte. Era praticamente a mesma equipe. Ganhamos o Gaúcho sem estádio por causa da Copa. Aquele time que quase caiu terminou em terceiro no Brasileiro. Mas veio a eleição e houve um racha na volta do Vitório (Pífero, presidente até 2010 que foi eleito em 2014). Nada mais óbvio que, após seis passagens no clube, eu fosse mantido como treinador. Mas eles ficaram blefando. Depois de dez dias, ninguém tinha me preocuardo. Chamei um amigo com uma van, botei minhas coisas pessoais e mandei levar para o Rio. Fui do Rio para Miami e para Nova York.

"Entre o dia 15 e 18 de dezembro, o Vitório liga e pergunta: ‘E aí, chega quando?’. Respondi que chegava no Rio perto do Natal. Aí ele responde: ‘Estou falando aqui’. Eu digo: ‘Aqui aonde?’. Naquele momento, achei uma ironia tão absurda..."

O pessoal estava com a esperança de levar o Tite e eles blefaram comigo. Disse que não ia mais para lá e avisei que já tinha dado minha palavra para o clube árabe. Mas eu fiquei louco. Tinha me programado para ficar dois ou três anos no Inter

Sobre a saída do Inter em 2014

MAILSON SANTANA/FLUMINENSE FC MAILSON SANTANA/FLUMINENSE FC

"Trabalhei nos quatro grandes. Mas identificação com Flu é maior"

Hoje, Abel Braga está no Fluminense. Ao lado do Inter, o clube com que tem maior identificação. Ele é, atualmente, o terceiro treinador com mais jogos pelo clube e pode superar o segundo da lista, o uruguaio Ondino Vieira, com 300 jogos.

“Já tinham me falado que estou perto de ser o segundo técnico com mais jogos pelo Flu. Espero cumprir meu contrato. Se cumprir, bato isso de longe. A média é de 60 jogos por ano. Isso eu quebro no Brasileiro. É uma marca legal”.

“A identificação com o Fluminense é muito grande. É muito bom adquirir uma identidade com um clube. Já trabalhei nos quatro grandes do Rio. Não joguei no Flamengo, mas treinei os quatro. A identificação com o Fluminense é maior”.

Nelson Perez / Flickr do Fluminense Nelson Perez / Flickr do Fluminense

"Aqui está sendo o melhor trabalho de todos"

Comecei nesse clube e Isso ajuda um pouco. Minha função é extremamente complexa. Está muito pesado ser treinador aqui. Então, ter essa cumplicidade minimiza a pressão. Você não é chamado de burro na primeira mexida, demora mais. Aqui está sendo o melhor trabalho de todos pela situação financeira do clube, que está passando por uma reestruturação muito legal

Avaliando o Fluminense em 2017

O Fluminense vai se reerguer rapidamente, não tenha dúvidas. Está sendo muito bem administrado. Claro que tem um reflexo em campo. A gente gostaria de ter um time mais cascudo, mas esses garotos estão virando cascudos muito novos. Estamos fazendo uma campanha surpreendente

Elogiando seu jovem time

No início do ano, o presidente reuniu o grupo e colocou as coisas de forma clara. Isso teve peso. Jogador gosta de verdade. Outra coisa: na primeira derrota, o presidente cumprimentou um a um. Disse a ele que nunca tinha visto aquilo. E olha que estou há muitos anos aí. Foi de uma grandeza extraordinária

Falando do presente do Flu, Pedro Abad

Alexandre Lops/AI Inter Alexandre Lops/AI Inter

Aposentadoria: "só ficar em casa vai ser um saco"

Aos 64 anos, Abel admite que já pensa em aposentadoria. Quando? Ele não tem ideia. E usa a sua rotina atual, que ele diz adorar, para responder. “Vai chegar o momento. No ano passado, fiquei um ano enchendo o saco da minha mulher e ela não aguentava mais”.

“Cheguei em casa um dia desses, tomei um banho. O livro do Guardiola já estava na cabeceira e coloquei os gols das Eliminatórias da Europa na TV. Minha mulher virou e falou: ‘Mas já futebol?’. Eu falei: ‘Não vi os gols, estava dando o treino. Deixa eu ver os gols’. É um negócio complicado. É muita cachaça. Joguei futebol sem querer. Fui parar no Flu não sei como... Mas ser treinador é uma paixão louca”.

O dia em que eu perder essa paixão eu vou largar. Mas hoje eu apito treino, não mando o auxiliar fazer. No dia em que perder isso, vou pensar em outra coisa. Só ficar em casa vai ser um saco”.

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