Ele salvou a música

Criador do rock gaúcho, produtor dos Raimundos e jurado na TV: Miranda foi fundamental na música brasileira

Alexandre Matias Colaboração para o UOL
Eduardo Anizelli/Folhapress

Parece exagero, mas não é: a música brasileira como a conhecemos hoje não é um mar de lixo comercial descartável desde os anos 90 porque um gaúcho resolveu mudar de lado. O bonvivant Carlos Eduardo Miranda, que morreu nesta quinta-feira um dia após completar 56 anos, não era apenas um contador de causos, fanfarrão e jurado de TV, como a maioria das pessoas que o reconhecem o conheceu. Era um jornalista que preferiu ir para o lado das notícias em vez de esperar elas acontecerem. 

Virou um dos agentes culturais mais importantes do país nos últimos 30 anos, esteve próximo da maior parte dos nomes importantes de nossa cultura recente e pilhou artistas e produtores a sair da mesmice e ousar.

Ele já havia ajudado a inventar a cena de Porto Alegre no meio dos anos 80, quando começou a produzir bandas que nem sabiam que era preciso ter um produtor para se gravar um disco, colocando no mapa nomes como Replicantes, Defalla, TNT, a rádio Ipanema, o Bar Ocidente e, indiretamente, os Engenheiros do Hawaii, uma das bandas que ele mais odiava. Não é exagero dizer que ele inventou o rock gaúcho como o conhecemos hoje

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Um grande contador de causos

Miranda mudou-se para São Paulo no fim dos anos 80 e começou a explorar outra de suas facetas: a de causador. Mentia que era o filho bastardo de Carlos Imperial (o cara que inventou Roberto Carlos, a Jovem Guarda e Wilson Simonal) e passava dias sem comer para gastar dinheiro só com bebida. 

Ficou amigo dos caras mais legais de São Paulo, dividia um apartamento no Largo da Batata com o músico Skowa e aprontava as piores peças para os melhores amigos e piores desafetos. Aos poucos se juntava aos piores vagabundos da cidade, agregando outros que vinham de fora, criando uma cena bizarra e barulhenta que circulava ao redor do falecido Aeroanta, perto de sua casa. 

Inventava conceitos e cenas, projetos e brigas e aos poucos engrossava o caldo underground de São Paulo ao misturar Sepultura com Yo-Ho-Delic, RipMonsters com LittleQuail, Volkana com Okotô, Graforreia Xilarmônica com Pitbulls on Crack. 

É mítica (e impublicável) a saga do festival que organizou no estacionamento do Pacaembu quando convenceu o dono do hotel Maksoud a liberar quartos de hotel - e consumação - para todas as bandas que iriam tocar no evento. A situação, claro, virou o caos e foi parar na polícia - enquanto Miranda, preso com todo mundo, ria. 

Raimundos sim, Mamonas não

Ele começou a escrever nas falecidas revistas Set e Bizz, onde aos poucos tomava conta de áreas bem específica: resenhava filmes pornô para a Set e bandas barulhentas para a Bizz. Foi na redação desta última que deu seu golpe mais emblemático. Andava para cima e para baixo com fitas cassete de bandas iniciantes e tocava para quem lhe desse atenção - e cobrava a atenção de todos que conhecia. 

Assim, bem antes do MP3 e da popularização da internet, ia aplicando sons de artistas como Raimundos, Chico Science & Nação Zumbi, Pato Fu, Skank, Plane tHemp, Maskavo Roots, Mundo Livre S/A, entre muitas outras, quando estas eram nomes desconhecidos até em suas cidades. Até que convenceu os Titãs a lançar todas aquelas bandas pelo preço que o grupo paulista gravaria um único disco. Foi assim que criou o Banguela e, de quebra, a cena do rock nacional dos anos 90

A vontade de fazer as coisas acontecerem era tanta, que ele liberou Chico Science & Nação Zumbi e o Planet Hemp para a Sony, mesmo sabendo do potencial comercial de ambos. Mas não conseguia lançar tudo - e teve que abrir mão de algumas bandas queridas. E queria que as bandas boas fizessem sucesso - e não apenas lançar artistas com potencial comercial. Tanto que orgulhava-se de ter declinado lançar os Mamonas Assassinas. Por quê? “Porque era uma merda, claro”, repetia

Do Banguela, fundado na major Warner, foi para a antiga Polygram, onde lançou o selo Excelente Discos e tentou emplacar outra banda popular, os Virgulóides. De lá foi para a Trama, onde abriu o selo Matraca, que lançou a carreira solo de Otto (ex-percussionista do Mundo Livre), Thaíde & DJ Hum, os Cowboys Espirituais do ex-Graforreia Xilarmônica Frank Jorge, a encarnação gringa de Júpiter Maçã (o Jupiter Apple), o Sheik Tosado do Recife, entre outros. 

Também estabelecia sua carreira como produtor musical dirigindo artistas que tinha visto nascer, como Skank e O Rappa, além de pegar na mão novatos que despontaram no século 21, como Cansei de Ser Sexy, Móveis Coloniais de Acaju, Cordel do Fogo Encantado e lançar um repositório de MP3 para bandas iniciantes, a Trama Virtual, anos antes do MySpace surgir exatamente com a mesma ideia. 

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Um ídolo na TV

Depois disso, Miranda passou uma temporada exercendo seu papel de Pedro de Lara, fazendo o jurado bufão e caricato em programas de TV aberta como "Ídolos" e "Astro", que usava sua verve para mandar a real sobre calouros esnobes e a levantar a autoestima dos tímidos - exatamente como fazia com quaisquer outros artistas, longe das câmeras. 

Nesse meio-tempo, também estabeleceu-se como apresentador do festival Bananada, entusiasta da cena paraense (onde liderou o espetáculo Terruá Pará por várias edições) e o selo Stereomono dentro do projeto SkolMusic, onde lançou Mahmundi, Boogarins, Marrero e Jaloo. E sempre com um sorriso no rosto, contando histórias, indicando discos, filmes e HQs, colecionando bonequinhos e fartando-se de comer bem. 

Jornalista ativo, detectava as pautas ao mesmo tempo em que as fazia acontecer de fato, e assim mudou a cara da música brasileira. Como o próprio Carlos Imperial ou Nelson Motta anos depois, Miranda está umbilicalmente envolvido com a cena de seu tempo e inventou esse pop bizarro e torto que hoje sobrevive à margem da música mais despudoradamente comercial produzida no Brasil. 

A última conversa

Tive a felicidade de ser seu amigo e conversei com ele nesta quinta-feira mesmo, quando ele me ligou para falar da péssima fase de saúde que, acreditava, estava saindo. Passamos uma hora no telefone, quando ele me falou do que estava ouvindo (amou a música que a MC Carol lançou homenageando a vereadora assassinada Marielle Franco) e dos planos para após sair daquela má fase. Quase desabei quando, no meio de um show, fiquei sabendo que ele havia morrido, subitamente, entre seus familiares. 

É um dos nomes mais importantes da música brasileira dos últimos trinta anos e uma das cabeças mais abertas - e gentis - que pude conhecer. Além de um exímio gozador e de gostar de ver o circo pegar fogo. Fui ao seu velório e ver seu corpo ali sem vida inevitavelmente mexeu comigo, mas logo pensei em sua vozinha contorcida fazendo troça comigo: “Tira um selfie agora comigo, Matias”. Chorei e sorri. Sorri ainda mais ao sair da cerimônia e, na esquina, me deparar com o mesmo Maksoud que Miranda quase havia posto abaixo há um quarto de século. O dia estava claro, o sol forte e bateu uma alegria de saber que ele havia vivido a vida que quis. Sorte nossa.

As homenagens dos artistas

Perdemos nosso guru! Um homem sem fronteiras, explorador do estranho, esquisito e legal! Nosso Rick Rubin!

Digão, do Raimundos

Digão, do Raimundos

Posso dizer sem nenhum exagero que esse grande amigo que partiu hoje, foi uma das figuras mais importantes da história do Skank e por certo do rock brasileiro dos 90.

Samuel Rosa, do Skank

Samuel Rosa, do Skank

Ele era antes de tudo um amante da arte. Jornalista, músico, produtor e mais do que tudo, um grande agitador cultural. Produziu o nosso Acústico MTV, um dos discos do qual temos mais orgulho.

O Rappa

O Rappa

Esse cara me ensinou muito sobre ser artista. Ele sempre acreditou na música do Pará. Eu vou lembrar do seu coração amoroso.

Gaby Amarantos

Gaby Amarantos

Tristes por nos roubarem o que prometia ser um dos momentos mais felizes: ouvir junto com Miranda o novo disco e presenciar suas reações.

Mundo Livre S/A

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