Brown não está moscando

"Já falei pra caralho. Agora só a música pode nos salvar"

Tiago Dias Do UOL, em São Paulo
Klaus Mitteldorf/Divulgação

Desde que resolveu colocar uma boina, arriscar uns passinhos no palco e cantar sobre o amor, Mano Brown deu um nó na cabeça do público. É como se aquele homem, que um dia meteu a mão na cara do sistema, não pudesse sorrir e cantar o amor com a mesma contundência. Para Brown, é um yin yang da mesma revolução: 

"Eu mudo a batida, mas a luta pela Justiça é a mesma".

É a bordo de "Boogie Naipe", seu primeiro disco solo lançado em 2016, indicado ao Grammy Latino e eleito melhor show pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), que Mano Brown volta ao festival Lollapalooza. Desta vez em horário nobre: às 18h20, no entardecer de sábado (24), pouco antes dos shows de Imagine Dragons e Pearl Jam.

O clima de instabilidade política e as notícias de extrema violência não devem lhe tirar o foco. Acompanhado por 14 músicos no palco, o show é pura celebração da música negra. Algo que, para ele, é a salvação para tempos tão obscuros.

Na leitura a seguir, Mano Brown comenta quatro assuntos que têm norteado seus últimos dias. Mas alerta:

Eu não estou querendo dizer muita coisa. Eu já disse muita coisa, para falar a verdade. Já falei coisa pra caralho. E hoje em dia é o seguinte: quem fala demais dá bom dia pra cavalo, tá ligado? Agora só a música pode nos salvar

Gisele Sanfelice/Divulgação Gisele Sanfelice/Divulgação

Gatinho no Instagram

"As pessoas têm se interessado mais pela polêmica, por alguma declaração, pelo meme do gatinho... A música mesmo é supérflua. Eu não quero que isso pareça reclamação de forma alguma, porque sou um cara que não tem recalque de nada. Sou um cara abençoado. Eu falo isso é pela música mesmo. 

A humanidade fez muitas coisas ruins, mas faz coisas boas também. Você para pra ouvir a música preta dessa época, e fala: 'Pô, foi Deus quem fez essa música do Barry White. Foi Deus tirando onda de Marvin Gaye. Então música para mim é sagrado, e a música negra é minha religião, é minha mãe, sou eu, é o Racionais.

Quero compartilhar uma coisa que eu amo, que é a música. Se você é um cara cristão, você fala de Jesus para as pessoas. Eu sou um amante do funk e quero levar o funk e o soul para as pessoas, cantado em bom português, em bom brasileiro, no dialeto da quebrada. E se for possível ser amado, como diz Jorge Ben.

Agora, aquele filtro de gatinho [acionado, sem querer, quando tentou fazer uma live em seu Instagram e acabou aparecendo para centenas de fãs com uma animação de gatinho no rosto] rendeu boas risadas, até vir uma onda de ataques nas redes sociais. Ali era só ficar ligeiro e já era. Eu não levei a sério. Eu [estava] lá achando engraçado e tal, e as pessoas achando uma maneira de desmoralização."

Sentimento de luto

"Hoje a periferia está pedindo segurança, não é Justiça. A periferia quer pena de morte, quer votar no [deputado federal e pré-candidato à Presidência, Jair] Bolsonaro. A periferia está concordando com o impeachment da Dilma sem querer saber o que aconteceu, não quer conhecer candidato nenhum, quer votar e já era.

Isso é um erro. É suicídio isso aí. Eu digo que estou de luto porque a maioria sempre vence e a maioria é que está fazendo isso. 

Eu sou um grão no oceano, eu sei que está cheio de candidato a super-herói, mas eu não sou, quero deixar bem claro. Eu era feio, pobre, magro, medíocre, com poucas ideias sobre raça e política. Mas eu era um rimador, batuqueiro, o dom divino que Deus me deu da África. Nunca fui intelectual, gênio, nunca fui um cara acima da média, em momento nenhum fui. Eu sou um cara com o sentimento na ponta da chuteira.

Mesmo quando eu falo merda, eu falo do coração. Não premedito, não sou calculista. O Mano Brown é uma pessoa, não é um personagem. Eu penso, eu discordo, eu falo. Não tô nem aí, pega eu e já era.

Jean Carvalho Cruz/Divulgação Jean Carvalho Cruz/Divulgação
Klaus Mitteldorf/Divulgação Klaus Mitteldorf/Divulgação

A luta de todo dia

"As pessoas precisam de um rótulo, de algum ícone para seguir, algum grande acontecimento para mudar. Todo mundo pode ser ícone e pode fazer a transformação e a revolução das maiores e das menores utilidades.

O que eu digo é: seja bem-vindo ao mundo da luta. Lutar pela igualdade, essa é a luta de todo dia. Você não precisa fazer isso dentro de um partido, morou?

Você vê pessoas lutando por coisas individuais mesmo, por conforto. Todo mundo se dói: 'Ah, o pessoal do rap está falando de nós'.

Não, o mundo não gira em torno do rap, não gira em torno do Brown.

Antes, a gente não cantava pedindo polícia, não cantava pedindo cadeado no portão, guarita na esquina. A gente cantava por igualdade, por comida para quem tinha fome, abrigo para quem não tinha. Aí os católicos se apoderaram, a igreja evangélica se apoderou, a esquerda se apoderou. Era por isso que a gente cantava em 1989. Era o óbvio."

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Fim dos Racionais?

Eu quero saber onde estão essas férias aí porque eu estou trabalhando que nem um cavalo

[Brown ri quando o assunto são as férias coletivas dos Racionais, anunciado na imprensa pelo companheiro de banda KL Jay. Quem conhece a caminhada do grupo sabe dos longos ciclos pelos quais os integrantes entram entre um disco e outro, mas a notícia caiu como uma bomba entre os fãs]

"[Essa pausa] É para deixar o Racionais respirar. Acho que o Racionais está um pouco à frente, incompreendido ainda. Sempre foi assim. Talvez o momento seja de pensar e rever conceitos. Mas eu não estou de férias. Estou ensaiando, montando parcerias novas, escrevendo. Essas férias coletivas eu protesto, viu, KL Jay? Há controversas.

O Racionais nunca foi só o som, e de um tempo para cá parece que o som é o que menos interessa. Acabou ficando uma coisa desinteressante, quando a música não é mais o que interessa, eu também não me interesso. A música mesmo é supérflua, e eu não sou palhaço para animar. O cara que ouvia os Racionais agora não gosta mais de mim.

Talvez eu tenha ficado rebelde demais para eles."

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