Fábrica de músicas

Como compositores estão se reunindo em empresas que produzem mais de 100 músicas novas por mês

Felipe Branco Cruz Do UOL, em São Paulo
Arte/UOL

A cena de um operário imortalizada por Charlie Chaplin sofrendo para apertar porcas e parafusos em uma linha de montagem de uma fábrica em "Tempos Modernos" é uma das mais clássicas do cinema. Agora, quase 100 anos depois, algo parecido acontece em Goiânia. Mas no lugar da chave de fenda e do martelo entram a melodia e as rimas.

Uma nova tendência do mercado, principalmente na capital de Goiás, é o surgimento de empresas especializadas em composições musicais. Como em uma linha de montagem, o trabalho em grupo é quase mecânico (embora prazeroso). Assim, são feitas mais de 100 músicas em um único mês, principalmente voltadas ao público sertanejo. Vale até churrasco e gincana na hora da criação.

E algumas delas já viraram hits, como "Sorte que Cê Beija Bem", que chegou ao topo das paradas nas vozes das irmãs Maiara e Maraísa.

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Como funciona

A LT Music (foto acima), do compositor Leo Targino, de 22 anos, produz mensalmente em Goiânia 80 faixas que podem ser sertanejos, funks ou raps. Para isso, ele tem duas equipes de três compositores com o objetivo de escreverem quatro músicas por dia.

Uma dessas músicas é “Respeita os Caipira”, da dupla Jads & Jadson, que tem sete compositores e foi feita sob encomenda. “Quanto mais gente compondo, mais discussões vão rolar. Mas, aqui na empresa, vale a opinião da maioria”, explica Leo, que tem funcionários com média de idade de 22 anos.

Além de decidirem por votos o que entra e o que sai em uma música, é preciso também deixar de lado o ego. É o que garante Everton Matos, da Single Hits, que produz 120 novas músicas ao mês que são oferecidas para artistas como Gusttavo Lima, Maiara & Maraísa, João Neto & Frederico, Marília Mendonça, entre outros.

“Escrevemos uma música para o Bruno & Marrone que se chamava ‘UTI’. Eles nos disseram que não gostavam de falar essa palavra. Mudamos para ‘Não Vou Resistir’. Não fazemos a nossa vontade e sim a vontade do artista", afirma Matos.

Na hora de compor, as empresas tratam cada música como um produto. Como tal, a música tem que ser vendável, com rimas fáceis e temas atuais, composta já pensando no artista que vai gravá-la. Por exemplo, não são oferecidas músicas de sofrência para uma dupla que só canta sobre balada e bebedeiras.

O tema que mais vende é a saudade. Não tem erro.

Leo Targino, da LT Music

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Um time de futebol

O número exagerado de autores é outra marca dessas fábricas de músicas. O hit sertanejo “Caminhão de Frete”, da dupla Conrado & Aleksandro, também tem um “caminhão” de compositores ou, se preferir, um time de futebol. Ao todo, 11 pessoas assinam a faixa

“Lá na firma tem um campinho. Quando não dá jogo, nós queimamos uma carninha e escrevemos músicas”, brinca Everton Matos, sobre a quantidade de autores para “Caminhão de Frete”.

Mesmo com tantos autores para dividir os direitos autorais, Everton garante que dá para ganhar dinheiro. “Trabalhamos com quantidade e qualidade. Aqui na empresa, já deu para quase todo mundo comprar uma casinha em condomínio fechado, carro importado e até um sítio”, diz ele sem, no entanto, revelar os valores.

Everton diz ainda que, às vezes, uma pessoa assina a música apenas por estar presente na hora da composição.

A pessoa está ali do lado, emanando energia positiva, te abençoando. O nome dela tem que entrar.

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"A validade é curta"

“Nos meus 15 anos de carreira, essa é a primeira vez que eu interpreto uma música com 11 compositores”, diz Aleksandro (na foto), da dupla Conrado & Aleksandro. “Com tanta gente, assinando, a música deixa de ser música e se transforma num produto. Mas é um produto bom”, afirma o sertanejo, que enxerga um mercado aquecido com alta demanda por novos hits e artistas renovando seu repertório a cada três meses.

O prazo de validade de uma música sertaneja é muito curto. A galera quer música para ouvir no carro, num churrasco. Essas músicas são diferentes de uma composição do Almir Sater, por exemplo, que é um gênio e fez músicas que vão durar para sempre.

Além de cantor, Aleksandro também é dono da empresa Correia Music, que funciona de maneira semelhante à Single Hits. Quando não está no estúdio escrevendo com sua equipe de compositores ou na estrada fazendo shows, ele está na sua chácara, onde organiza gincanas de composições.

“A gente leva os compositores para uma chácara, faz um churrasco, a música come solta. Formamos vários grupos, sorteamos os temas e vamos escrevendo. No final do dia, sai umas 30 músicas e os grupos assinam a autoria. Depois a gente grava uma guia com a letra e a melodia e já pensa qual artista gostaria de gravá-las. Geralmente a gente acerta”, explica.

Ouça os hits sertanejos

Críticas e união

Para um compositor tradicional é difícil entender qual é a vantagem desse sistema. Mas para os sertanejos faz todo sentido porque, entre eles, prevalece um sentimento de ajuda mútua e de não concorrência.

O fiasco da MPB e do axé foi eles terem se fechado. Aqui, é um ajudando o outro. Ninguém quer compor axé ou MPB porque não dá dinheiro. No sertanejo, nós criamos um mecanismo que só nos fortalece”, explica Everton.

E esse mecanismo inclui também artistas e rádios. “Quando um cantor lança uma música nova, eu não tenho problema em cantá-la em meu show. Um artista está sempre ajudando a divulgar o trabalho do outro. A mesma coisa acontece nas rádios”, diz Aleksandro.

Esse esquema não está imune a críticas. “Muita gente já me disse que não iria dar certo, que não iria dar dinheiro e que teria muita briga. Mas não inventamos nada novo. As músicas mais famosas do Justin Bieber, por exemplo, têm 5 e 6 compositores”, lembra Everton, citando hits como “Sorry”, Baby” e “Never Say Never”.

A julgar pela quantidade de hits emplacados, a empresa de Everton é um sucesso e faz parte de uma indústria de composições que surgiu em Goiânia na esteira das milhares de duplas e grupos sertanejos que também têm surgido.

Em 2017, por exemplo, a Single Hits teve 17 hits no topo das paradas, com Maiara & Maraísa, Edson & Hudson, João Neto & Frederico e, recentemente, uma música na nova novela da Globo, “Segundo Sol”, que estreou nesta segunda-feira (14).

Entre seus sucessos estão “Homem de Família”, do Gusttavo Lima, “Sorte que cê beija bem”, da Maiara & Maraísa, “Rapariga Não”, do João Neto & Frederico, e “Casa Não”, da Marília Mendonça.

Nas paradas

  • "Respeita os Caipira"

    Faixa interpretada por Jads & Jadson, da LT Music. Assinada por 7 pessoas: Jadson, Django, Rob Tavares, Diego Silveira, Rafa Borges, Nicolas Damasceno, Lefo Targino.

    Imagem: Divulgação
  • "Homem de Família"

    Faixa interpretada por Gusttavo Lima, da Single Hits. Assinada por seis pessoas: Everton Matos, Diego Ferrari, Gustavo Martins, Ray Antônio, Guilherme Ferrara e Paulo Pires.

    Imagem: André Muzell/Brazil News
  • "Caminhão de Frete"

    Faixa interpretada por Conrado & Aleksandro, da Single Hits. Assinada por 11 pessoas: Leo Sagga, Aislan Alves, Everton Matos, Paulo Pires, Diego Ferrari, Ray Antônio, Guilherme Ferraz, Sandro Neto, Taty Pignatto, Rony Ferraz e Rivanil.

    Imagem: Divulgação
  • "Sorte que cê beija bem"

    Faixa interpretada por Maiara & Maraísa, da Single Hits. Assinada por sete pessoas Everton Matos, Rafael Quadros, Paulo Pires, Gustavo Martins, Diego Ferrari, Ray Antônio e Guilherme Ferraz.

    Imagem: Globo/Marília Cabral
  • "Não Casa Não"

    Faixa interpretada por Marília Mendonça, da Single Hits. Assinada por 5 pessoas: Everton Matos, Paulo Pires, Guilherme Ferraz, Sando Neto e Diego Ferrari.

    Imagem: Mariana Pekin/UOL
  • "Perfume"

    Faixa interpretada por Bruno & Marrone, da LT Music. Assinada por 4 pessoas: Leo Targino, Django, Samuca Abreu e Rob Tavares.

    Imagem: Divulgação

Mercado efêmero

Com tanta gente compondo, fica a pergunta: será que tem tanto artista assim para gravá-las? Os compositores garantem que sim e explicam que existem artistas locais que são muito famosos em suas regiões, porém desconhecidos do resto do Brasil. Além disso, o mercado musical atual é muito efêmero. “As músicas ficam velhas com três meses”, afirma Everton.

Por outro lado, há uma demanda grande de artistas famosos que também são grandes compositores mas, por causa da agenda lotada de shows, não encontram mais tempo para compor.

“A Marília Mendonça é hoje uma das melhores compositoras do Brasil. Mas ela faz 20 shows por mês, viaja muito, faz programa de TV, entrevistas, atende todos os fãs. Não sobra mais tempo para compor", diz Leo Targino.

Embora a empresa de Leo componha 80 faixas por mês, ele diz que só consegue vender, em média, 30. “É que nem todas são boas. É preciso melhorá-las. Antes de oferecer uma música para um artista, a gente faz testes, manda para os amigos, manda para alguns fãs. Se a música tocar num churrasco, é sucesso”, explica.

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Escola de sertanejo

Dá para fazer um curso e virar compositor ou cantor sertanejo? O produtor musical Blener Maycom (na foto), da LKS Music, acredita que sim e já ajudou a formar artistas como Naiara Azevedo, Felipe Araújo e, recentemente, a dupla Júlia & Rafaela.

Em 2016 ele criou um centro de formação em Goiânia, batizado de Oficina LKS, para desenvolver o canto, a dança, a expressão, a postura, enfim, tudo que uma pessoa precisa para virar um grande artista sertanejo.

“A nossa ideia é a de um internato ou uma república de estudantes, onde eles ficam focados em aprender e treinar todos os dias”, diz Blener. “Sou do tipo que acredita que esforço e dedicação podem levar o artista ao topo do ranking”.

A LKS Music também tem a sua própria casa de composição que, assim como as outras empresas, tem um grupo de músicos focados em escrever novas músicas sertanejas. “É um lugar onde a maioria dos compositores vão para gravar e escrever. Se a Naiara Azevedo precisa de uma música, eu passo o briefing e vamos escrevendo até acertá-la”, diz.

Música com conteúdo vai ser lembrada para sempre, principalmente se ela for atemporal.

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