Gloriosa contra o ódio

De cantor mirim a drag queen, Gloria Groove celebra o "orgulho bicha" e usa a arte para combater o preconceito

Paulo Pacheco Do UOL, em São Paulo
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Do Balão à Gloria

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"Minha música desconstrói a homofobia"

Quarta-feira, 19 horas. Minutos após falar com o UOL, Gloria Groove corre em direção à assessora e ao empresário. "'Bumbum de Ouro' tocou em 'Malhação!'", grita, sorridente. A cantora conseguiu emplacar sua primeira música em uma novela da Globo desde quando passou a se apresentar como drag queen, há quatro anos.

"Bumbum de Ouro" chega à TV após bombar na internet. O hit lançado no Carnaval soma quase 18 milhões de acessos no YouTube e mais de 6 milhões nas plataformas digitais, e fez Gloria, criada na Vila Formosa, bairro da zona leste de São Paulo, virar "dona do mundo" (como diz na letra de "Dona"). Ela também ultrapassou a fronteira LGBT e conquistou o grande público ao lado de drags como Aretuza Lovi e Pabllo Vittar. Próximo passo: a parceria com Léo Santana, "Arrasta".

Pela manhã, Gloria ensaia as coreografias com as dançarinas Camilla Muniz e Flávia Lima. À tarde, três horas de maquiagem. À noite, shows e eventos até a madrugada. A rotina da cantora é muito mais intensa do que no início da carreira, aos 7 anos, na Galera do Balão (novo Balão Mágico), quando se apresentava como Daniel Garcia. A partir dos 14, quando assumiu a homossexualidade, fez teatro musical e cantou em bandas de apoio até se consagrar com "Bumbum de Ouro".

Hoje, aos 23 e no auge da carreira, Gloria ainda é chamada de Dani na dublagem --ela dubla "Patrulha Canina" e outras séries de sucesso-- e pela mãe, a cantora Gina Garcia. Mas não se importa com a dupla identidade artística. "Faço questão de tirar essa ideia de que você é um rapaz e daqui a pouco é uma garota, porque essa linha está se embaçando cada vez mais para mim", explica.

Como drag queen, Daniel Garcia se vê representado na arte. Sob o figurino e a maquiagem de Gloria Groove, quer fortalecer a cena LGBT na música e, assim, ajudar a combater a forte homofobia de que já foi vítima.

Vivemos em um país ainda muito problemático, muito sexista, muito machista, muito misógino, muito transfóbico. Somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. A música feita por LGBTs hoje é responsável muito grande pela desconstrução que está havendo na nossa sociedade, dentro do inconsciente coletivo do povo brasileiro.

Montagem/UOL

Orgulho de ser bicha

Aos 14 anos, Daniel Garcia assumiu a homossexualidade e saiu do armário. Ou melhor, foi arrancado. "Fui tirado do armário pela minha família porque era muito evidente que eu era gay. Eu era a própria criança afeminada. Aquela criança afeminada que rebola e o tio faz 'ihhhh'", relembra.

Foi no teatro musical, em que interpretou uma travesti no espetáculo "Hair" (2013), e assistindo ao programa norte-americano "RuPaul's Drag Race" que Daniel descobriu a arte de ser drag queen. Então, decidiu se transformar e criou Gloria Groove.

"Eu associava o nome Daniel, a pessoa do Daniel a coisas tão profundas, tão pessoais, que a chegada de um outro nome e uma outra imagem me deu possibilidade de conseguir ser um porta-voz, um trampolim para outras pessoas. Hoje, eu me sinto muito mais em paz com o Daniel que existe por ser isso, de ter a chance de ser a Gloria para as pessoas", analisa.

Ser drag queen também libertou Gloria Groove para se entender como "bicha". Hoje, a cantora sente orgulho de ser quem ela é e do que faz para empoderar outras pessoas que se sentem presas aos padrões da sociedade.

Demorei um tempo para entender que eu não era e nunca iria ser aquele gay que não parece ser gay. Lembro que, quando cortava o cabelo ou raspava a cabeça, meus amigos da época falavam: 'Que lindo. Tá um hominho', quase um 'parabéns, obrigada por se enquadrar no meu padrão heteronormativo, agora a gente te aceita mais'. Eu fingia ser feliz me mascarando nesse padrão, uma voz um pouco mais grave, um boné. Hoje, eu me sinto bicha e resolvida com o fato de ser bicha. Porque foi só depois de ser drag que eu aceitei o fato de que era uma bicha afeminada. Abracei a criança que eu fui.

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"Gloria na essência, Daniel no RG"

A Gloria usa roupa de moleque. Ela é meio mano. O Daniel usa roupa de menina, ele é uma bichona. A binaridade entre uma coisa e outra está sumindo porque eu sou muito dos dois o tempo todo. Estou em uma fase que me monto umas quatro vezes por semana. Pode-se dizer que sou realmente metade Gloria e metade Daniel. Isso passa a ser cada vez mais fluido, e eu passo a ser cada vez mais a Gloria em sua essência artística. O Daniel passa a ser o nome do meu RG. E eu entendo que sou isso na minha totalidade.

Sobre a expressão de gênero com a qual se identifica mais hoje

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"As regras da sociedade são feitas para me exterminar"

"Primeiramente, graças a Deus, tô viva". O verso de "Império" define o dia a dia de Gloria Groove e de muitos gays no Brasil, onde 445 LGBTs morreram em 2017 (um a cada 19 horas), segundo entidades de defesa dos direitos homossexuais. Uma das vítimas mais recentes, a estudante de artes visuais Matheusa, de 21 anos, foi assassinada no Rio de Janeiro em 29 de abril.

"Eu falo 'primeiramente, graças a Deus, tô viva' porque, se parar para pensar, realmente cada minuto, cada segundo que ainda estou viva, fazendo o que faço, me colocando e tendo uma voz, é uma bênção para mim, porque as regras do jogo da sociedade são feitas para me exterminar, para que eu não esteja aqui", lamenta Gloria, que em 2017 sofreu um ataque homofóbico dentro de um ônibus no dia em que completou 22 anos. 

"Foi no dia em que eu gravei 'Gloriosa', uma música incrível. Eu chorei de raiva, tive que me montar, era meu aniversário, sabe? Eu tinha acabado de falar várias coisas incríveis sobre mim, 'gloriosa, ninguém vai me deitar, eu estou aqui para afrontar', e vem a vida e 'vrau!', dá uma rasteira para ver se você realmente está gloriosa, esperta, antenada", recorda Gloria, que no dia teve o cabelo puxado e foi ameaçada por dois homens.

"Gloria Groove me libertou"

Recebo diariamente inúmeras mensagens de pessoas do mundo inteiro falando: 'Obrigado por existir, você não sabe o que faz por mim só de estar aí ocupando esse espaço'. São essas pequenas coisas que me fazem lembrar o porquê comecei a fazer isso, porque eu queria ter uma voz também. Gloria Groove me libertou em inúmeros sentidos. Eu tenho só 23 anos de vida e 15 de carreira, mas nada que eu fiz antes disso me faz sentir como isso que eu estou fazendo agora, que é falar sobre a minha vida e a vida dos meus fãs.

Sobre ser exemplo para muitos adolescentes gays

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"Eu era a criança afeminada que rebola e o tio faz 'ihhh'"

  • Balão Mágico

    Daniel Garcia venceu seu primeiro concurso na TV aos 7 anos e foi escolhido no "Domingo Legal" (SBT) para integrar a nova formação do Balão Mágico, em 2002. Por questões judiciais, o grupo foi rebatizado para Galera do Balão e durou apenas dois anos, mas fez o cantor mirim viajar por todo o Brasil.

    Imagem: Reprodução
  • Gospel

    Em 2005, Daniel e Gabriela Milani, ex-Galera do Balão, formaram uma dupla gospel: Danny & Gaby. Dos 8 aos 13 anos, ele ficou muito ligado à igreja Renascer e também cantou em corais evangélicos. A relação com a religião, embora esteja mais fraca, ainda existe: "Gloria" vem dos cultos que frequentava.

    Imagem: Reprodução/YouTube
  • Raul Gil

    Aos 11 anos, Daniel Garcia participou do quadro "Jovens Talentos", do "Programa Raul Gil" (Band), e impressionou o júri ao cantar Michael Jackson e Alicia Keys com afinação e inglês perfeitos. Ele deixou o concurso para atuar na Record, mas reencontrou Raul Gil em março deste ano, no SBT, como Gloria Groove.

    Imagem: Reprodução/Band
  • Novela

    Daniel Garcia já tinha experiência com atuação em comerciais e na dublagem, mas estreou em novelas em 2006, quando se mudou com a família para o Rio de Janeiro para trabalhar em "Bicho do Mato", da Record. Na trama, interpretou Ruyzinho, menino que sonhava em cantar e que se apaixonou por uma índia.

    Imagem: Reprodução/Record

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Os quatro passos rumo à glória

Arquivo pessoal/Gloria Groove Arquivo pessoal/Gloria Groove

Mãe "GG"

As iniciais de Gloria Groove homenageiam a mãe, Gina Garcia, backing vocal do Raça Negra e que já cantou com Gloria Gaynor, outra inspiração para o nome. O "sobrenome" vem da banda de Gina, Groove Machine. "Lembro minha mãe falar que era 'GG' antes dela [Gloria Gaynor]. Fiquei com isso de 'GG' ser uma mulher", diz.

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Do criador dos Mamonas

Por trás da carreira da cantora, está um expert em hits. Samy Elia, ex-empresário do Mamonas Assassinas, contratou Daniel para sua banda de baile. "Quando ele falou que queria ser drag, respondi: 'Fechado, porque está dentro de você. Artista que vai para a frente tem um diferencial: é verdadeiro", elogia Samy.

Caiuá Franco/TV Globo Caiuá Franco/TV Globo

"Amor & Sexo"

Em 2016, Daniel estreou na TV como Gloria Groove. Ela foi convidada para ser madrinha de um candidato do "Bishow", competição de drags do "Amor & Sexo" (Globo). Na parte mais emocionante, Gloria e a mãe cantaram juntas e foram aplaudidas de pé. No ano seguinte, ela voltou ao programa.

Reprodução/YouTube Reprodução/YouTube

O primeiro hit

Após a estreia no "Amor & Sexo", faltava uma música para fazer Gloria Groove explodir. E ela lançou "Dona", uma exaltação à cultura drag queen: "Um salve a todas as montadas da nossa nação". A sonoridade hip-hop e as letras fortes com críticas à homofobia tornaram-se marcas de seu repertório no álbum "O Proceder", lançado em 2017.

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