Sangue, suor e votos

Lula preso, facada em Bolsonaro, fake news: relembre os fatos que marcaram as eleições de 2018

Leandro Prazeres e Maria Carolina Abe Do UOL, em Brasília e em São Paulo
Arte/UOL

A eleição que se encerra neste domingo (28) foi turbulenta, atípica, marcada por fatos inusitados, como a prisão de um presidenciável e um atentado à vida de outro.

Os eleitores vão às urnas com lembranças frescas do povo nas ruas, do impeachment, das denúncias da Lava Jato, do desemprego e dos efeitos da crise econômica, da falta de segurança e da intervenção no Rio.

Essa eleição foi a eleição do novo. Da mudança. A sensação é que o Brasil estava fora de ordem. (...) Essa é uma eleição marcada pelo desejo de ruptura
Márcia Cavallari, diretora-executiva do Ibope

Cada um leva no bolso o celular e suas redes sociais, por onde se propagam as informações, verdadeiras ou não. A política passou a frequentar os grupos de família e amigos no WhatsApp, para o bem e para o mal.

Até o começo do horário de verão mudou de data por causa do pleito, levando celulares à loucura por uma falha das operadoras --não, não foi um boicote para atrapalhar o segundo turno.

A disputa teve candidato preso, atacado a faca, em retiro espiritual, em fim de carreira. Apesar do grande número de presidenciáveis, muitos eleitores sentiram falta de rostos novos nas urnas e jogaram para cima os índices de rejeição.

Saiu de cena a polarização entre PT e PSDB, presente desde 1994, com os rivais enfraquecidos em meio a denúncias de corrupção. Foi terreno fértil para a ascensão do conservadorismo na sociedade, e voltaram à cena os militares. Surgiu outro tipo de polarização: #elenão X #elesim. A política continuou a frequentar as ruas e entrou nas brigas de bar.

A gente teve um impeachment no país. Não estávamos num contexto de uma eleição que transcorreria na normalidade
Fabiana Severo, presidente do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos)

Os brasileiros vão às urnas escolher um presidente pela oitava vez desde a redemocratização, e o debate sobre a importância da democracia (e sua potencial fragilidade) há muito tempo não esteve tão em voga.

Relembre abaixo alguns dos fatos que marcaram as eleições de 2018.

Ato I - Alta Voltagem

Corrida eleitoral começa com especulações de nomes, briga jurídica e debates. Atentado a Bolsonaro eleva tensão no fim do 1º turno; reveja fatos marcantes

Ele era líder nas pesquisas de intenção de votos. Luiz Inácio Lula da Silva foi mantido como candidato do PT à Presidência da República até o começo de setembro, sem um nome forte no partido para substituí-lo.

Julgado e condenado em segunda instância por corrupção, teve diversos recursos negados pela Justiça, mas manteve-se em campanha, mobilizando caravanas pelo Brasil afora, até ser preso.

Da prisão, continuou coordenando a campanha e aparecendo na propaganda eleitoral, gravada antes de ir para uma cela adaptada na sede da Polícia Federal em Curitiba. Ficou fora de debates, recorreu para dar entrevista, não conseguiu. Por poucas horas, chegou-se a pensar que seria solto, em meio a uma confusão judicial.

O petista teve a candidatura vetada. Faltando menos de um mês para o primeiro turno, partiu para o plano B e passou o bastão a Fernando Haddad--a quem opositores apelidaram de "poste". Tentou transferir a ele seus votos, lançando mão até de bilhetes divulgados em redes sociais.

Lembranças da Lava Jato, da crise econômica e da herança da ex-presidente Dilma Rousseff (que não conseguiu uma cadeira no Senado) jogaram contra, mas o PT conseguiu emplacar Haddad no segundo turno. Então, "escondeu" Lula da campanha, trocou o vermelho pelo verde e amarelo, descartou um governo de coalizão e partiu para o ataque a Jair Bolsonaro, na última cartada para tentar voltar ao Palácio do Planalto.

Sem novos rostos nas urnas

Até o meio do ano, brasileiros chegaram a pensar que veriam alguns rostos novos nas urnas, alguns deles familiares em outras telinhas. De olho no eleitorado decepcionado com a política, ansioso por "alguém de fora" para salvar a pátria, partidos cortejaram figuras de outras áreas.

O caso mais emblemático foi o de Luciano Huck, apresentador da TV Globo. Participou de reuniões com políticos e partidos, flertou com o PPS, foi incluído em pesquisas de intenção de voto, mas depois negou a candidatura ao vivo no "Faustão".

Outra aposta que não seguiu adiante foi o ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa, que ganhou notoriedade com o julgamento do mensalão, em 2012. Filiou-se ao PSB, também foi incluído em pesquisas eleitorais, mas pulou fora, por motivo "pessoal", segundo post no Twitter

Ainda assim, foi grande o número de interessados no cargo de presidente da República: 13 candidatos. Os dois que avançaram ao segundo turno compartilham um recorde negativo: o mais alto nível de rejeição desde que a pesquisa começou a ser feita pelo Datafolha.

Jair Bolsonaro (PSL) foi "comendo pelas beiradas". Filiado a um partido nanico, com poucos segundos no rádio e na TV, lançou mão das novas mídias e de um exército de apoiadores nas redes sociais, chamados pelos opositores de "bolsominions".

Chegou a dizer, em julho, que era o "patinho feio" dos candidatos. Foi vítima de um ataque a faca durante a campanha, passou por duas cirurgias, ficou 23 dias internado e esquivou-se de participar de debates com adversários.

Ele teve azar pessoal de sofrer o atentado, mas sorte de estar na mídia no momento em que não teria horário eleitoral gratuito
Bruno Speck, professor de Ciência Política da Unicamp

Bolsonaro conseguiu surfar a onda crescente de conservadorismo e ocupar o espaço à direita deixado pelo PSDB, que saiu minguado desta eleição. Tornou-se símbolo de antipetismo, de alguém de fora (mesmo estando há 27 anos no Congresso). Com suas posições extremadas e frases polêmicas, atraiu para si grande parcela do eleitorado preocupada com o "cidadão de bem", a família e a segurança.

Chegou a cogitar que levaria a faixa presidencial no primeiro turno e, após o resultado, questionou a confiabilidade das urnas eletrônicas. Chega ao segundo turno como favorito nas pesquisas de intenção de voto.

Tiro, porrada e bomba. E facada

A polarização ideológica acirrou-se na população: Lula livre, Lula preso, PT é o povo, fora PT, #elenão, #elesim. Chegou a grupos de famílias e amigos no WhatsApp, mobilizou manifestações nas ruas e chegou a desencadear atos extremos.

[Violência política] Já ocorreu na campanha de 2014. O que ocorre agora são episódios muito mais explícitos de violência
Leonardo Avritzer, professor de ciência política da UFMG

Um mês antes do primeiro turno, o candidato Jair Bolsonaro (PSL) levou uma facada quando fazia campanha em Juiz de Fora (MG), atentado que não era visto na América Latina havia cerca de 20 anos. Preso em flagrante, Adélio Bispo confessou o crime e, segundo a denúncia, teria agido sozinho, por inconformismo político com as posições de Bolsonaro.

Em Salvador, um mestre de capoeira foi assassinado por defender seu voto no PT, em uma briga de bar. Uma transexual foi agredida em Nova Iguaçu (RJ) com gritos de homofobia e apologia ao candidato Jair Bolsonaro. Antes disso tudo, o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), no Rio, os tiros contra um ônibus da caravana de Lula e também em um acampamento a favor do petista, em Curitiba.

Segundo levantamento da agência de jornalismo investigativo "Pública", apoiadores de Bolsonaro realizaram ao menos 50 ataques em dez dias, e seis apoiadores do PSL foram agredidos. O discurso de ódio saiu da internet e chegou à vida real, de carne, osso e sangue. 

É claro que a violência vai ser um risco para a sociedade toda, mas ela atinge primeiro os grupos mais vulneráveis: negros, mulheres, LGBTs, indígenas
Fabiana Severo, presidente do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos)

Conservadores 'saem do armário', e militares voltam à cena

[A imprensa] já dá sinal de que vai ter que se adaptar a algo diferente a partir do ano que vem. Porque somos a maioria. Somos conservadores
Bolsonaro, em pré-campanha em Campina Grande (PB)

Foi a primeira vez que um candidato competitivo assumiu pautas explicitamente conservadoras, mostrando que ser de direita deixou de ser uma "vergonha", afirmou o cientista político Leonardo Avritzer, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Desde a redemocratização, a gente tinha um fenômeno chamado de direita envergonhada. Quem era de direita não se assumia como tal. Candidatos muito conservadores diziam que eram de centro, porque se assumir como conservador era visto como prejudicial à campanha
Leonardo Avritzer, cientista político da UFMG

Isso mudou em 2013, segundo Avritzer, com movimentos como MBL (Movimento Brasil Livre). Um dos cofundadores do grupo, Kim Kataguiri (DEM) foi o quarto candidato mais votado em São Paulo e conquistou uma cadeira na Câmara dos Deputados propondo o fim das cotas raciais e sociais, do indulto e da saída temporária de detentos.

O avanço do conservadorismo, para analistas, foi alimentado por uma insatisfação geral devido à demora para sairmos da crise econômica e pela desmoralização dos grandes partidos e de seus líderes, envolvidos em denúncias de corrupção.

Ao mesmo tempo, militares saíram do silêncio a que estavam reclusos desde o fim da ditadura, voltaram a se pronunciar sobre política e a almejar o poder.

Militar reformado e defensor de pautas conservadoras, Bolsonaro convidou General Mourão para ser vice em sua chapa e criou um grupo de ex-membros das Forças Armadas para ajudar na campanha e em um eventual governo. Passou a ser visto como salvador para boa parte do eleitorado.

O surpreendente é o sucesso eleitoral [dos conservadores] no Legislativo. É maior que qualquer avanço de qualquer outro momento
Bruno Speck, cientista político da Unicamp

Neste ano foram eleitos 72 militares para cargos legislativos em todo o Brasil. A bancada evangélica também ganhou impulso. Por outro lado, a bancada ruralista encolheu. Esses grupos apoiam, abertamente ou não, o candidato do PSL à Presidência.

Dinheiro, empresários e vaquinhas

A Lava Jato ajudou a mudar a forma como as campanhas políticas são financiadas no Brasil. Nesta eleição, parte do financiamento foi com dinheiro público e parte doado por pessoas. Desde 2016, estão proibidas doações de empresas.

Um "jeitinho" encontrado foram doações feitas por empresários no lugar de suas empresas. Também houve autofinanciamento: candidatos usando recursos próprios para se promover --o que, em tese, favorece os mais ricos.

As vaquinhas virtuais não decolaram, de modo geral, mas mostraram mais uma vez a força de Jair Bolsonaro para mobilizar a internet: o candidato do PSL arrecadou mais de R$ 4 milhões até a antevéspera do segundo turno.

No fim das contas, as urnas mostraram que dinheiro não necessariamente garantiu votos. O principal exemplo foi o candidato à Presidência pelo MDB, Henrique Meirelles. Com uma campanha financiada por R$ 54 milhões de seu próprio bolso, terminou em 7º lugar, com 1,2% dos votos. Ficou atrás de Cabo Daciolo, do Patriota, que declarou ter gasto menos de R$ 10 mil e angariou 1,26% dos votos.

TV em baixa, redes sociais em alta

Em tempos de redes sociais, a TV perdeu o papel de grande estrela na campanha. Antes, o tempo no rádio e na TV era decisivo para angariar votos, e partidos faziam coligações grandes como um grupo de pagode, muitas vezes sem sentido do ponto de vista ideológico. Agora, a TV perdeu esse protagonismo todo.

Exemplo foi o presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB), dono de uma coligação de oito partidos e com direito a 44% do tempo no horário eleitoral. "A campanha de verdade só começa amanhã, quando muda o horário da novela", disse o tucano, na véspera da propaganda eleitoral entrar no ar. Não funcionou. Terminou em quarto lugar, com 4,76% dos votos.

Na contramão, Bolsonaro: "Em 15 segundos, vou conseguir falar um pouquinho de mim e está bom demais", afirmou. A estratégia do PSL foi chamar os eleitores para "lives" (transmissões ao vivo na internet) durante as inserções na televisão. Liderou no primeiro turno e aparece como favorito no segundo.

Dança das cadeiras

Se dinheiro na campanha e tempo de TV não garantiram votos, tradição também não.

Entre os presidenciáveis, Geraldo Alckmin e Marina Silva (Rede) entraram grandes e saíram nanicos desta eleição. Marina, que havia conquistado 21% dos votos em 2014, saiu pulverizada de sua terceira disputa à Presidência, com apenas 1%. O ex-governador de São Paulo, uma das principais lideranças do PSDB, foi, de longe, o pior do partido em todo o período da redemocratização.

Na contramão, Cabo Daciolo era desconhecido por boa parte do eleitorado no início da campanha. Virou atração nos debates, mobilizou a internet com teorias conspiratórias (como a Ursal e a Nova Ordem Mundial) e passou quase metade da campanha em retiro espiritual. Terminou a eleição em 6º lugar, à frente de nomes experientes.

Falando em partidos, o MDB teve quedas marcantes de caciques no Senado: Eunício Oliveira, Romero Jucá, Edison Lobão, Roberto Requião. O candidato à Presidência, Henrique Meirelles, amargou o 7º lugar. O atual presidente, Michel Temer, chegou a cogitar ser candidato, mas desistiu devido a sua baixa popularidade, que fez até partidários e antigos aliados tentarem se afastar de sua imagem durante a campanha.

PT e PSDB, que polarizavam as eleições desde 1994, saíram fragilizados nos estados e em cadeiras no Congresso.

O PT soube trabalhar a adversidade. Foi para a oposição, arrumou um discurso, gostemos dele ou não, o 'Fora Temer'. Se pensar a derrota que foi em 2016, quando foi massacrado, parecia que ia acabar, mas dois anos depois o PT está no segundo turno", avalia Carlos Melo, cientista político da UFMG.

o PSL, de Bolsonaro, que só elegeu um parlamentar em 2014, agora chegou a 52 deputados federais e quatro senadores, além de ter ido para o segundo turno na disputa governamental em três estados.

Ato II - Discurso sob medida

Bolsonaro e Haddad se adaptam à necessidade: candidato do PSL evita debates e reforça posição conservadora; petista se distancia de Lula e ataca violência e notícias falsas

Fake news bombando

Mentir na política não é algo novo. Porém, esta eleição foi marcada pela avalanche de mentiras produzidas em escala industrial e distribuídas em massa com apenas um clique. O objetivo é confundir o eleitor, segundo o diretor da ONG SaferNet, Tiago Tavares. 

A caixa-preta é o WhatsApp. O aplicativo tornou-se o principal canal para divulgar informações fraudulentas, tanto para favorecer um candidato ou partido quanto para prejudicar outros. Mas outras redes sociais, como Facebook e Twitter, não ficaram de fora. A divulgação via esse tipo de mensagens, verdadeiras ou fakes, foi adotada tanto pela direita como pela esquerda

Além das fake news em forma de textos, imagens, memes e vídeos, compartilhados com milhões de usuários, há também outras formas de manipulação: venda de comentários em redes sociais para influenciar debates e fóruns, robôs que se passam por seres humanos para curtir e comentar, além da venda de bancos de dados com milhares de números do WhatsApp. 

Por trás dessa campanha de enganação, estão não só indivíduos, mas também empresas, esquemas profissionais, sistemas de distribuição organizada e massiva de mensagens. Reportagem da Folha de S.Paulo denunciou que empresas compraram pacotes de disparo em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp, prática que é considerada doação ilegal para campanha. O TSE abriu investigação

Até as urnas eletrônicas foram alvo de notícias falsas. A confiabilidade do sistema eletrônico de votação foi questionada diversas vezes, inclusive por Bolsonaro. O TSE chegou a aprovar ter 30 mil urnas com voto impresso, mas a decisão foi derrubada pelo STF.

A má notícia: a maioria dos eleitores brasileiros não percebe que recebe notícias falsas de política, segundo pesquisa. As próprias redes sociais lançaram campanhas para coibir a divulgação de fake news.  

Houve dificuldade do TSE de se posicionar em relação ao combate às fake news
Carlos Melo, cientista político da UFMG

A Justiça Eleitoral criou um conselho contra fake news para as eleições de 2018, mas pouco foi feito de concreto, e o TSE admite não saber o que fazer com esse problema da vida moderna. 

Quando as autoridades não dão uma resposta para uma situação de violência, seja ela física ou verbal, propaganda pela internet ou não, a sensação que passa é de impunidade
Fabiana Fabiana Severo, presidente do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos)

A imprensa, agências e projetos de checagem tentam ajudar a combater esse mal: 24 empresas brasileiras de mídia, por exemplo, se juntaram no projeto Comprova, para investigar e explicar os rumoresMas é papel de cada pessoa checar se uma informação é verdadeira antes de passar para frente. Quer dicas?

Democracia em debate

As linhas de fronteira entre instituições militares e a política partidária nunca estiveram tão tênues na história recente do Brasil
Rafael Alcadipani, professor-adjunto da FGV-EAESP

A ascensão do conservadorismo e o avanço de militares na política gerou temor de que a democracia possa estar em risco. Seriam as instituições democráticas fortes o suficiente para resistir a uma tentativa de golpe? Estariam os atores políticos comprometidos com a manutenção da democracia e o respeito à Constituição? 

Eu acho que esse é o fenômeno mais perigoso da subida do Bolsonaro. Todas as vezes que militares se envolveram na política, houve golpe
Carlos Melo, cientista político da UFMG

Para o jornal britânico "Financial Times", a recessão econômica e os escândalos de corrupção deixaram o país "mais vulnerável a um choque político radical do que talvez qualquer outra democracia no mundo". 

Nem todos creem num risco iminente. Para o doutor em filosofia política e professor do Insper Fernando Schüler, Bolsonaro não representa qualquer risco real à democracia brasileira, apesar de seu discurso ter traços autoritários.

É um momento crucial para as instituições se unirem em torno do pacto do estado democrático de direito e passarem uma mensagem clara, e não apenas com entrevistas, mas com ações concretas
Fabiana Severo, presidente do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos)

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