Bomba-relógio

Propostas para segurança "dormiram" por anos nas gavetas do Congresso mesmo com criminalidade recorde

Filipe Strazzer, Ítalo Rômany, Kalinka Iaquinto, Marina Cardoso, Matheus Riga, Sarah Teófilo e Thaise Constancio Do eder content
Mauro Vieira/Agência RBS

Em junho de 2018, pouco antes do início da campanha eleitoral para presidente da República, um número assombroso consolidou uma das principais preocupações dos brasileiros nesta eleição: o Brasil bateu novo recorde de homicídios em 2016. Foram 62.517 mortes violentas, segundo o Atlas da Violência 2018 divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre 2005 e 2016, houve mais mortes violentas no Brasil do que na Síria, país em guerra há sete anos. As estatísticas, no entanto, dificilmente poderão medir a exaustão da população com latrocínios, balas perdidas, arrastões, crime organizado, assaltos, guerra de facções e achaque de milícias.

As propostas de soluções são sazonais e recorrentes: a cada quatro anos, ressurgem promessas de investir no aparelhamento das polícias, unificar os sistemas de inteligência, endurecer o combate ao tráfico de drogas, construir novos presídios e adotar uma política nacional de segurança. Nas últimas cinco eleições presidenciais, todos os candidatos que receberam no mínimo 10% dos votos válidos prometeram criar um ministério da segurança pública e construir mais presídios.

Esta reportagem integra uma série da eder content em parceria com o UOL sobre promessas de campanha. Leia também os capítulos sobre política, corrupção e saúde.

O ministério saiu do papel no começo deste ano, após o governo federal decretar intervenção federal no Rio de Janeiro em meio a uma onda crescente de crimes na cidade. Na sequência, uma nova lei criou a PNSP (Política Nacional de Segurança Pública) e instituiu o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública).

Enviado ao Congresso em 2007 pelo governo Lula, o projeto de criação do SUSP "dormiu" por vários anos nas gavetas do Legislativo. Em 2012, foi desmembrado e apresentado pelo governo Dilma Rousseff em regime de urgência. Mesmo assim, levou mais de quatro anos para sair da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, da Câmara, em dezembro de 2016. Só entrou na agenda do Senado em fevereiro deste ano, na abertura do ano legislativo de 2018, em meio à escalada de violência urbana no Rio de Janeiro e à morte de nove presos durante uma rebelião no Complexo Penitenciário de Aparecida de Goiânia no primeiro dia do ano.

Raimundo Paccó/edercontent

Tateando no escuro

A proposta do SUSP é montar uma base de informações de todos órgãos de segurança pública do país - polícias federal, rodoviária, civil, militar, bombeiros, agentes penitenciários e guardas municipais. Na prática, agora os dados serão compartilhados e os registros de ocorrência serão padronizados. Por exemplo, se uma pessoa que for abordada pela Polícia Militar de São Paulo tiver um mandado de prisão no Maranhão, a PM terá conhecimento dessas informações. Também será possível realizar operações ostensivas, investigativas e de inteligência combinadas entre os Estados, com coordenação do Ministério da Segurança Pública.

Para a Anistia Internacional, sem dados adequados não há como saber o que fazer, em que regiões agir e que tipo de crime combater. "Hoje, os dados do SUS (Sistema Único de Saúde) sobre homicídios são mais confiáveis do que aqueles das pastas de Segurança Pública”, avalia a porta-voz da organização no Brasil, Renata Neder.

A nova legislação deve fazer com que o governo federal tenha uma atuação mais forte na área da segurança pública, já que sempre houve uma “negligência” da União, diz o deputado Alberto Fraga (DEM-DF), que foi o relator da proposta na Câmara dos Deputados. “Embora a Constituição diga que a segurança é dever dos Estados, é uma responsabilidade de todos.”

O papel de cada força de segurança

Cabe ao governo federal auxiliar os estados, mas a prática passou longe da regra constitucional nos últimos 20 anos. Administrado pela União, o FNSP (Fundo Nacional de Segurança Pública) foi criado em 2001 - na gestão Fernando Henrique Cardoso - para financiar o aparelhamento, remuneração, capacitação e integração dos órgãos de segurança pública dos estados e Distrito Federal. O dinheiro vem basicamente do próprio orçamento, repassado por meio de convênios mediante apresentação de projetos pelos governos estaduais. Porém, como o repasse não é obrigatório, boa parte dos recursos são contingenciados para reforçar o caixa federal.

Os valores do FNSP repassados aos estados através de convênios oscilaram bastante entre 2009 e 2017, mas só passaram a crescer de forma constante a partir de 2014, segundo dados obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre 2012 e 2013, a queda foi de 77%, equivalente a R$ 258 milhões de diferença. Além disso, há Estados que não receberam um tostão em determinados anos. Alagoas, por exemplo, não recebeu nada do FNSP entre 2013 e 2016.

Para a socióloga Vera Malaguti Batista, do ICC (Instituto Carioca de Criminologia) e professora de Criminologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a federalização da segurança pública desequilibra o sistema constitucional no setor. Ela defende que o modelo policial deve estar próximo à segurança local, ou seja, aos estados e municípios, e caberia ao governo federal apenas coordenar as políticas de segurança desenvolvidas entre os estados. "A federalização reflete uma má compreensão dos agentes políticos do que é a política criminal. E no Brasil há ainda a disputa por visibilidade política, como no caso da criação do Ministério Extraordinário da Segurança Pública", critica a socióloga.

Marlene Bergamo/Folhapress Marlene Bergamo/Folhapress

Sem espaço disponível

São 370 mil vagas para 726 mil pessoas. Essa é a situação do sistema penitenciário brasileiro, que tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo. Para o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), os números refletem a aposta dos estados mais no patrulhamento ostensivo e menos nas investigações, enchendo os presídios. Ao fortalecer o processo de aprisionamento sem olhar para a política de segurança, o sistema acaba deixando as gangues prisionais mais fortes, diz o pesquisador. “Caso essa política continue, por mais que se construa novas vagas, esse processo nunca vai parar”, alerta.

O sistema atual é um enxugamento de gelo que não tem reduzido o crime

Bruno Paes Manso

Bruno Paes Manso, pesquisador da USP

Com recursos escassos, os estados prenderam mais e investiram menos no sistema carcerário. Classificado como transferência voluntária, o dinheiro do Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), que deveria financiar a modernização das penitenciárias, era autorizado no orçamento, mas boa parte era bloqueada para ajustar as contas da União no fim do ano. Foram 20 anos de contingenciamento até que o STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu o governo federal, em 2015, de limitar as verbas do Funpen, após ação movida pelo PSOL.

Em janeiro de 2017, quando graves rebeliões em Manaus, Boa Vista e Natal deixaram mais de 120 mortos em poucos dias, havia R$ 2,4 bilhões parados no Funpen, segundo a ONG Contas Abertas. O estado do Maranhão - palco de cenas bárbaras no presídio de Pedrinhas - recebeu R$ 32,7 milhões do Funpen entre 1995 e 2010. Em 2016, após a proibição do contingenciamento, foram liberados R$ 44 milhões ao governo maranhense.

Em dezembro de 2016, o governo Temer flexibilizou a aplicação dos recursos do Funpen para melhorar o sistema penitenciário. Porém, a movimentação da verba pelos estados segue lenta: somente 4% da verba liberada tinha sido movimentada no ano passado, conforme balanço do Funpen.

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Engrenagens travadas

Se considerarmos os valores para construção e reforma de penitenciárias, a movimentação não passou dos 2%. Enquanto Goiás já havia utilizado 24% do valor recebido, Amapá, Bahia, Ceará, Paraíba e Paraná, por exemplo, não usaram nada. Relatório de maio deste ano indica que nenhuma das obras foi iniciada. O Depen (Departamento Penitenciário Nacional) ainda aguardava 52 projetos a serem entregues pelos Estados.

Os governos estaduais reclamam da burocracia do Ministério da Justiça, que precisa aprovar inicialmente os projetos. Já o Depen diz que os estados têm dificuldades em apresentar um plano de execução das obras. Por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem obteve os dados dos convênios cancelados pelo Funpen com os estados desde 2008. O Rio Grande do Norte, foco recorrente de rebeliões, perdeu R$ 24 milhões para as cadeias públicas de Ceará Mirim, Macau, Lajes e Mossoró. O estado do Rio de Janeiro deixou de receber mais de R$ 33 milhões para obras de reforma e construção em presídios.

Relatório da segunda fase de auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) no sistema prisional, divulgado no início de maio, constatou que ainda há risco de acúmulo de recursos sem efetiva geração de vagas prisionais. No final de 2017, mais R$ 590 milhões tinham sido liberados pelo Depen.

A ampliação do sistema prisional no país é uma necessidade, afirma Egbert Buarque, secretário de Controle Externo da Segurança Pública do TCU. O levantamento do tribunal aponta que 78% dos motins registrados entre outubro de 2016 e maio de 2017 ocorreram em estabelecimentos com superlotação.

(In)segurança pública

No CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a avaliação é de que é preciso investir em mais vagas e mais modernidade. "Não tenho a menor dúvida de que há necessidade de construção de unidades prisionais mais modernas, e em certo sentido mais simples, em que - por exemplo - se evite ao máximo o contato entre detentos e agentes prisionais", defende Márcio Schiefler Fontes, conselheiro do CNJ e supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário.

O que está em jogo hoje, diz Fontes, são as dificuldades dos estados em fazer uso de seus recursos, e dos recursos federais, para a construção de novas unidades e a reforma das antigas. A ampliação do sistema prisional, lembra o conselheiro do CNJ, faz surgir uma nova demanda, de servidores. "Não é de descartar a hipótese de que muitos Estados se achem confortáveis com o déficit de vagas, porque resolvê-lo não exige só investimento em construção de presídios, mas também em contratação de agentes prisionais."

Lançado em 2011, o Programa de Apoio e Melhoria do Sistema Prisional previa  aumento de 45 mil vagas em novos presídios. Até maio de 2018, das 81 construções, 44 estavam paralisadas.

Falso problema

“Não há déficit de unidades prisionais. O que há é uma política de encarceramento de pessoas pobres, não brancas e periféricas”, diz Marcelo Naves, assessor da Pastoral Carcerária nacional. Defensora de uma reversão no aumento da população carcerária, a Pastoral e outras 40 organizações elaboraram a Agenda Nacional pelo Desencarceramento.

É um conjunto de dez diretrizes que propõem a realocação de verba hoje voltada para construção de presídios para as políticas sociais e de atendimento a egressos do sistema. “O Brasil deveria congelar os bilhões que investe em construção do sistema prisional e investir em políticas sociais”, defende Naves.

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Brasil encarcerado

A proposta da Conectas Direitos Humanos é tirar da prisão as pessoas que não cometeram crimes violentos, o que exclui homicídio e estupro. “Quando você tem um aumento de 104 mil pessoas presas em dois anos, é impossível solucionar isso construindo mais presídios”, afirma o advogado Henrique Apolinário, do programa de Violência Institucional da organização.

Segundo ele, 40% da população prisional são de presos provisórios, que nem sequer foram julgadas. “Quanto mais você prende e coloca presos primários ali, mais você fortalece as alianças criminosas”, alerta. Apesar de as autoridades separarem as facções dentro das penitenciárias em blocos diferentes, não há nenhum controle sobre as ações por ali. “Não há ala neutra, quem entra acaba devendo favores dali em diante."

Mais Estado, menos facção

No Pecam I (Complexo Penitenciário de Canoas), na região metropolitana de Porto Alegre, uma iniciativa está colocando em xeque a lógica predominante nos presídios brasileiros. Embora o Estado tenha o dever legal de prover o preso com o mínimo de condições sanitárias e de vida durante seu tempo na cadeia, o que acontece na prática é bem diferente. “A pessoa entra com a roupa do corpo e lá fica. Não ganha chinelo, não ganha papel higiênico, o Estado não dá nada”, diz a procuradora Roberta Siqueira, da Procuradoria Geral do io Grande do Sul. É o crime organizado que financia toda a estadia na cadeia, diz ela, fornecendo do sabão para o banho até cigarros e roupas.

Essa prática cria um círculo vicioso: a pessoa sai da cadeia, assalta para pagar a dívida, entra novamente no sistema, aumenta sua dívida, sai de novo, mata, entra de novo e assim segue, resume Roberta. Em Canoas, ela desenvolve um trabalho que propõe a presença maciça do Estado, fornecendo o básico para higiene e saúde do preso, mas também educação e trabalho. Todos os presos em Canoas estudam e trabalham, fazem cursos profissionalizantes para que saiam com ofício e escolaridade, o que reduz as chances de retornarem ao sistema prisional.

O resultado já é visível: apenas 19% dos presos da Pecan I retornam ao sistema. Na Cadeia Pública de Porto Alegre, maior presídio do estado, o índice de reincidência ultrapassa 70%.

Muitos falam que bandido bom é bandido morto. Então o preso pensa que se a vida dele não vale nada a minha também não vale, a tua também não vale

Roberta Siqueira

Roberta Siqueira, procuradora estadual do RS

Roberta defende uma mudança na política de segurança pública no Brasil que optou, há 50 anos, pelo "super-encarceramento"e pela "guerra às drogas". “As prisões que estamos fazendo são decorrentes da guerra ao tráfico que estamos perdendo há anos e vamos continuar perdendo, pois atacamos o varejo”, afirma. Ela diz que é preciso investir no sistema carcerário para melhorar as condições nas cadeias, mas também em inteligência policial e ações sociais, principalmente escolas e creches. E admite: não há como replicar o modelo adotado em Canoas em presídios superlotados.

“Ao criar vagas novas, se elas forem bem feitas como na Pecan I, você vai matar à míngua o crime organizado”, afirma Roberta, com investimento focado não apenas na criação de vagas, mas também na qualidade das instalações e no custeio desse preso. “Temos que colocar esse preso num lugar em que o Estado esteja presente. Quando você deixa os presídios superlotados, deixa as pessoas cada vez mais na mão do crime organizado, e as possibilidades de ressocialização são zero.”

Para a socióloga Vera Malaguti Batista, do ICC (Instituto Carioca de Criminologia), quanto mais a sociedade precisa de polícia armada, mais sintomático é o problema. "Mostra que há um desequilíbrio tão grande na sociedade que é preciso ter pessoas para policiar as ações dos indivíduos. Sociedades bem atendidas socialmente não têm tantos conflitos sociais e tanta insegurança", diz ela. Em meio à campanha eleitoral, ela sugere um caminho para o próximo presidente da República: implantar uma justiça restaurativa, baseada em modelos comunitários de solução de conflitos.

"Segurança é uma construção coletiva, que inclui o debate em sociedade. Mas com essa mentalidade punitiva, a população quer ouvir o candidato 'justiceiro', o 'salvacionista', e não discute mudanças e melhorias para essa situação", alerta a socióloga.

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