Vale tudo

Na era Trump, o mundo avança em clima de paz frágil e verdade indefinida. O que vale é o espetáculo

Roger Cohen
Tom Brenner/The New York Times

Este artigo faz parte do especial "Ano em transformação", do "The New York Times News Service & Syndicate", que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Um século se passou desde que o presidente Woodrow Wilson, em seu discurso de 14 Pontos, em janeiro de 1918, estabeleceu um plano norte-americano para o mundo. Ele pedia a remoção das barreiras econômicas ao comércio, um ajuste das reivindicações coloniais que respeitassem "os interesses das populações envolvidas? e a criação de uma Liga das Nações para garantir ?independência política e integridade territorial a Estados grandes e pequenos". Foi um programa que anunciou as intenções de ordenança dos EUA, e deveria pôr um fim às guerras. Wilson fracassou; a paz europeia obtida ao final da Primeira Guerra Mundial só duraria uma geração. Ainda assim, envolvido no projeto comercial global, os EUA, mais poderoso que nunca em 1945, manteve sua posição? até 2017.

Cem anos até que é um período considerável. Inúmeras pessoas ao redor do mundo ganharam ou preservaram a liberdade graças ao poder norte-americano. Os erros eram flagrantes. Os países não são mais infalíveis do que os indivíduos por que são formados. Apesar disso, de maneira geral, a liberdade, a democracia e a ordem baseada em regras, protegidas por nossas guarnições em terras longínquas, se disseminaram e prosperaram. A hegemonia dos EUA (Pax Americana) não era enganação. Fazia-se valer. Mas um dia tudo chega ao fim.

O fato de o mundo estar pronto para uma reviravolta foi a única intuição de Donald Trump e representa sua única cartada. Sujeito do mercado imobiliário criado em Nova York, está acostumado a apostas e um universo de transações livres de valores. Acredita que deve governar os EUA exatamente como tocava sua empresa. Sente-se à vontade entre brutamontes autoritários; afinal, reconhece sua turma. Sua atitude em relação aos tratados, pactos comerciais, organizações multilaterais e alianças que levaram os interesses norte-americanos adiante, na melhor das hipóteses, é de hesitação. Acha que tudo não passa de um disparate.

De fato, acha que não precisa de mais nada além de um Departamento de Estado enxutíssimo. A política estrangeira norte-americana parou. "O que vale sou eu", ele diz à Fox News. "Eu sou a única coisa que importa porque, no fim das contas, simbolizo a diretriz." Pode chamar de "Eumismo". E assim, com seu jeito abrutalhado e nada sutil, movido pelo instinto, Trump já introduziu uma nova ordem mundial.

Doug Mills/NYT Doug Mills/NYT

Trump encabeça um verdadeiro vale tudo, não mais ditado pela prescrição norte-americana, desprovido do menor sinal de compasso moral. Em termos de valores das sociedades liberais, França, Alemanha e Canadá terão que assumir a liderança (já que o Reino Unido está lidando com o pós-Brexit). Os perigos de um novo vácuo são equilibrados (se não, muitas vezes ampliados) principalmente pelas redes sociais do século XXI, ligando as comunidades além das fronteiras, e pela arquitetura corroída, mas ainda não totalmente destruída da ordem pós-guerra. Por enquanto, Trump não conseguiu jogar o mundo despenhadeiro abaixo.

Tudo bem, a Rússia e o Irã levaram a melhor na Síria. Claro, você pode pegar uma moto em Teerã e atravessar um território praticamente inteiro controlado ou influenciado pelo Irã, até chegar a Beirute. Sem dúvida, a Arábia Saudita que aceitou Trump de forma tão irresponsável, se vê entre a revolução e a implosão sob o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, progressista e exibicionista. Óbvio que a inimizade saudita-iraniana pode acabar em guerra (como já acontece no Iêmen).

Sim, a saída dos EUA da Parceria Transpacífico e do Acordo de Paris indicam abandono de responsabilidade, da mesma forma que a iniciativa "Um Cinturão, Uma Rota" da China, programa que pretende ligar vários países à sua ambição expansionista, revela confiança e engajamento. De fato, Trump ampliou e reforçou a temeridade política e nuclear com a Coreia do Norte. É verdade, ele mal sabe, e não está muito preocupado em saber, onde fica a Ucrânia ou o que Vladimir Putin possa estar fazendo lá.

 

 
Mikhail Klimentyev/Sputnik/AFP Mikhail Klimentyev/Sputnik/AFP

O fato é que Trump se dá bem com toda essa convulsão ?e acredita que o mundo também, até certo ponto. Como já disse, ele é um sujeito do mercado imobiliário criado em Nova York. O setor é conservador. Isso vale para o que há dentro dele também: Trump chega à beirada do precipício, mas não cai de cabeça. Não há de querer que o metro do metro quadrado despenque. Os mercados, como bem observa, dispararam desde que ele assumiu o governo. Wall Street ama os governos que cuidam dos ricos (principalmente se podem fingir que estão preocupados com o trabalhador).

O mundo do século 21 é uma pirâmide. A tecnologia não só aproximou e deu autonomia ao povo como reforçou a conexão das elites lá no topo, dos caras que têm uma boa visão de tudo e os meios de transformar o que veem em rios de dinheiro. Ocupados com isso, autoconfiantes, com acesso global, beneficiados pela mão de obra barata e a impunidade fiscal, mal notaram que praticamente não tinham mais conexão nenhuma com as massas lá embaixo, cuja visão ainda era nacional, cuja cultura ainda era local e que sofriam, com uma revolta cada vez maior, as consequências da globalização.

Trump percebeu que poderia ser o veículo dessa revolta. Sentiu que o nacionalismo, nativismo e xenofobia estavam prontos para serem resgatados. "Soberania" é o seu lema, mesmo que ?ou, mais provavelmente porque? cada vez mais a vida seja vivida em uma realidade virtual na qual a nação já morreu. A maré reacionária, medonha, ainda não passou completamente. Trump vai tirar até a última gota do sumo político dela a partir de 2018 ?como também os movimentos de direita na Europa, que continuam vigorosos no continente, apesar da vitória encorajadora de Emmanuel Macron na França. Os neofascistas na Polônia e na Hungria continuam sua marcha, pois ainda não exauriram todo seu antissemitismo. Em todas as democracias ocidentais, Trump ajudou a desencadear o que há de mais execrável na natureza humana.

É o último bastião do homem branco, que certamente não terá primazia neste século. A demografia é inexorável, como também os movimentos na mente humana. Wilson poderia ainda falar do colonialismo como algo a ser "ajustado", e não como a exploração branca calhorda das pessoas de cor que foi. As mulheres, no tempo dele, eram meros complementos ao homem. O mundo muda, mas em ziguezague, nunca em linha reta. As linhas de frente raciais não estão mais na Índia britânica, mas sim nas ruas, ou nos trilhos, no âmago das sociedades ocidentais. O eurocentrismo já era. Gênero e sexualidade são o campo de batalha da destruição do pensamento antigo; apesar disso, o velho, especialmente na forma do chauvinismo, nunca se dissipa suavemente. Ele resiste e se revolta.

Timothy A. Clary/AFP Timothy A. Clary/AFP

Claro está que a política reacionária de Trump não faz nada, ou muito pouco, por seus eleitores, tanto operários como executivos; o que ele oferece é espetáculo. É a força vital de seu movimento, o que lhe garante a aparência da ação. Estadismo é uma palavra tão antiquada porque foi substituída pela parafernália da encenação.

A reforma fiscal proposta por Trump beneficia os ricos. Quem mais? Enquanto isso, os imigrantes em Nova York e no resto do país estão vivendo um momento assustador e sombrio; os que trabalham nas fazendas estão tão apavorados que nem têm coragem de sair das propriedades. O número de prisões feitas pelo Serviço de Imigração e Controle de Aduanas, no período entre a posse e o início de setembro, subiu 43% em relação ao ano passado.

Em todo o país, mães e pais estão sendo separados à força dos filhos; jovens que achavam poder sonhar com um futuro estão vendo a oportunidade lhes ser negada. O governo Trump partiu para o ataque explícito contra os pobres, sejam eles favorecidos pelos cupons alimentares, pelo Medicaid ou qualquer outro benefício que facilite a existência de baixa renda e a miséria. A incompetência está sendo endeusada em Washington.

E não é só o Departamento de Estado que está sendo eviscerado: o da Agricultura e a Agência de Proteção Ambiental seguem pelo mesmo caminho. A expressão "mudança climática" hoje é proibida nos círculos oficiais. Sob toda a cacofonia, feiura e brutalidade disseminada por Trump, jaz uma nação fragmentada, governada por um homem que não viceja na divergência e na discórdia.

JIM WATSON/AFP JIM WATSON/AFP

Está se formando uma tempestade. O clima, aliás, também anda estranho e violento. O medo se espalha. A paz está mais fragilizada que nunca. A tecnologia é uma excelente conectora, sim, mas também isola. O individualismo se transforma em narcisismo. A verdade e a falsidade são cada vez mais indivisíveis. A burrice e a vulgaridade ganham terreno.

Um presidente norte-americano, pelo Twitter, ameaça revogar a licença de transmissão de um canal como a NBC porque seu noticiário "não é suficientemente patriótico", o que o coloca no mesmo território que Putin-Erdogan-Duterte.

Alguns começam a dar de ombros; outros vibram. Esta é a nova realidade. Trump tuíta: "Por que Kim Jong-un haveria de me insultar, me chamando de velho, se eu NUNCA o chamei de baixinho e gordo? Ah, puxa, fiz o que pude para ser seu amigo. Quem sabe, um dia, isso ainda aconteça!". O mundo vai ter que se virar sem os EUA, tirar umas férias, talvez até ficar sem pensar no país.

Boa sorte a todos. Já estava na hora; a Pax Americana fez parte do século XX. O caos estimula, até revitaliza. E pune o pensamento preguiçoso. Ele ocorre quando algo está no fim, e prenuncia o início inevitável de algo novo. É claro que também pode acabar mal antes de render frutos desconhecidos.

  • Roger Cohen

    É colunista do New York Times

    Imagem: NYT

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