Objetivo perdido dos EUA

Tribalismo baseado em raça, religião, identidade sexual e local de nascimento substitui nacionalismo inclusivo

Bill Clinton
Mirko Ilic/NYT

Este artigo faz parte do especial "Ano em transformação", do "The New York Times News Service & Syndicate", que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Damon Winter/NYT Damon Winter/NYT

Os EUA têm muita coisa a seu favor.

Pelo terceiro ano consecutivo, vemos uma elevação de renda em todos os estratos. Nossa força de trabalho é relativamente jovem, esforçada e produtiva. As universidades norte-americanas e outras instituições de pesquisas são sólidas em áreas como ciência dos materiais, desenvolvimento de software, nanotecnologia, biotecnologia, genômica e muitos outros campos importantes para o nosso futuro econômico e o setor de empregos. Continuamos em busca de uma maior independência energética e de fontes mais limpas, com avanços no armazenamento das forças eólica e solar e uma imensa capacidade ainda não explorada de gerar eletricidade a partir de ambas.

Por outro lado, também enfrentamos sérios desafios econômicos: graves desigualdades de renda e riqueza; pequena participação no mercado de trabalho de adultos sem curso superior, principalmente de homens brancos; diferenças drásticas de crescimento entre regiões urbanas e suburbanas prósperas e condados que compreendem cidadezinhas e áreas rurais; uma deficiência enorme na infraestrutura nacional, que vai desde estradas e pontes inadequadas a tubulações enferrujadas e perigosas, passando por uma rede elétrica incapaz de se adaptar a uma energia mais limpa e barata, que possa ser produzida com mais eficiência, onde é mais exigida, e a ausência de uma internet de banda larga, rápida e acessível, em áreas que precisam desesperadamente ser incluídas na economia nacional.

Edu Bayer/NYT Edu Bayer/NYT

Há dificuldades no aspecto de recursos humanos também. Nosso sistema educacional de doze anos (K-12) inclui algumas das melhores escolas do mundo, mas essa excelência continua difícil de se refletir nos distritos e estados, gerando condições altamente variáveis. Nosso ensino superior continua sendo um dos melhores do mundo, mas os custos e a dívida estudantil são grandes problemas.

A reforma da saúde pública permitiu que milhões de pessoas tivessem uma assistência médica de qualidade e acessível pela primeira vez, mas perdemos muito tempo brigando pelos esforços de repelir esse progresso quando deveríamos estar resolvendo os problemas que ainda acometem a estrutura e nos preparando para o envelhecimento da população. O futuro dos imigrantes sem documentação, incluindo os "Dreamers" e milhões de pessoas que trabalham pesado e pagam seus impostos, é incerto em um momento em que nossa mão de obra não pode se expandir sem eles, já que a taxa de natalidade dos norte-americanos nativos mal alcança o nível de recomposição.

De Charleston a Charlottesville, somos lembrados de que as divisões raciais continuam a nos afligir, e cujas consequências são devastadoras. E a crise dos opioides, incluindo heroína e o fentanil, estão matando e alijando em uma proporção avassaladora. Há vários anos sabemos que ela se tornou um grande desafio da saúde pública, embora praticamente em nenhuma região tenhamos os recursos e a organização necessária para reverter o processo.

Por fim, enfrentamos uma série de adversidades na segurança, desde a proliferação nuclear e o terrorismo, passando pela mudança climática e a proteção cibernética –essa última sendo talvez a mais crítica, uma vez que põe em risco todos os sistemas necessários para a solução dos outros problemas e a nossa própria democracia.

Apesar do nosso progresso econômico, em termos gerais, desde a crise de 2008, todas essas questões contribuíram para o declínio da mobilidade econômica, aumentando a alienação política e social, gerando uma insegurança pessoal para milhões de cidadãos. Essas forças não só reforçaram as divisões como dificultaram a recuperação de nosso senso de objetivo comum.

A boa notícia é que uma iniciativa agressiva para a solução desses problemas, com opções abalizadas e acessíveis, podem dar novo fôlego à economia e às nossas comunidades, através de rendas mais altas, mais mobilidade vertical e maior segurança. Inúmeras cidades e vários estados provam todos os dias que isso é possível.

Dominick Reuter/AFP/Getty Images/NYT Dominick Reuter/AFP/Getty Images/NYT

Entretanto, enquanto nação, estamos trilhando um caminho bem diferente. Praticamente em todos os lugares o tribalismo baseado em raça, religião, identidade sexual e local de nascimento substitui o nacionalismo inclusivo, aquele que permite o orgulho do grupo e ainda assim defender a comunidade norte-americana como um todo. 

O que se vê com frequência é o ressentimento superando a racionalidade, a raiva nos impedindo de perceber as respostas e a hipocrisia passando por legitimidade. Essas tendências são fomentadas pelo mundo do Snapchat, Twitter e Facebook, nos quais se dedica uma capacidade de atenção mínima para os problemas que viram notícia de TV e a própria sobrevivências dos jornais depende dos retuítes de suas edições on-line. Há um excesso de páginas e perfis de extremistas estrangeiros e invasores domésticos.

O esforço diligente de abolir as linhas entre a realidade e a ficção, a verdade e as mentiras pode anular os benefícios de nossa interconectividade. Quando desaparece a confiança e o conhecimento é desvalorizado como defesa do status quo, qualquer coisa pode acontecer. Já vemos milhões de cidadãos sendo marginalizados por causa da raça, etnia e idade –não porque estejam inaptos a votar, mas porque defendem o nacionalismo inclusivo, não tribal.

Quem ganha nesse tipo de ambiente? Aqueles que já se deram bem, pois ganharão ainda mais. Os membros menos responsáveis da imprensa política, que se destacarão cobrindo todo tipo de polêmica e descalabro. E os inimigos da democracia, que fomentam a discórdia e torcem para que os norte-americanos finalmente admitam que a autogestão informada não funciona mais – e talvez nem seja mais possível – no mundo moderno.

Vinte e cinco anos atrás, quando fui eleito presidente, disse que cada cidadão deveria obedecer ao comando da nossa constituição para formar uma união mais perfeita, expandindo constantemente a definição de “nós” e diminuir a do “eles”. Ainda acredito nisso – e é o que me faz defender as políticas que promovem a cooperação e não o conflito, a construção de uma economia, uma sociedade e uma política de adição e não subtração, a multiplicação em vez da divisão. Infelizmente, muita gente que está no poder ao redor do mundo parece decidida a batalhar pelo contrário. Se fizermos o mesmo aqui, perderemos esta chance de garantir um futuro ainda mais brilhante.

Portanto, nosso maior desafio é decidir quem nós, norte-americanos, realmente somos, enquanto cidadãos, comunidade e nação. Todo o resto depende disso.

  • Bill Clinton

    Foi o 42º presidente dos EUA, entre 1993 e 2001

    Imagem: NYT

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