Defesa do multiculturalismo

Para derrotar o autoritarismo, devemos aprender a entender nossos vizinhos, escreve Nobel de literatura

Orhan Pamuk
Bulent Kilic/AFP/Getty Images

Este artigo faz parte do especial "Ano em transformação", do "The New York Times News Service & Syndicate", que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Na sequência do Brexit e da eleição de Donald Trump, com o autoritarismo de Recep Tayyip Erdogan e de Narendra Modi sendo sancionado pelos eleitores, e a rejeição dos governos polonês e húngaro aos valores liberais e aos migrantes, o consenso é de que há uma nova onda nacionalista e não liberal varrendo a Terra.

Como sempre, devemos resistir aos instintos autoritários que restringem nossas liberdades, demonizam qualquer um que pareça ser diferente e que – como está acontecendo na Turquia - proíba a liberdade de expressão, a independência do poder judiciário e o pluralismo. Temos que permanecer firmes na defesa dos nossos valores mais queridos: os direitos das mulheres, a liberdade de pensamento, as liberdades acadêmicas.

Mas devemos também perguntar como este vento não liberal ganhou força, apesar de nossa bem intencionada afirmação de igualdade e humanismo. Por que nosso lado continua perdendo eleições?

Daniel Berehulak/NYT Daniel Berehulak/NYT

Uma das alegrias de ser um romancista é que isso permite que você veja e escreva sobre os dois lados de um problema, que habite perspectivas opostas mesmo quando elas permanecem tão violentamente em desacordo uma com a outra. Escrevi meu livro "Uma Sensação Estranha" para explorar e descrever o mundo de um vendedor de rua de Istambul, um homem comum, sem ignorar sua religiosidade. Ao omitir algo tão importante quanto a religião, mesmo que o escritor não se identifique com ela, assim como acontece com o personagem, há o risco de pegar os leitores desprevenidos quando a população que inspirou o personagem, a verdadeira classe baixa, começa a votar em partidos políticos islâmicos. O poder de tais movimentos parece mais forte para nós quando confundimos nossas fantasias liberais com a realidade.

Assim como tento explorar perspectivas conflitantes ao escrever, a atual encarnação americana do multiculturalismo, que defende que imigrantes acrescentem suas origens exclusivas a uma nova cultura, em vez de abandonar sua história em prol da assimilação, pode incentivar as pessoas a lutar contra o autoritarismo crescente. O aprendizado da compreensão mútua e completa nos possibilita permanecer calmos, pois nos garante que conhecemos nossos vizinhos, independentemente do quão diferentes sejam.

Foi durante minha primeira viagem a Nova York, em 1985, que percebi que esse multiculturalismo nos permitira viver ao lado de pessoas de diferentes origens culturais e religiosas sem que perdêssemos nossa própria herança. Naquela época, essa forma de tolerância ainda não havia sido confundida com a noção de relativismo cultural. O conceito de multiculturalismo foi essencial para o "cadinho cultural" americano, em que pessoas de diferentes religiões e culturas se uniram para formar uma nação.

Esse conceito desafiou aqueles que queriam colocar uma comunidade contra a outra em vez de promover a vivência harmoniosa no mesmo país, nas mesmas cidades e nas mesmas ruas. Pessoas de diferentes culturas podiam manter as tradições que regem suas crenças religiosas, costumes e hábitos diários, contanto que reconhecessem que esses valores eram relativos.

Para mim, o jeito americano de integrar as minorias religiosas na sociedade em geral ainda parece muito mais eficaz do que os métodos europeus. Os imigrantes muçulmanos nos Estados Unidos parecem muito mais felizes e mais confortáveis do que os muçulmanos na França. Acredito que o multiculturalismo seja muito melhor que o laicismo, o modelo secular francês, para salvaguardar a liberdade de religião. Alunas do ensino médio na França não estão autorizadas a usar lenços durante as aulas – não muito diferente das universitárias na Turquia, como descrevi no meu romance "Neve".

Thomas Pullin/NYT Thomas Pullin/NYT

O Islã político explorou essa aparente intolerância para consolidar seu poder e influência na Turquia. Na década de 1990, eu estava – como ainda estou – convencido de que o multiculturalismo tinha o poder de suavizar alguns dos conflitos eternos da Turquia: entre tradição e modernidade, secularismo e Islã, Oriente e Ocidente. Antecipei o multiculturalismo reforçando a democracia turca, já tão diminuída por esses mesmos conflitos, por golpes militares justificados em nome do secularismo e pela periódica dissolução dos partidos políticos. No início de 2000, argumentei que aderir à União Europeia beneficiaria a democracia turca e a europeia, e que absorver mais de 60 milhões de muçulmanos iria transformar a Europa em uma sociedade multicultural como a dos Estados Unidos.

Trinta e dois anos depois daquela primeira viagem a Nova York, nenhuma das minhas esperanças se cumpriram. Mas minha fé permanece, em parte porque não me esqueci de que essas decepções estão enraizadas nas mentalidades historicamente nacionalistas encontradas na Turquia e na Europa.

De fato, poderemos ver esses sentimentos modernos germinando há pelo menos um século. Em abril de 1914, o autor francês André Gide escreveu em seu diário: "... por muito tempo pensei que houvesse mais de uma civilização, mais de uma cultura que poderia legitimamente reivindicar nosso amor e merecer nosso entusiasmo. Agora sei que nossa civilização Ocidental (eu ia dizer francesa) não é apenas a mais bonita; acredito – eu sei – que é a única".

Alyssa Schukar/NYT Alyssa Schukar/NYT

A abertura original de Gide se transformou em chauvinismo, desencadeado por suas impressões negativas de Istambul em uma viagem em 1914. Os intelectuais turcos que, na época, defendiam a ocidentalização do país ficaram incomodados com as palavras de Gide. Mas responder da mesma forma teria agitado sentimentos nacionalistas em ambos os lados, afastando ainda mais a Turquia do Ocidente.

Os 40 anos que passei escrevendo romances e tentando compreender as pessoas diferentes de mim me ensinaram a mesma coisa: manter a calma perante as forças orientais e ocidentais, históricas e contemporâneas. 

Os ventos não liberais que enfrentamos hoje não são tão fortes a ponto de varrer toda a lógica."

Orhan Pamuk

Não nos esqueçamos de que Hillary Clinton ganhou 2,5 milhões de votos a mais do que Donald Trump; na Grã-Bretanha, a noção do Brexit foi tingida pelo remorso; na Turquia, o autoritarismo de Erdogan foi endossado por apenas uma margem muito estreita na votação de abril para que seu poder esteja totalmente consolidado.

Compreender essas forças nos obriga a reconhecer que outras pessoas podem discordar de nossas convicções mais profundas. Isso não é uma panaceia para os recém-nascidos movimentos nacionalistas ou para a inimizade entre gerações, mas pode nos manter calmos e nos ajudar a perseverar. Nessa empreitada, o romancista e o multiculturalista compartilham uma abordagem semelhante, baseada na tentativa de imaginar e compreender a humanidade das pessoas que não são como nós.

  • Orhan Pamuk

    Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2006. Seu romance "Meu Nome é Vermelho" ganhou o IMPAC Dublin Literary Award de 2003. Seu trabalho foi traduzido para mais de sessenta línguas.

    Imagem: Elena Seibert/NYT

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