Resistência no voto

Em Alegrete (RS), oposição venceu eleições na ditadura e militares reagiram com cassações e interrogatórios

Andréia Lago e Kalinka Iaquinto Do Eder Content
Cacalos Garrastazu/Eder Content

Das cidades gaúchas mencionadas pelo coronel Paulo Malhães como destinos onde a repressão se utilizou de cárceres temporários para interrogar e torturar opositores do regime militar, Alegrete é uma das que têm o maior número de registros no acervo da ditadura no Arquivo Nacional.

Havia dezenas de pessoas sendo monitoradas pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) na cidade --a maioria considerada comunista pelo regime.

O município, no entanto, tinha uma posição singular: não esteve entre os focos de resistência armada no Rio Grande do Sul e tampouco foi incluído na lista de cidades gaúchas consideradas Áreas de Segurança Nacional. 

Os 120 km que separam Alegrete da cidade uruguaia de Artigas, na fronteira, foram determinantes. Cidades vizinhas, como Uruguaiana, São Borja e Santana do Livramento, passaram a ter seus prefeitos indicados pelo governador --por sua vez, nomeado pelos militares-- por fazerem fronteira com Argentina e Uruguai.

Alegrete foi o único município com população próxima de 50 mil habitantes que manteve as eleições majoritárias livres. Exatamente por isso, entrou no radar da repressão.

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Reduto do trabalhismo, Alegrete conseguiu a façanha de eleger o prefeito e a maioria dos vereadores do MDB nas eleições de 1968.

A oposição ao regime militar se utilizou das sublegendas para derrotar os candidatos de duas chapas da Arena, partido governista apoiado pelos militares.

Com o MDB no comando da prefeitura e da Câmara, as lideranças locais do partido passaram a ser perseguidas pela ditadura.

"Não houve intervenção aqui e eles queriam fazer intervenção pelo voto. Nós éramos seis pelo MDB e eles 5 da Arena", lembra o advogado Adão Faraco, vice-prefeito eleito em 1968. Ficou seis meses no cargo antes de ser cassado e ter seus direitos políticos suspensos por dez anos.

O regime militar criou o mecanismo das sublegendas por meio do Ato Complementar nº 26, de 29 de novembro de 1966.

O objetivo era amenizar os riscos ao partido governista (Arena) devido à diversidade das forças políticas agregadas na sigla após a adoção do bipartidarismo, em outubro de 1965, por meio do Ato Institucional nº 2 (AI-2).

O modelo permitiria que alas divergentes indicassem seus representantes à disputa, e não necessariamente um candidato, o mesmo valendo para o MDB. 

Como os mandatos eletivos que terminariam em 1967 foram prorrogados por um ano, a Lei das Sublegendas foi modificada em junho de 1968.

A legislação estabelecia que cada partido político poderia instituir até três sublegendas nas eleições para governador e prefeito.

Na prática, os partidos deveriam realizar prévias internas e escolher até três candidatos mais votados na convenção para disputar a eleição, acomodando as diversas correntes internas de cada sigla.

Aos 83 anos, Faraco sabe por que se tornou um alvo do regime.

Nos relatórios de monitoração distribuídos por agentes da repressão, uma viagem à China e à União Soviética realizada quando integrava a União Estadual dos Estudantes, em Porto Alegre, era prova suficiente de subversão para os militares.

"Nunca tive a mínima ligação com o Partido Comunista, e não digo isso por ser neurótico anticomunista. Não, eu simplesmente não fui, nunca fui. A minha linha era a do Alberto Pasqualini, era o trabalhismo colocado em prática pelo Getúlio Vargas", reage.

Na parede de seu escritório, um mapa-múndi exibe alfinetes coloridos sobre os países que já visitou --inclusive a China de Mao Tsé-tung e a União Soviética de Nikita Krushchev.

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O historiador Fábio Gonçalves Chagas, doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), atribui o cenário que Faraco viveu em Alegrete a uma particularidade do Rio Grande do Sul.

Estudioso da luta armada no estado nas décadas de 1960 e 1970, ele afirma que as organizações de esquerda receberam muitos militares gaúchos ligados ao ex-governador Leonel Brizola, e os grupos comunistas abrigaram trabalhistas oriundos do PTB de Vargas. 

"Por exemplo, Índio Vargas montou grupo que se chamava PTB Armado, é um fenômeno gaúcho isso, você não teve grupo trabalhista de luta armada no Brasil, só no Rio Grande do Sul teve isso. Então esse pessoal era monitorado", diz o historiador.

De 1964 a 1967, durante todas as reuniões de articulação para tentar sublevar o estado a partir da liderança do Brizola, a repressão monitorou todos eles, afirma.

Comissão Estadual da Verdade-RJ - E as cidades que tinha isso, coronel, o senhor lembra?

Paulo Malhães - Porto Alegre, Três Passos, as cidades quase todas que tinham unidades no Rio Grande do Sul, unidades militares. (...)

No Alegrete também?

Regimento de cavalaria. Tem.

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O major reformado do Exército Fernando Bezerra de Castro era capitão no 6º RC Mec entre 1964 e 1970.

Aos 90 anos, o militar recebeu a reportagem em sua casa, em Alegrete.

Questionado se conheceu Paulo Malhães, debruçou-se sobre uma edição do Almanaque do Exército de 1981 e passou a procurar registros do oficial do Centro de Informações do Exército (CIE).

Com o livro que registra a evolução na carreira militar e a memória tinindo, garante que Malhães não esteve na cidade: "Não, não, não tinha por quê".

Em 1964, o 6º RC Mec recebeu ordens para interrogar pessoas da cidade por suspeita de comunismo.

O então capitão Bezerra de Castro foi responsável pelo Inquérito Policial Militar do meio estudantil na cidade, cujo papel ele minimiza. "Eles tinham uns rolos, claro, eram jovens, mas era tudo desorganizado."

Apesar da mobilização da oposição, o militar sustenta que Alegrete não teve registro de organizações de luta armada e tampouco houve prisões de opositores do regime. "A cidade sempre foi muito pacífica."

Oriundo do movimento estudantil, o advogado Elehú Rosa de Menezes era um dos nomes monitorados pelos serviços de inteligência da ditadura no município. "Nessa época eu tinha vinculações com todo o universo da esquerda aqui, seja o Partido Comunista ou os setores de esquerda do partido trabalhista", conta.

Logo após o golpe militar, em 64, passou duas semanas detido. "Fiquei 15 dias no 6º RC Mec, foi um terror, mas não sofri tortura, absolutamente nada", diz.

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Faraco confirma: "Prisão não houve, houve detenção".

Entre idas e vindas, ele relata que encarou 26 horas de interrogatório na 10ª Companhia de Engenharia de Combate do Exército após o golpe.

"Eu sofri um inquérito que não acabava mais, por diversas vezes eu fui chamado lá." Sobre Malhães, diz que nunca ouviu falar.

Vereador contemporâneo de Faraco e também cassado pela ditadura em junho de 1969, Menezes escondeu-se por 18 dias em uma fazenda da região após a edição do AI-5, em dezembro de 1968.

Tudo para não ser preso antes de tomar posse na Câmara Municipal.

"Na época, a gente tinha coragem, não tinha receio. Estava indignado com todo aquele quadro, né?", lembra o advogado. Assumiu o mandato e foi cassado cinco meses depois.

Daniel Marenco/Folhapress Daniel Marenco/Folhapress

Quando o troço virou guerra, guerra mesmo, é que as coisas mudaram. Porque a gente também foi aprender fora, alguma coisa. Aí os perfis das prisões daqui mudaram, as formas de contato com os presos mudaram, surgiu a necessidade de aparelhos

Coronel Paulo Malhães, agente do CIE

No grupo que passou o Natal daquele ano acampado à beira do rio Ibicuí, havia outros opositores da ditadura, como o poeta Luiz de Miranda e o escritor José Angeli Sobrinho, ambos com atuação em ações de expropriação na capital gaúcha --como as organizações de luta armada chamavam os assaltos a bancos para financiar a resistência ao regime.

"Quando surgiu o Ato Institucional número 5, o pessoal se reuniu ali e disse é melhor vocês fugirem. (...) Fomos pro mato da fazenda do seu Paulinho, no Ibicuí, ficamos lá até aparecer o pessoal lá de Alegrete dizendo que os procurados eram Afonso Almeida, Luiz de Miranda e Elehú", conta o poeta.

Miranda refugiou-se no Uruguai por dois meses, mas acabou sendo preso em 1969 ao retornar à cidade onde nasceu, Uruguaiana --outro município gaúcho onde Paulo Malhães afirma ter usado cárceres temporários para interrogatório e tortura.

Segundo o Centro de Comunicação do Exército, as declarações do ex-coronel da reserva Paulo Malhães "eram de responsabilidade exclusiva do militar".

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