Tortura em cárcere secreto

Como quartel em obras foi usado pelo tenente-coronel Paulo Malhães em Três Passos (RS)

Andréia Lago e Kalinka Iaquinto Do Eder Content
Cacalos Garrastazu/Eder Content

Uma casa térrea, pintada num tom de verde-claro, na esquina. Assim indicou o balconista da farmácia, único comércio aberto numa manhã de sábado no pequeno município de Braga (RS), a 436 km de Porto Alegre, no noroeste gaúcho.

Numa sala simples, onde uma estante repleta de livros se destaca, um senhor de 67 anos toma chimarrão.

Com olhar perdido e triste, ele ouve calado o pedido da família e do médico que o acompanha para que a reportagem não revire suas memórias.

Antonio Alberi Maffi é uma das vítimas de um dos principais torturadores do regime militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Entre abril e junho de 1970, foi torturado num cárcere clandestino usado pelo então major Paulo Malhães, agente do Centro de Inteligência do Exército (CIE), na cidade de Três Passos.

Sem fotos ou imagens a pedido da família, Maffi confirma: "Fui barbaramente torturado pelo próprio Paulo Malhães, com choques elétricos, socos, pontapés e outras barbaridades. Foi lá nas obras do quartel".

O ex-prefeito de Braga por dois mandatos após a redemocratização se agita, as mãos tremem. E a entrevista é interrompida.

Ele tinha 20 anos ao ser preso, em 31 de março de 1970. Era em nome de Maffi que estava registrada a empresa de fachada criada pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) para estabelecer uma área tática de guerrilha nas margens do rio Uruguai, na divisa de Três Passos com a Argentina.

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

O local clandestino usado por Malhães e outros agentes do CIE, além de integrantes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) gaúcho, na última semana de abril de 1970, era uma área de mata nativa, distante do centro da cidade.

Ali, começava a ser construído o novo quartel do 7º Batalhão da Polícia Militar. À época, a sede do quartel não ficava muito distante do local em obras.

Posteriormente, a repressão repetiu a experiência em 1975, num cárcere clandestino conhecido como Fazendinha, em Alagoinhas, na Bahia. Todos os membros do diretório regional do PCB (Partido Comunista Brasileiro) no estado foram interrogados sob tortura num quartel em obras à beira de uma rodovia, ao relento.

Inicialmente todos os presos da Sociedade Pesqueira Alto Uruguai foram levados ao prédio que hoje abriga o Hospital de Caridade de Três Passos, a cerca de 350 metros da estrutura em obras.

Nos primeiros meses de 1970, o quartel não tinha nem sequer celas para abrigar todos os presos por envolvimento na empresa de fachada da VPR.

A Sociedade Pesqueira Alto Uruguai era a fachada da VPR para implantar uma base de treinamento e apoio logístico às ações de guerrilha da organização na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina.

Com recursos obtidos nas expropriações de bancos na região metropolitana de Porto Alegre, o comando regional da VPR investiu na compra de barcos, barracas, ferramentas e equipamento de pesca, além de veículos, como um caminhão frigorífico que chegou a fazer entregas regulares de pescados dentro do quartel da cidade.

A fachada incluía uma casa alugada em Três Passos para sediar a empresa e uma base em Imbituba (SC), onde a Sociedade se abastecia de frutos do mar.

Após a visita de lideranças da organização, o grupo deu início a escavações nas margens do rio Uruguai, inclusive do lado argentino, para esconder mantimentos, remédios e armas.

Esses túneis faziam parte da estratégia da VPR de preparar uma estrutura que desse cobertura aos militantes que estivessem na clandestinidade.

O plano incluía a possibilidade de o próprio capitão Carlos Lamarca refugiar-se na Base Tática de Três Passos.

Era aberto, a parte de trás do quartel, porque o quartel foi construído num local onde não havia casas, numa coxilha. As casas estavam longe, mas a parte de trás [em obras] era mais longe

Roberto Fortini

Roberto Fortini, ex-guerrilheiro

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

O italiano Roberto Antonio de Fortini era o idealizador da Sociedade Pesqueira e responsável pela logística da área tática da VPR no noroeste gaúcho. À época, tinha 33 anos.

Chegou ao quartel de Três Passos depois da primeira turma de presos: quando o acampamento da guerrilha foi descoberto, Maffi estava em Braga e viajou a Passo Fundo para avisar Fortini, que estava visitando a família. Ao retornar, Maffi foi preso. 

O italiano conseguiu fugir e foi preso vários dias depois, em Itapirubá, praia catarinense localizada na divisa com o Rio Grande do Sul.

Antes disso, Maffi já havia sido torturado ao longo de vários dias e noites por Malhães e pelo sargento Clodoaldo Cabral --designado pelo CIE para ajudar o major no desmonte da VPR na região Sul.

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

Fortini, um senhor alto e forte que já completou 82 anos, recebeu a reportagem em Coronel Bicaco, município com menos de 8.000 habitantes a cerca de 50 km de Três Passos.

Expulso e banido do Brasil no início de 1971, partiu para o exílio entre os 70 presos políticos libertados em troca do embaixador suíço Giovanni Bucher --sequestrado no Rio de Janeiro pelo próprio capitão Carlos Lamarca, líder da VPR.

Foi o último sequestro de diplomatas conduzido por organizações de luta armada contra a ditadura. 

"Cada um que era interrogado levava choque até desmaiar e então era arrastado e os pés do desmaiado passavam por outros que estavam na fila com os olhos vendados, tudo para aterrorizar. Eu fui o último da fila", conta o italiano num português que mistura resquícios do espanhol aprendido nos anos de exílio na Argentina com o sotaque da língua materna --o dialeto falado na região do Vêneto, no nordeste da Itália.

Foi nesse dialeto que ele passou a falar após desmaiar sob efeito dos choques elétricos, o que irritou ainda mais seus torturadores.

Malhães, conta Fortini, ameaçou entregá-lo à Máfia italiana para que fosse morto. "Era ele, o próprio Paulo Malhães, que manejava todo o sistema. Ele interrogava e ele batia. Ele bateu muito na gente."

Daniel Marenco/Folhapress Daniel Marenco/Folhapress

Cheguei a Três Passos e em dois dias eu prendi todo mundo, botei todo mundo à disposição do Dops

Coronel Paulo Malhães, agente do CIE

Abril negro

Em maio de 1970, ao retornar a Três Passos, preso, os agentes já sabiam que Fortini era uma liderança da área tática da VPR.

O que parecia ser inicialmente apenas um grupo local de pescadores acusados de contrabando ganhou contornos e dimensões políticas numa sequência de ações que atingiu de morte a organização de Lamarca.

"Eu montei tudo isso, mas a VPR aprovou tudo. O comando era da Lia, que esteve neste local sobrevoando para ver se era um bom lugar, ela e o Félix. Quando vieram até aqui", contou o italiano.

(A VPR) Era, vamos dizer assim, a organização mais perigosa, era a do Lamarca. Era a única que eu vi com capacidade de combate, porque as outras todas não tinham

Paulo Malhães, coronel

Félix Silveira Rosa Neto era, segundo os arquivos da repressão, o comando regional da organização no Rio Grande do Sul.

No dia 12 de abril de 1970, Félix e Fernando Pimentel --hoje governador de Minas Gerais-- foram presos por agentes do Dops gaúcho.

Os dois integravam o grupo da VPR que tentou sequestrar o então cônsul americano em Porto Alegre, Curtis Cutter, no dia 4 de abril.

O sequestro deu errado, mas atraiu a atenção do regime para as atividades dos grupos de luta armada no estado. Foi o abril negro da VPR.

Lia era o codinome de Maria do Carmo Brito, do comando nacional da VPR. Presa no dia 18 de abril, foi levada para o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna) do Rio, onde foi recebida por uma placa de metal na parede: "Aqui não tem Deus nem direitos humanos".

Por quase dois meses, foi torturada diariamente. Pau de arara, choque elétrico, cadeira do dragão, palmatória, soro da verdade.

Apenas entre os dias 20 de abril e 23 de maio de 1970, período em que ficou sob custódia da Operação Bandeirante (Oban), em São Paulo, foi submetida a 40 horas de interrogatório sob tortura. A pergunta era sempre "onde está Lamarca?".

Refúgio para Lamarca

Hoje com 75 anos, ela vive no Rio e diz que não conheceu o coronel Paulo Malhães. "Quanto às minhas viagens ao Rio Grande do Sul, cada vez me lembro menos. Apenas de uma ida à casa de Fortini, que fez um molho de tomate e uma viagem de barco, maravilhosa. Mais nada. Ano que vem talvez eu não lembre mais nem disto." 

O que Maria do Carmo Brito esqueceu está no livro de memórias que publicou em 2003, chamado "Uma Tempestade como a Sua Memória".

No relato, a ex-guerrilheira da VPR diz que nunca achou que quem entrega os companheiros sob tortura seja um monstro ou um traidor. "Sempre pensei que cada um tem o seu limite, que isso é da condição humana. Mas é diferente quando é com você. A gente sempre acha que deveria ter sido mil vezes melhor do que foi." 

No Arquivo Nacional, a reportagem localizou um informe da Divisão de Segurança do Ministério da Aeronáutica, distribuído em 21 de maio que diz que ela revelou à Oban que a área mais provável de eclosão da guerrilha rural pela VPR seria Três Passos e Tenente Portela, no Rio Grande do Sul.

No documento, que identifica a origem do informe como sendo do CIE, diz que Maria do Carmo revelou que a organização havia criado uma companhia pesqueira para dar uma fachada legal ao grupo, liderado por um antigo militante da VPR em Passo Fundo --o italiano Roberto-- e que ele estaria estruturando fachadas similares no litoral catarinense e em Foz do Iguaçu.

"Debaixo de interrogatório, ela 'abre' porque todos estavam pensando que a área estratégica era essa. Porque Lamarca ia vir aí, já estava tudo preparado, estava bem avançado", confirma Fortini.

Reprodução do livro "Uma Tempestade como a Sua Memória" Reprodução do livro

Maria do Carmo foi libertada em julho de 1970, em troca do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, sequestrado pela VPR para libertar 40 presos políticos.

Partiu no grupo dos 40 que foi acolhido na Argélia e só retornou ao Brasil em 1979, com a Lei da Anistia.

João Carlos Bona Garcia era membro da VPR e foi preso pouco depois de ir a Três Passos levar dinheiro para a guerrilha montada às margens do rio Uruguai.

"Quando Lamarca saiu do quartel com o carregamento de fuzis, ficou meio sem ter onde ir. Então, a ideia era trazê-lo para uma região onde se pudesse iniciar uma luta no campo e tentar repetir um pouco do que o Mao [Tsé-tung] fez na China", conta o ex-guerrilheiro.

Documento revela como a repressão descobriu base tática da VPR

Arquivo Nacional

Segundo Bona Garcia, a VPR queria fazer também em Três Passos o que acabou se concretizando no Vale do Ribeira (SP).

Hoje juiz militar aposentado, ele reconhece a fragilidade dos planos do grupo. "Nós éramos um grupo de gente que queria mudar o país e levou isso às últimas consequências, porque força mesmo não tinha. A VPR era temida, mas não tinha estrutura."

Curtiu? Compartilhe.

Topo