Rota de fuga

Na fronteira, Uruguaiana era chance de escapar da repressão e ainda tem marcas do trabalho de Paulo Malhães

Andréia Lago e Kalinka Iaquinto Do Eder Content
Cacalos Garrastazu/Eder Content

Para o governo brasileiro, Uruguaiana (RS) era uma cidade estratégica após o golpe de 1964, tanto do ponto de vista comercial quanto militar. Para opositores dos regimes ditatoriais da América do Sul, era a chance de escapar de interrogatórios, torturas e desaparecimentos forçados.

Um dos principais e mais populosos municípios gaúchos, Uruguaiana é ligada à cidade de Paso de Los Libres, na Argentina, pela ponte Internacional Getúlio Vargas.

Embaixo dela, corre o rio Uruguai, outra rota de fuga de militantes de esquerda. Nas décadas de 1970 e 1980, com a Operação Condor em andamento, a travessia tornou-se uma aventura de alto risco.

Como diversas cidades fronteiriças, Uruguaiana foi incluída na Área de Segurança Nacional e passou a ser administrada por um prefeito nomeado pelos militares.

Nos relatórios de agentes da repressão, há relatos de uma rede de subversivos e comunistas no município ligados a organizações contrárias ao regime, como o Grupo dos Onze e o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8).

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O advogado Vilson Ferretto era inspetor da alfândega no regime militar. Não demorou a perceber que o ambiente na aduana havia mudado e, em 1965, pediu licença não remunerada por dois anos.

Elegeu-se vereador pelo MDB em 1968. "Eu confiava que haveria uma abertura e dois dias depois estourou o AI-5. Eu sabia que seria preso e me mandei para o Rio de Janeiro."

Ele retornou a Uruguaiana apenas para a posse, em 1969, quando aproveitou para fazer um discurso contra o regime e, em protesto, renunciar ao mandato. Meses depois, a ditadura cassou os mandatos dos demais vereadores do MDB na cidade.

O prédio da esquerda [da aduana] foi ocupado pela imigração, que eram agentes do SNI. A Guardamoria ficou restrita à direita

Vilson Ferretto

Vilson Ferretto, advogado

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Segundo ele, o prédio da alfândega não chegou a ser utilizado para interrogatório e torturas, mas um dos postos da Guardamoria --fiscalização aduaneira nas embarcações-- foi ocupado por agentes do SNI (Serviço Nacional de Informações).

"O prédio da esquerda foi ocupado pela imigração. Eram funcionários da Imigração que eram mais, assim, agentes do SNI", relata.

Quando já exercia o cargo de inspetor-geral da alfândega, Ferretto se lembra de ter sido barrado no acesso ao prédio, localizado na cabeceira da ponte no sentido de Paso de Los Libres.

O local em que agentes do SNI atuavam como funcionários da imigração brasileira é o mesmo citado espontaneamente pelo pastor metodista Orvandil Moreira Barbosa.

Localizado pela reportagem em Goiânia, onde vive atualmente, ele era uma voz conhecida --e incômoda para a ditadura-- em Uruguaiana pelos programas que apresentava na TV e nas rádios locais. Com 25 anos à época, o religioso também integrava o MR-8 e era monitorado pela repressão. 

Em 1970, Barbosa foi interrogado por agentes do regime em momentos e locais diferentes: no quartel dos fuzileiros navais na cidade e, por mais de uma vez, numa sala no porão da aduana brasileira ao retornar de Paso de los Libres.

Em meio ao interrogatório, foi torturado. "Eles usavam principalmente de xingamentos, tapas e empurrões. E de humilhação pública, porque eu tinha um programa de televisão e eles fecharam meu programa, entraram no estúdio com uma metralhadora", recorda.

Acervo pessoal Acervo pessoal

Parceria com os "hermanos"

A prática de interrogatórios sob tortura nas instalações da aduana não se restringia ao lado brasileiro da ponte entre Uruguaiana e Paso de Los Libres.

Segundo a historiadora Sabrina Steinke, pós-doutoranda em história do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), o agente argentino que agia no país vizinho era conhecido como "turco Julián", apelido de Julio Héctor Simón.

"A partir de 1976, havia uma sala na própria aduana onde trabalhou o famigerado turco Julián. Ele utilizava essa sala para interrogar e sabemos o que significava interrogar no período ditatorial: tortura física e psicológica para obter informações", diz ela.

Pesquisadora da atuação da repressão na fronteira, Steinke diz que os argentinos utilizaram, além da aduana, uma fazenda localizada em Paso de Los Libres.

"As evidências historiográficas que eu consegui indicam que a fazenda La Polaca foi um lugar para prisão e interrogatório de presos sob tortura, o que incluía argentinos, uruguaios, brasileiros e chilenos", afirma a historiadora.

Até hoje, porém, apenas uma testemunha, de nacionalidade argentina, reconheceu a La Polaca como centro clandestino de tortura. O lugar, entretanto, reúne características de outros cárceres clandestinos usados por Malhães no Brasil.

Segundo o Centro de Comunicação do Exército, as declarações do ex-coronel da reserva Paulo Malhães "eram de responsabilidade exclusiva do militar".

Acervo pessoal Sabrina Steinke/Juzgado Federal de Paso de los Libres Acervo pessoal Sabrina Steinke/Juzgado Federal de Paso de los Libres

Dr. Pablo esteve aqui?

O uso de salas nas aduanas para interrogatórios e a instituição de um centro clandestino de tortura em área rural de Paso de Los Libres remetem às técnicas utilizadas pelo coronel Paulo Malhães, ou dr. Pablo, codinome usado por ele em operações.

Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RJ), ele diz que esteve na cidade. 

Malhães - (...) Teve uma unidade que era um sargento que fornecia munição para eles. Uruguaiana. Eu cheguei lá e fui falar com o comandante da unidade e disse para ele: ‘Coronel eu vim comunicar que nós vamos prender um sargento seu que é responsável pelo paiol de munição’. ‘Por quê?’ ‘Porque ele está roubando munição do quartel e está vendendo para o pessoal do Lamarca, subversivos.’

CEV-RJ: Isso em Uruguaiana?

Malhães - É. Aí nós fomos, prendemos o cara, apertamos o cara, e o cara confessou que realmente ele saía com uma saca do que ele comprava no quartel, de alface, essas coisas assim, e no meio ele levava munição.

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Mas os testemunhos de ex-presos políticos ouvidos pela reportagem e registros oficiais do Exército não atestam essa afirmação.

Entre 1975 e 1980, a Folha de Alterações --documento que registra as atividades dos militares durante sua carreira no Exército-- do tenente-coronel Paulo Malhães indica 13 viagens ao Sul do país, sem detalhar o local específico.

Para a advogada Nadine Borges, que coordenou a CEV-RJ e foi provavelmente a última pessoa a interrogar o oficial, mesmo assim não é possível descartar que Malhães tenha atuado em Uruguaiana. 

"Ele se creditava como um formador de policiais argentinos, mencionou coisas relacionadas a controle de passaporte, entrada e saída, essa rota de fuga. Como esse período bate com o período mais truculento da ditadura argentina, faz todo o sentido as folhas de alteração dele indicarem que ele estava em Uruguaiana", afirma Nadine.

A Operação Condor

Em outubro de 1975, representantes das ditaduras de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai reuniram-se em Santiago e decidiram unir esforços e compartilhar informações sobre a ação de opositores de seus regimes na região.

O plano incluía operações conjuntas e secretas para desmembrar grupos de esquerda que atuavam nesses países. Entre as práticas, estavam vigiar, sequestrar, torturar, matar e desaparecer com corpos de presos políticos. 

Apesar das negativas das Forças Armadas, a participação brasileira na Condor ficou comprovada após a morte de Malhães, em 2014.

No sítio onde o militar foi morto, em Nova Iguaçu (RJ), na Baixada Fluminense, foram encontrados dois dossiês sobre a Operação Gringo, uma caçada a militantes argentinos que estivessem no Brasil.

Antes disso, em 2001, a divulgação de 20 mil documentos sobre o Chile e quase 4.000 sobre a Argentina, todos relacionados ao período dos governos militares, confirmaram a participação dos Estados Unidos na Condor. 

Em 2016, surgiram novas provas com a liberação de mais de mil páginas pertencentes à embaixada norte-americana em Buenos Aires, comprovando que entre 1980 e 1981 os Estados Unidos sabiam o que ocorria no país sul-americano.

Toma lá, dá cá na fronteira

O procurador da República Ivan Cláudio Marx esteve à frente dos casos envolvendo a Operação Condor entre 2008 e 2012 no Ministério Público de Uruguaiana.

Nesse período, investigou casos de militantes argentinos que desapareceram ao cruzarem a fronteira.

"A função era justamente essa troca imediata, que é facilitada. No caso das fronteiras é simples, faz o que os policiais civis fizeram em Uruguaiana: prende com a autoridade da polícia brasileira e entrega para os policiais argentinos", explica. 

O procurador não elimina a possibilidade de Paulo Malhães ter atuado em Uruguaiana. A ausência de pistas, diz Marx, pode demonstrar que ele era um bom profissional.

"Ele deveria ir a esses lugares e não deixar nenhum rastro. Se ele conseguiu, não quer dizer que ele não foi, talvez ele apenas tenha feito o trabalho bem feito."

A pesquisadora Sabrina Steinke diz que ele pode até não ter estado fisicamente na cidade, mas isso não elimina suas digitais nos acontecimentos locais.

"Se aconteceu [a presença de Paulo Malhães em Uruguaiana], foi discreta. Mas é bom lembrar que ele esteve no Rio Grande do Sul ensinando os militares a atuar", observa.

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