Vestígios na terra de Jango

Em São Borja, ex-colegas de Malhães na academia militar serviam no quartel onde houve torturas e sequestro

Andréia Lago e Kalinka Iaquinto Do Eder Content
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Em 1964, o município de São Borja (RS) tinha cerca de 35 mil habitantes. Um deles era o presidente da República, João Goulart. Jango tinha casa, família, amigos e terras na cidade natal, localizada às margens do rio Uruguai, na divisa com o município argentino de Santo Tomé.

Pelos laços com o presidente deposto e pela localização estratégica, o governo militar enviou oficiais e agentes de outros estados para comandar suas tropas na terra de Goulart.

Agente do Centro de Informações do Exército (CIE), o coronel Paulo Malhães disse que não só esteve em São Borja como utilizou cárceres temporários para interrogar presos políticos. Assim como em Uruguaiana, o rastro do militar está lá, mas ninguém confirma oficialmente essa informação.

"Ele foi desmantelar uma passagem que o capitão Carlos Lamarca faria pelo lugar, e o Malhães reivindicou ser o grande autor da inteligência que impediu isso, de eles [a VPR, Vanguarda Popular Revolucionária] não terem conseguido articular essa saída para o Lamarca", narra a advogada Nadine Borges, coordenadora da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RJ).

A reportagem localizou, no Arquivo Nacional, um informe do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) distribuído em janeiro de 1970 que confirma a circulação do dissidente nas proximidades.

O documento relata a chegada do dirigente da VPR a Montevidéu, no Uruguai, em outubro de 1969, via Santana do Livramento (RS), a menos de 400 km de São Borja.

Segundo o Centro de Comunicação do Exército, as declarações do ex-coronel da reserva Paulo Malhães "eram de responsabilidade exclusiva do militar".

O ex-sargento do Exército Natalício Cabeleira era escrivão no quartel do 2º RC Mec (Regimento de Cavalaria Mecanizada) até 1970.

Não se lembra da passagem de um oficial vindo do Rio de Janeiro ou de Brasília para interrogar presos políticos em São Borja, mas recorda que o regimento contribuiu com tropas para desmontar uma nova área de guerrilha em Três Passos --tema do capítulo 5 desta série, que será publicado na sexta-feira.

"Lamarca tinha gente, sargentos, oficiais, praças e cabos dentro das unidades que prestavam apoio a ele. Aqui não tinha, mas deslocaram esquadrões de vários lugares. Havia uma suspeita de que estivessem preparando a área lá para uma guerrilha", relata Cabeleira.

Informe de 1970 da Aeronáutica aponta que capitão Lamarca esteve no RS

Arquivo Nacional
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Nas tardes em que foi interrogado por Nadine, cerca de dois meses antes de ser morto no sítio onde vivia, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ), Malhães mostrou conhecer detalhes da cidade: na beira do rio, próximo do hospital, onde é a polícia. "Claro que poderia ser toda uma construção. Eu costumo dizer que nunca dá para tomar como verdade o depoimento de um torturador", observa a advogada.

Em São Borja, os membros do Grupo dos Onze --estratégia lançada pelo ex-governador Leonel Brizola em defesa da legalidade em 1961, quando Goulart assumiu a Presidência da República-- foram os primeiros a serem levados pelos militares para interrogatório.

"Eu e todos os meus irmãos fomos presos, toda a família", conta Dilon Paiani Durão, que ficou 60 dias detido e incomunicável no 2º RC Mec, sem direito a advogado.

Paiani tinha 21 anos e havia dado baixa do serviço militar obrigatório no mesmo quartel. Era outubro de 1969, período em que, surpreendido pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick por grupos de esquerda no Rio de Janeiro, o governo endureceu a repressão aos opositores do regime.

Se eles não gostavam de você, era só ir lá e dizer 'esse aí é comunista' que te prendiam sem dar a mínima satisfação. Isso era ditadura. Por isso eu digo: mesmo a pior democracia é melhor que uma ditadura, tu não tem direito a nada, não tem vontade própria

Dilon Paiani Durão

Dilon Paiani Durão, ex-preso político

"Havia mais de cem pessoas presas naquela época, em todo o quartel tinha gente presa", relata Paiani. Segundo ele, inclusive as baias dos cavalos do regimento foram usadas para torturar presos na calada da noite.

"Me tiraram da cela e me levaram para lá, disseram para contar das reuniões que faziam [o Grupo dos Onze]. Não podia contar o que eu não sabia, e eles diziam que me matariam se eu não falasse", diz o professor aposentado, prestes a completar 70 anos.

Paiani morava com o irmão, Miguel Durão, conhecido como Bê, numa casa onde se realizavam as reuniões do Grupo dos Onze, no bairro do Passo.

Caça aos comunistas no berço do trabalhismo

No berço do trabalhismo de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, os militantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) eram os mais ativos no Grupo dos Onze.

A liderança reconhecida dos comunistas em São Borja era o vereador Alberto Benevenuto, médico humanitário que atendeu o próprio presidente deposto em seu exílio, no Uruguai.

Benevenuto cruzou a fronteira com destino a Santo Tomé logo após a queda do governo Goulart e só retornou em 1966. 

Houve uma negociação para que sua prisão preventiva fosse revogada, mas a ditadura não cumpriu o combinado: Benevenuto foi preso e entregue ao Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), em Porto Alegre.

"Era 1966, eu não sei precisar datas exatas porque esses documentos alguns a gente não localiza, outros sumiram", conta a filha do médico, Marília Benevenuto Chidichimo.

"Ninguém tinha notícia de onde meu pai estava depois que entrou no Dops", diz a advogada, que passou parte da infância no exílio, em Montevidéu.

Até agosto de 1966, agentes da repressão gaúcha usaram um casarão na rua Santo Antonio --conhecido como Dopinha-- como cárcere clandestino para torturar presos políticos.

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Em 1975, Benevenuto e a família foram morar na capital gaúcha, mas o médico não interrompeu a militância no PCB.

"Eles se reuniam seguidamente numa praia perto de Capão da Canoa (RS), e foi de onde meu pai saiu no momento em que ele foi morto", relata Marília, que até hoje busca explicações para a morte do pai.

Era 1978, período em que militares linha-dura resistiam à abertura do governo Geisel. Em todo o país, lideranças do PCB foram presas e torturadas e muitas desapareceram em cárceres clandestinos da repressão.

O acidente que tirou a vida de Benevenuto na BR-101 nunca foi investigado e as autoridades não permitiram autópsia do corpo para apurar a causa da morte.

"Não houve investigação, perícia do carro, autópsia, inquérito, nada. Não há registro oficial desse acidente. E houve diversas ameaças de morte ao meu pai", lembra Marília.

Para a família, Benevenuto foi assassinado pela repressão.

De acordo com Dilon Paiani, o militar que comandava os interrogatórios em São Borja era o então capitão Waldemar Tuiuti Santos Clós.

Hoje coronel reformado, Tuiuti foi colega de turma de Paulo Malhães na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em 1958.

Ambos frequentaram a academia de formação de oficiais do Exército no mesmo período que o então tenente Décio Penafirme, atualmente coronel da reserva.

A reportagem localizou o ex-coronel Tuiuti em Uruguaiana, onde ele reside, mas o militar estava internado em um hospital de Porto Alegre para uma cirurgia. "Ele tem Alzheimer, não lembra mais nada", conta o ex-coronel Penafirme.

Eu estive aqui todos os dias e nunca vi tortura no quartel. Nunca vi prisão nenhuma que fosse de cara inocente. Eles vão dizer que foram torturados, claro. Querem ganhar indenização

Décio Penafirme

Décio Penafirme, coronel reformado do Exército

Com 80 anos, Penafirme seguiu carreira militar e comandou o 2º RC Mec entre 1986 e 1988, logo após a redemocratização.

Conheceu Malhães na Academia, mas nega que o agente do CIE tenha estado na cidade. "Não, nunca vi. A única lembrança que eu tenho foi de um escrito que ele me deu quando a gente era cadete", afirma.

Era um poema, que Penafirme recitou de memória, para ele impressionar uma namorada.

Malhães, segundo o colega de AMAN, gostava de poesia. "A imagem que eu fiquei dele era a de que ele tinha uma cultura geral muito grande, escrevia muito bem." 

Tortura, sequestro e pena de 15 meses

O advogado criminalista Dino Lopes era um dos mais de cem presos relatados por Dilon Paiani nas dependências do 2º RC Mec. "Havia mais de cem, seguramente", relata Lopes, que permaneceu no quartel por 55 dias sem acusação formal ou direito a advogado.

Dos interrogatórios sob tortura, restou a perda da visão do olho direito. Quando foi comunicado que seria libertado, na madrugada de 31 de janeiro de 1970, um novo revés: nos primeiros passos fora do regimento de cavalaria, foi sequestrado por fuzileiros navais.

"Eles me sequestraram para não me deixar solto. Pensei que ia morrer. Não havia como tentar escapar, eles estavam armados", diz.

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Vereador eleito pelo MDB em novembro de 1968, Lopes foi levado de madrugada ao quartel do Corpo de Fuzileiros Navais, localizado num terreno às margens do rio Uruguai --atual sede da Polícia Federal em São Borja.

Edgar Lucena Schenkel era soldado de primeira classe do Destacamento dos Fuzileiros na cidade e confirma a operação.

Em declaração registrada em cartório, o ex-fuzileiro atesta que o advogado foi sequestrado "numa ação que envolveu o Exército, o Corpo de Fuzileiros Navais e o Dops-RS, armados e encapuzados, em frente à sentinela militar do 2º RC Mec".

Não sabe quem deu a ordem para sequestrar Dino Lopes, Miguel Paiani Durão e Amândio Amaral: "Nosso capitão recebia ordens de Uruguaiana ou do 2º Regimento de Cavalaria, e o sequestro foi programado por ordens superiores. Se não cumpríssemos, seria insubordinação".

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Miguel Paiani Durão era integrante do Grupo dos Onze e muito próximo de Alberto Benevenuto, líder do PCB.

Conhecido como Bê, ele foi preso após um atentado com coquetel molotov à residência do sargento Cabeleira. "Descobriram que ele denunciava aos militares quem era oposição ao regime na cidade. Aí foram lá e jogaram o molotov para ele sair e o matarem", conta Dilon, irmão de Miguel.

Ninguém ficou ferido no atentado, que gerou um Inquérito Policial Militar conduzido pelo capitão Tuiuti. 

"Meu irmão era analfabeto, mas era uma liderança, tinha contato com o pessoal do Brizola, foi para o Rio de Janeiro na campanha da legalidade", lembra.

Assim como Benevenuto, Bê também foi morto em circunstâncias suspeitas em 1971, na estrada entre São Borja e São Luiz Gonzaga, quando transportava mercadoria contrabandeada da Argentina.

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