Meu SUS não é igual ao seu

Superespecializados, tratamentos de câncer e doenças cardiovasculares são desiguais dentro do próprio sistema

Larissa Leiros Baroni* Do UOL, em São Paulo
Di Vasca

Uma tinha 11 anos, em plena vida escolar. A outra, aos 53 anos, acabava de se aposentar. A primeira vivia em Santo Antônio da Alegria (351 km de São Paulo). A segunda, em Cotia (região metropolitana de São Paulo). Enquanto uma tinha planos do que "fazer quando crescer", a outra planejava como aproveitar o tempo livre depois da aposentadoria. O ponto em comum: a descoberta de um câncer. Sem convênio, as duas recorreram ao SUS. Mas não tiveram o mesmo atendimento. 

A jovem Érica Zaneti descobriu o tumor ósseo precocemente. Já Elfriede Galeran não teve a mesma sorte. A aposentada só descobriu o câncer de mama quando a doença já tinha se espalhado para outros órgãos do corpo, quase dois anos depois de ter procurado o primeiro atendimento.

No último capítulo da série sobre os problemas do SUS, esses dois exemplos descrevem as desigualdades da saúde pública no atendimento aos pacientes diagnosticados com câncer no país, que não são poucos. 

No Brasil, somente para este ano, são esperados cerca de 600 mil novos casos de câncer, segundo estimativa do Inca (Instituto Nacional de Câncer). Em 2015, 207 mil brasileiros morreram vítimas da doença, o que representa 16% dos óbitos no país. 

O primeiro episódio tratou de bolsões de excelência contrastando com hospitais sem remédios, falta de médicos ou ineficientes nos diagnósticos.

o segundo abordou os gargalos do sistema. No terceiro, porções do interior do Brasil ainda esperam pela prometida “universalização da saúde”.

Amanda Perobelli/UOL

Um SUS problemático

Em 2008, após notar que uma das mamas estava bem mais dura do que o normal, Elfriede Galera decidiu procurar atendimento ginecológico no posto de saúde mais próximo de sua casa. Mesmo relatando a anormalidade, o médico não fez o exame de toque, tampouco pediu a mamografia.

Inconformada, a paulistana decidiu fazer o exame em uma clínica particular para levá-lo no retorno da consulta com os demais exames periódicos. "Tinha certeza de que tinha algo de errado", conta ela. "Mal olharam os resultados, falaram que estava tudo bem comigo e pediram para que retornasse em um ano. Simples assim."

Durante esse período, as mudanças no peito foram se intensificando. "Até que o bico da mama direita ficou completamente descentralizado", relata a aposentada, que decidiu buscar outro posto, dessa vez na Granja Viana, na zona oeste da Grande São Paulo, para tentar um atendimento melhor. A decepção foi ainda maior.

Amanda Perobelli/UOL Amanda Perobelli/UOL

"Relatei para o médico minhas desconfianças, mostrei a mamografia que havia feito no ano anterior e a resposta foi: 'O que a senhora está precisando é de uma pia cheia de louça para lavar'. Saí do consultório arrasada", lembra Elfriede.

Em 2010, foi incentivada por uma conhecida a procurar o Hospital Pérola Byington, na capital paulista. E foi lá que ela conseguiu ser ouvida e tocada pela primeira vez.

"Passei por uma triagem, que, depois de avaliar a mamografia de quase dois anos atrás, aquela mesma que outros dois médicos ignoraram, me deu a senha para passar por um mastologista. Até chorei de tanta emoção."

Na consulta, o médico disse se tratar de um câncer de mama, que, possivelmente, já tinha se espalhado para outros órgãos. Diagnóstico que se confirmou pouco tempo depois com a biópsia. Desde 28 de abril de 2010, a aposentada --atualmente com 62 anos-- luta para se manter viva.

Em oito anos, ela passou por seis tipos diferentes de quimioterapia. Viu os cabelos caírem quatro vezes. Teve que retirar toda a mama direita, mas, por causa da metástase, não pode optar pela reconstrução.

Talvez tudo fosse diferente se eu tivesse recebido o tratamento da primeira vez que consultei o médico.

40 mil pacientes demoram para começar o tratamento

"O tempo é fator determinante para a efetividade do tratamento oncológico", ressalta Rafael Kaliks, médico do Hospital Israelita Albert Einstein. "Quanto mais cedo é detectado, maiores as chances de cura e a qualidade de vida para o paciente."

Há desde 2012 uma lei que exige que o tratamento oncológico no sistema público de saúde se inicie em no máximo 60 dias a partir do diagnóstico da doença. Segundo um estudo do Observatório de Oncologia do movimento Todos Juntos contra o Câncer, em 2015, a regra não funcionava para 19% dos casos no país.

"O número parece pequeno, mas não é. Estamos falando de mais de 40 mil pacientes, o que representa a Arena Corinthians lotada", compara Tiago Lobo, pesquisador do órgão, que lamenta o desrespeito à lei brasileira, assim como a inexistência de uma norma que regulamente também o tempo mínimo entre a primeira consulta e o início do tratamento.

Em geral, 32% dos casos dos pacientes com câncer no país levam em média mais de dois meses entre a primeira consulta e o início do tratamento. "Tempo de espera que é menor entre os pacientes pediátricos", destaca Lobo, que também aponta uma desigualdade regional que está ligada ao déficit assistencial.

Segundo ele, o tempo de espera é menor entre os pacientes do Norte e do Nordeste, mas maior no Centro-Oeste e no Sudeste. "Isso não quer dizer que o tratamento nas regiões com tempo de espera menor seja mais eficiente. Pode ser que os casos de câncer por lá não cheguem nem a ser diagnosticados." 

Mauro Marques/UOL

Um SUS ágil e eficiente

Mauro Marques/UOL Mauro Marques/UOL

Érica teve bem mais sorte que Elfriede. Ela foi parar no hospital após machucar a perna na aula de educação física. E os médicos acabaram detectando uma mancha anormal logo abaixo da fratura. Diante dos indícios de um tumor, a encaminharam para o Hospital Amor, em Barretos (a 424 km da capital paulista). A biopsia confirmou as suspeitas e diagnosticou o osteossarcoma --tipo de câncer maligno que começa nas células formadoras dos ossos.

Foram nove meses de tratamento, com sessões de quimioterapia e uma cirurgia. "Quando descobri o câncer, tinha medo de perder o cabelo, mas nem sabia que o cabelo não seria nem de longe a pior parte", conta a jovem, que atualmente está com 20 anos.

Mais terrível foi aguentar os efeitos colaterais dos remédios e a distância da família e dos amigos --já que ela quase mudou de cidade para ter a cura da doença, confirmada cinco anos depois.

Hoje, ela está no terceiro ano da graduação de medicina e não descarta a possibilidade de seguir a carreira de oncologista.

Igualitário apenas no papel

As diferenças no SUS não se limitam ao tempo do diagnóstico do câncer. O tratamento, segundo um estudo realizado pelo Instituto Oncoguia, varia de maneira significativa entre os mais de 288 centros habilitados no tratamento da doença no SUS.

"Além do descompasso em relação aos tratamentos oferecidos na rede privada --que, por exemplo, já recorre à imunoterapia para cerca de dez tipos de câncer (medicamentos não disponíveis na rede pública)--, o sistema que teoricamente deveria ser igualitário não o é", relata Kaliks, que, além de oncologista, é diretor científico do Oncoguia.

O estudo avaliou as diretrizes de tratamento dos tipos mais incidentes de câncer (mama, colorretal, próstata e pulmão). Os pesquisadores identificaram um padrão de tratamento inferior ao recomendado pelo Ministério da Saúde em 16 dos 29 centros para o câncer de pulmão e em 8 dos 33 centros para câncer de mama. Mas, em contrapartida, 45 dos protocolos avaliados (8 de pulmão, 13 de mama, 10 de colorretal e 14 de próstata) eram superiores ao recomendado.

"Notamos que, em uma mesma cidade, há padrões muito diferentes de tratamento", afirma Tiago Farina Matos, um dos autores do estudo, que afirma que essa heterogeneidade atinge todas as regiões do país. Problema que, na opinião dele, foi intensificado com o início da compra decentralizada dos medicamentos.

"O SUS paga um valor fixo para cada paciente e a decisão do tipo de tratamento fica a cargo do hospital. E, se ele recebe R$ 1.100 por paciente, como adotar o uso de um medicamento no valor de R$ 3.000?", questiona Matos, que diz que essa liberdade dada ao hospital acaba colocando em xeque o tratamento igualitário.

Uma desigualdade que, para Farina, incentiva o "jeitinho" --como procurar a Justiça e furar a fila de atendimento nos centros de referência.

Nesse cenário, ganha quem tem a sorte de morar na região atendida por um dos centros de referência, onde terá mais chance de cura, de qualidade de vida e maior tempo de sobrevida caso venha a desenvolver um câncer. 

Rafael Kaliks, oncologista

CNES-DataSUS/Observatório de Oncologia
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Desigualdade se repete no tratamento do coração

Beto Macário/UOL Beto Macário/UOL

Quem tem problema no coração também está à mercê da sorte de cair no hospital certo. Isso a pequena Maria Samara da Silva, 11, não teve. Ela nasceu com uma doença rara congênita no coração chamada Tetralogia de Fallot (alterações na estrutura do órgão que reduz o fluxo sanguíneo no pulmão). O problema poderia ter sido descoberto com o teste do coraçãozinho ainda na maternidade.

"Quando bebê, se ela chorasse bastante, acabava desmaiando", conta a mãe Marta Silva, 48, que mora em Atalaia, no interior de Alagoas. Os desmaios foram ficando mais frequentes à medida que Maria Samara crescia.

Por falta de um pediatra nos municípios, ela nunca teve esse acompanhamento médico. Mas, sempre que precisava, a levava no posto de saúde e nunca ninguém suspeitou de nada.

Foi em uma dessas crises de desmaio que a pequena foi parar no hospital e recebeu o diagnóstico. "Nem sei quantas vezes fui parar com ela no hospital. Mas em todas as vezes os médicos a medicavam e depois mandavam para casa", lembra a dona de casa. 

A vida de Maria Samara era cheia de limitações. "Andar 100 metros já era um grande sacrifício", conta Marta. "Quase todos os dias a escola me ligava para ir buscá-la porque não estava se sentindo bem."

Tudo mudou quando a mãe viu uma reportagem no noticiário local sobre a Casinha do Coração, em Maceió, quase seis anos depois do início da maratona em busca de tratamento para a filha.

"Só esperei juntar um dinheirinho para a passagem e, na semana seguinte, já estava lá tentando agendar uma consulta para a minha Samara." E, em julho de 2018, menos de dois meses do primeiro contato com a instituição, a pequena entrou em centro cirúrgico e ganhou uma nova chance de viver. "A vida dela mudou 100%. Agora ela pode ter a vida igual à de qualquer outra criança."

Se a doença tivesse sido descoberta antes, a cirurgia também teria sido feita antes. "Esse caso é reflexo de um problema sistêmico, que começa lá na maternidade", afirma Adriana Cunha, cardiopediatra do Hospital do Coraçãozinho.

Taxa de mortalidade varia de acordo com atendimento

A cada dois minutos, um brasileiro morre de uma doença cardiovascular, segundo o Ministério da Saúde. Mas a principal causa de morte no país, de acordo com Carlos Alberto Machado, consultor da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), poderia ser evitada na maior parte das vezes caso o atendimento básico de saúde fosse mais resolutivo. "Basta uma atenção maior aos programas de controle de hipertensão e diabetes, que muitas vezes são negligenciados", destaca ele.

Quando esses problemas não são detectados e tratados precocemente, acabam ganhando proporções mais significativa com chances reais de morte. E, pior, a chance de morte varia de acordo com o hospital que irá atender a emergência, afirma Antonio Carlos Carvalho Camargo, que atua no setor de cardiologia do Hospital São Paulo.

A mortalidade por infarto no país gira em torno de 14% e se mantém praticamente inalterada há cerca de dez anos, afirma Camargo. Agora, se você for atendido em um hospital de referência, a probabilidade cai para 5%. Um índice bem próximo ao dos Estados Unidos, que é de 3%.

"Em São Paulo, por exemplo, a taxa de mortalidade mantém a média nacional, mas na periferia ele sobe para 20%."

Conseguir reduzir a média de mortalidade de infartos no país de 14% para 5%, como cita Camargo, seria como evitar a queda de um avião Boeing por semana no país. 

"Quando uma pessoa sofre um infarto, precisa fazer a angioplastia [desobstrução da artéria] em até duas horas ou tomar o trombolítico [remédio que abre a artéria entupida em pelo menos 70% dos casos] para ampliar esse prazo para 24 horas", explica o cardiologista. "O pior mesmo é que há hospitais que não contam nem o remédio, complicando ainda mais situação do paciente."

A demora impacta nos números de mortes e também no custo do tratamento.

Se o paciente é atendido mais rapidamente, pode ter alta até três dias. Mas, quando o atendimento ao infartado é mais demorado, ele acaba ocupando o leito por mais tempo, levando até dez dias.

Antonio Carlos Carvalho Camargo, cardiologista

Gilclecio Farias Luz Gilclecio Farias Luz

Três infartos e três atendimentos distintos

Como foi o caso do paraense Wilson Souza Teixeira, 54, que, após o primeiro infarto, teve que ficar hospitalizado por mais de uma semana. "Era um sábado e, logo depois do almoço, comecei a sentir muita dor de cabeça e vontade de vomitar. Decidi ir à farmácia e descobri que estava com a pressão muito alta", conta o assistente social, que na época tinha 41 anos. Ele procurou o hospital de Marabá (a 554 km de Belém), mas precisou ser transferido para a capital para fazer a angioplastia.

Essa não foi a única vez que Wilson precisou desobstruir a artéria. O ex-fumante --que consumia pelo menos 20 cigarros por dia-- voltou a sofrer outros dois infartos: um com 45 anos, enquanto assistia a uma partida de futebol no estádio; e o outro aos 47 anos, dormindo. Como estava na capital, o atendimento do segundo infarto foi muito mais rápido, assim como a alta. Na terceira experiência, dependeu de uma transferência de Marabá para Belém.

"Não tenho infarto há sete anos", comemora Wilson, que diz ter modificado radicalmente o seu estilo de vida. Além de parar de fumar e reduzir significativamente o consumo de álcool, o paraense diz ter passado a cuidar mais de si mesmo e não deixa de tomar a medicação diária para a pressão alta. 

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