Deslocados

As Nações Unidas relatam que um recorde de 65 milhões de pessoas foram deslocadas por conflitos globais

Kofi Annan
Dimitar Dilkoff/ AFP

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Dezenas de milhões de pessoas estão em fuga, e a globalização trouxe mudanças rápidas e difíceis para muitas economias ao redor do mundo. A democracia seria forte o suficiente para suportar esses desafios?

Seja qual for seu nível de fé no processo, os eleitores vão às urnas no ano que vem em Hong Kong, Chile, França, Alemanha, Irã, Quênia, Holanda, Ruanda, Coreia do Sul e Tailândia, entre outros países. A esperança é que a democracia se saia melhor do que em 2016. A essência desse antigo sistema de governança está sendo testada. A liberdade tem diminuído em todo o mundo pelo 11º ano consecutivo, de acordo com a organização não governamental Freedom House.

Muitos países que pareciam estar em transição para a democracia, como Egito, Turquia, Tailândia e República Democrática do Congo, estão retrocedendo; entre as exceções encorajadoras estão Mianmar, Nigéria e Tunísia. Entretanto, muitos regimes autoritários estão reprimindo ainda mais a dissidência. E nas democracias estabelecidas, a confiança nos políticos, na filiação partidária e na participação eleitoral -- todos indicadores da legitimidade democrática -- vêm progressivamente diminuindo há anos.

Por que esses desafios surgiram agora e com tanta força? Um ponto em comum é a globalização, um poder supranacional não eleito. Uma vez recebida como uma bênção, ela é cada vez mais considerada uma ameaça -- à segurança, à identidade cultural, à economia.

A globalização tem ajudado centenas de milhões de pessoas a escapar da pobreza, reduziu custos de bens manufaturados para os consumidores de todo o mundo e proporcionou uma mobilidade sem precedentes. Mas também aumentou as desigualdades dentro dos países e reduziu o poder dos governos para controlar suas fronteiras e suas economias.  

Licoln Agnew via The New York Times Licoln Agnew via The New York Times

A globalização faz o mundo mais interdependente, mas os sistemas políticos permanecem nacionais. Candidatos a altos cargos geralmente fazem campanha com questões internas, mas depois que vencem, se veem tendo que enfrentar questões internacionais complexas sobre as quais têm controle limitado, o que acaba dificultando a realização de suas promessas eleitorais.  

Essas falhas geram a impressão de perda de soberania. Veja o caso da Europa. A União Europeia -- a tentativa mundial mais ambiciosa para adaptar a democracia à crescente interconexão global -- está desgastada. Muitos europeus, confrontados com a inundação de migrantes e abalados por ataques terroristas, querem fechar suas fronteiras. Mas a mentalidade de fortaleza pode provavelmente limitar sua capacidade de influenciar o que está do outro lado do muro. Um país da UE que age sozinho não é tão poderoso quanto um que faz parte do grupo.

O propósito da UE nunca foi ceder soberania, como alegaram aqueles que apoiaram o Brexit no Reino Unido, mas partilhá-la. No entanto, muitos observadores questionam o futuro da UE, dadas suas falhas evidentes em face da Grande Recessão de 2008, da crise da dívida europeia e dos migrantes desesperados em suas fronteiras.

A globalização também tende a dividir as sociedades em vencedoras e perdedoras. Enquanto alguns indivíduos e organizações -- incluindo o crime organizado -- acumularam uma riqueza sem precedentes (e conseguiram minimizar impostos graças a mercados globais e à mobilidade do capital), muito mais pessoas no Ocidente viram seus rendimentos estagnarem. A globalização não parece estar favorecendo a todos igualmente. Populistas como Donald Trump, nos EUA, Marine Le Pen, na França, e Nigel Farage, no Reino Unido, exploram essa situação com finalidades partidárias.

Alex Ogle/ AFP Alex Ogle/ AFP

Embora líderes autoritários, eternos críticos da democracia, também usem a linguagem do nacionalismo desvairado ao lidar com a globalização, eles são dependentes da economia global, o que limita sua margem de manobra. Esses líderes podem ser menos vulneráveis aos caprichos da opinião pública, mas são geralmente ligados a grupos poderosos e pouco transparentes, como generais do Exército, integrantes de partidos e oligarcas.

Em períodos de turbulência, sistemas autoritários podem parecer atraentes devido à rápida tomada de decisões que possibilitam. No entanto, sua capacidade de tomar decisões imediatas baseadas nos caprichos de um só homem historicamente levou a catástrofes que não seriam possíveis em democracias, que estão enfraquecidas, mas também protegidas por supervisão e controle.

Nossa apreciação das democracias pode ser afetada pela informação desigual. Regimes autoritários tendem a parecer melhores do que são, porque a informação é controlada, a crítica é suprimida e um fluxo constante de propaganda cria uma falsa sensação de popularidade; as democracias tendem a parecer pior porque seus meios de comunicação, as sociedades civis e os políticos ampliam seus problemas. Na realidade, sistemas autoritários são frágeis face à mudança e as democracias mais resilientes graças à sua legitimidade fundamental, governança responsável e válvulas de segurança proporcionadas pela liberdade de expressão.

O World Values Survey demonstrou várias vezes que o desejo de livre escolha e autonomia é uma preferência universal, temperado apenas por uma preocupação com a segurança. Políticos com tendências autoritárias exploram essa preocupação, manipulando a política do medo. Adversários, reais ou imaginários, são sua melhor defesa contra a aspiração natural de seu povo por maior liberdade.

Joseph Eid/ AFP Joseph Eid/ AFP

Para dar vazão a esse desejo, quase todos os países do mundo promovem eleições, mas, mesmo onde os resultados são predeterminados, os líderes afirmam estar governando em nome de seu povo.  As eleições não são verdadeiramente democráticas se não forem inclusivas, transparentes e verificáveis. Elas não conferem legitimidade genuína, como foi visto no ano passado no Burundi, onde a reeleição do presidente Pierre Nkurunziza, marcada pela violência, não resolveu a crise política do país.

Quando rivais políticos e seus apoiadores não acreditam que o processo eleitoral seja livre e justo, buscam métodos menos pacíficos para alterar o rumo e a liderança política. Para que a rua não tome o lugar da urna, eleições confiáveis são essenciais.

Devemos promover eleições legítimas ao redor do mundo -- não só porque achamos que a democracia é eticamente superior a outras formas de governo, mas também porque oferece resultados melhores. Elas detêm a melhor promessa de paz, de desenvolvimento e de respeito pelos direitos humanos e pelo Estado de Direito.

Então, como podemos ajudar as democracias a florescer com o atual progresso da globalização? A melhor maneira não é "exportar a democracia", como acreditava a administração de George W. Bush, por exemplo, que enviou tropas americanas ao Iraque e a outros lugares, mas sim inspirar as pessoas a importá-la, demonstrando que funciona.

Dani Pozo/ AFP Dani Pozo/ AFP

A construção da democracia começa em casa. Lideranças democráticas devem ser honestas com seus eleitores sobre as recompensas e as restrições do mundo globalizado. Além disso, precisam também se certificar de que essas recompensas sejam amplamente compartilhadas, o que exige que os ricos sejam efetivamente taxados para que todo o povo se beneficie dessas recompensas. Por fim, os líderes democráticos devem ser sensíveis às prioridades das massas, não só os poucos que contribuem para campanhas ou contratam lobistas.

Mas os cidadãos que têm a sorte de viver em democracias também têm responsabilidades: eles devem canalizar suas aspirações políticas e queixas de forma construtiva, em vez de simplesmente protestar de modo destrutivo ou embarcar em uma apatia eleitoral. A democracia é tão forte quanto seus cidadãos a fazem. Não conseguimos ter democracias saudáveis e representativas onde grande parte da população não vota. Tuitar não é o suficiente.

Com o colapso da União Soviética há 25 anos, parecia inevitável que a democracia iria prevalecer -- as democracias de mercado que haviam triunfado sobre o comunismo também eram as sociedades mais prósperas e livres do mundo. A democracia pode parecer menos atraente em um momento de estagnação da renda, desigualdade social e terror, especialmente em situações em que o dinheiro tem uma influência desproporcional na política. E mesmo assim, os movimentos de cidadãos em sociedades tão díspares quanto Burkina Faso, Hong Kong e Venezuela mostram que as aspirações democráticas são vitais no mundo todo.

Às vezes ouço dizer que a democracia perdeu seu senso de propósito. Isso não é verdade. Sua finalidade é criar condições nas quais os cidadãos livres possam levar uma vida o mais gratificante possível, escolhida por eles mesmos. Os seres humanos precisam não só de meios de subsistência e segurança, mas também de liberdade, dignidade e justiça.

Democracia, independentemente de suas falhas, é o sistema político que melhor consegue responder a essas necessidades. Espero que as eleições do ano que vem tragam notícias positivas para esse sistema de governo, com todos os benefícios que ele pode oferecer.

The New York Times The New York Times

Kofi Annan foi secretário-geral das Nações Unidas de 1997 a 2006, foi premiado com o Nobel da Paz com as Nações Unidas em 2001. É o fundador e presidente da Fundação Kofi Annan.

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