O futuro da imigração

As sociedades devem manter as portas sempre abertas aos milhões que estão fugindo da violência no mundo?

Sergey Ponomarev/The New York Times

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Não se via uma crise global de refugiados desse porte desde o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Mais de 65 milhões de pessoas – o equivalente a vinte por cento da população norte-americana – foram desalojadas ao redor do mundo; dessas, 21 milhões são refugiados. Só na Síria, 6 milhões deixaram suas casas e outros quase cinco deixaram o país.

Tanto a Europa como os EUA estão em uma posição precária: as democracias são frágeis e movimentos de direita pela anti-imigração, fomentados pelo preconceito e pelo medo, estão em ascensão.

No Fórum da Democracia, realizado pelo New York Times em Atenas, na Grécia, em setembro, Roger Cohen, colunista do "New York Times", foi o moderador da discussão sobre imigração entre Stavros Lambrinidis, representante especial da União Europeia para os Direitos Humanos, o ex-primeiro-ministro italiano Mario Monti e Lucas Papademos, ex-primeiro-ministro da Grécia.

A conversa girou basicamente em torno do futuro da imigração e quais as obrigações internacionais – se é que há alguma – de receber bem, assimilar e proteger aqueles que procuram asilo. Segue uma versão editada e condensada do diálogo.
 

Roger Cohen: Tendo em mente as lições da Segunda Guerra Mundial e a maneira como as portas se fecharam para os refugiados nos anos 1930, o que devem fazer as sociedades, manter as portas sempre abertas aos necessitados? Ou às vezes são obrigadas a fechá-las?

Stavros Lambrinidis: Não. Acho que deve se manter aberta, mas a imigração e o número de refugiados têm de ser controlados. Não pode deixar virar caos. Sob nenhuma hipótese se deve fechar a porta para alguém cujo único crime foi ter nascido numa região pobre ou destruída pela guerra. Ao mesmo tempo, é preciso lidar com as causas desses problemas, do contrário estaremos só amenizando as consequências.

Falamos de crise de refugiados na Europa, mas acho que essa é uma denominação errônea. Acima de tudo é uma crise para milhões de homens, mulheres e crianças que tiveram de deixar seus países, enfrentando todo tipo de dificuldade, inclusive traficantes humanos, para chegar aqui, correndo o risco de se afogarem.

Roger Cohen: Mas eles não são refugiados?

Stavros Lambrinidis: Você é refugiado quando é reconhecido como tal. Eles estão em busca de asilo. Estão deixando seus países por outros, geralmente próximos de onde estão porque, em teoria, pretendem voltar. A segunda grande crise é a que estão enfrentando nos países de onde eles saem. Não podemos nos esquecer que, a princípio, são violações aos direitos humanos – falta de um governo decente, guerra, pobreza, desigualdade, corrupção –, os grandes motivadores desse êxodo.

A União Europeia tem de ser eficaz de duas maneiras: lançando mão de responsabilidades internacionais, na forma de leis, para proteger as pessoas que chegam às suas fronteiras, e fornecer ajuda humanitária, de desenvolvimento e perspectivas para as pessoas antes de elas partirem.

Pierre Terdjman/The New York Times Pierre Terdjman/The New York Times

Roger Cohen: Como isso se aplica à Síria, por exemplo, um país que foi destruído? Ali, a própria ideia da violação de direitos humanos parece quase pitoresca. O que a União Europeia pode fazer para interromper o fluxo de gente desesperada saindo de lá e de outras nações em situação semelhante?

Stavros Lambrinidis: Além de nos esforçarmos para encontrar uma solução diplomática pacífica, estamos dando apoio com milhões de euros a estruturas dentro da Síria – de governo, educação, fornecimento de água –, tudo o que impeça o país de entrar em colapso, de modo que quando estiver pronto para a reconstrução política, terá infraestrutura para tal. Acontece que isso não tem glamour.

Roger Cohen: Não, não tem.

Stavros Lambrinidis: Estamos tentando provar aos milhões de sírios desalojados que, apesar de todo o sofrimento, não estão sozinhos nessa crise. Estamos fazendo de tudo para garantir que quando tudo isso acabar, eles tenham base suficiente para poder reconstruir o país sem ter de depender da caridade de terceiros.

Roger Cohen: Mario Monti, há momentos em que as sociedades ocidentais têm de simplesmente fechar suas portas? As pressões são muito grandes, os movimentos de direita estão ficando cada vez mais barulhentos e o povo parece não estar preparado para aceitar o aumento repentino de estrangeiros entrando na sociedade.

Mario Monti: Se você visitar o museu da imigração de Ellis Island, acaba vendo uma relação, em termos de longo prazo, muito positiva entre imigração e a diversidade, a vibração e o crescimento de um país. Não há dúvida quanto a isso.

Roger Cohen: Então por que essa ideia não pega mais?

Mario Monti: Por causa da evolução de nossas democracias. Talvez a rejeição que muita gente tem aos imigrantes e refugiados tenha ganhado um destaque excessivo. Ela se espalha e conquista a maioria da opinião pública devido à natureza imediatista do discurso político. A política atual nas sociedades democráticas tem de ser conduzida na base dos 140 caracteres de um tuíte ou no trecho de dez segundos de um debate político na TV. Isso cria uma seleção adversa de qualidade, integridade e erudição dos argumentos.

Deixamos nas mãos de determinados países a responsabilidade de lidar, em longo prazo, com a economia, a sociedade, só que eles não mostram uma preferência definitiva pela democracia. Podemos ter o sistema político de governo mais forte e mais íntegro, mas acabamos dilapidando-o com uma competição política mais acirrada e mais superficial.

The New York Times The New York Times

Da esquerda para a direita, Cohen, Lambrinidis, Monti e Papademos

Roger Cohen: Você quer dizer então que, por causa dessas pressões, a solução é dizer "não" de vez em quando?

Mario Monti: A União Europeia tem d voltar a ser forte o suficiente para dominar essas reações. Num ambiente regulamentado não se pode pertencer a um sistema aberto e decidir, de uma hora para a outra, fechá-lo. Nesse caso, a retaliação seria ainda pior.

Roger Cohen: Sr. Papademos, qual a sua solução para essa questão?

Lucas Papademos: No geral e por princípio, não devemos fechar as portas aos necessitados e perseguidos, ou seja, os dois tipos de imigrantes com que estamos lidando, por motivos humanitários, democráticos, econômicos e legais. Ao mesmo tempo, não acho que seja realista, nem apropriado, manter as portas escancaradas.

Temos de evitar a repetição dos horrores da Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, a tragédia dos inocentes morrendo na Síria e no Mediterrâneo para chegar à nossa costa. Há também obrigações legais que estão sendo esquecidas: a Convenção de Refugiados de 1951, adotada logo após a Segunda Guerra Mundial e corroborada por 145 países, exige que as nações aceitem refugiados e pessoa sem busca de asilo, mesmo que cheguem ali ilegalmente.

A terceira razão por que as portas devem se manter abertas são os benefícios econômicos. Acho que subestimamos a imigração como fator gerador de longo prazo, particularmente relevantes para o continente. Pode reforçar o crescimento econômico graças ao aumento da mão de obra, principalmente em países cuja população está envelhecendo e enfrenta sérios problemas demográficos. Pode também, pelo fato de a maioria dos estrangeiros ser jovem e em idade de trabalhar, servir de respaldo para as finanças públicas e o sistema de seguridade social. Porém, é claro que, em curto prazo, pode haver efeitos adversos.

Por fim, um detalhe que pode ser estranho para muitos de vocês: a imigração pode desempenhar um papel decisivo na inovação e no empreendedorismo. Vi algumas estatísticas recentes que mostram que, na Califórnia, 44 por cento das novas start-ups com valores de pelo menos US$1 bilhão estão associadas a empresas estabelecidas por pessoas não nascidas nos EUA.

Roger Cohen: Muito bem falar de benefícios econômicos de longo prazo, mas o problema é quando acontece algo como em Paris e Nice, ou um ataque com machado como no trem na Alemanha, as pessoas se concentram nessas coisas, pois elas causam pânico. Stavros, em discurso nos EUA, você criticou o país por estar muito preocupado em achar que todo imigrante praticamente pode ser terrorista. Como superar esse medo que agora tomou conta das sociedades ocidentais?

Stavros Lambrinidis: Há duas maneiras de se fazer isso: uma, especialmente nas sociedades baseadas na razão, é pelo menos tentando usar um argumento razoável e falar abertamente sobre os fatos. Quando eu disse isso, nos EUA estávamos discutindo se o país deveria aceitar refugiados sírios. O argumento usado por aqueles que são contra é o do terror. De fato, os EUA aceitaram milhares de refugiados nos últimos anos e descobriu entre eles apenas três que têm potencial de ser ameaça à segurança.

Digo a vocês que o mundo tem de começar a pensar em segurança, como fez com o desenvolvimento há alguns anos, e na palavra mágica: sustentabilidade. Dá realmente para ter uma segurança sustentável se prender milhares de egípcios sem provas de que são terroristas, simplesmente porque acreditam numa religião, num movimento? Você vai radicalizá-los quando saírem da cadeia. Está sabotando o próprio sistema judiciário que, em longo prazo, precisa que seja bem-sucedido e estável. A segurança sustentável, assim como o desenvolvimento, tem de se tornar o novo paradigma da União Europeia.

Josh Haner/The New York Times Josh Haner/The New York Times

Roger Cohen: Mario, o que você diria se a chanceler Angela Merkel fosse vê-lo em Roma e falasse: “Agi bem, aceitei um milhão de refugiados; sem isso, a União Europeia teria rachado ainda mais rapidamente. Acho que vou perder as próximas eleições porque a opinião popular está se levantando contra mim. Fiz a coisa errada?”

Mario Monti: Eu diria a ela: “Angela, veja o seu antecessor, Helmut Kohl; hoje ele é lembrado na história europeia como o homem que instaurou o euro na Alemanha. Superou o obstáculo mais difícil, ou seja, a rejeição mental e psicológica do cidadão alemão comum à nova moeda, que suplantaria o adorado marco alemão. Ao fazer isso, perdeu as eleições de 1998 para Gerhard Schröder que, na época, fez campanha contra a nova moeda."

"Você está mais interessada em fazer mais um governo, o que só adiaria o momento da separação entre você e o poder, ou preferiria entrar para a história europeia e alemã sendo respeitada e com moral alto?".

Roger Cohen: Vimos os britânicos, em resolução extraordinária, votarem a favor da saída da UE. Lucas, até que ponto você teme a dissolução da União Europeia por causa da pressão da imigração em massa?

Lucas Papademos: Estou bastante preocupado porque, no momento, a UE enfrenta várias crises simultâneas, sendo que uma delas ainda se refere à fraqueza econômica. Mas a crise da imigração também é resultados de uma grande divisão entre os países – norte e sul, ocidente e oriente. O fluxo parece ter sido contido de forma razoável, mas se o pacto com a Turquia não for obedecido, se as guerras continuarem ou se o êxodo tiver novos picos, acho que isso tudo pode influir decisivamente como ameaça à coesão da Europa e ao seu futuro.

É muito importante lidar com as preocupações econômicas imediatas do povo – ou seja, o alto nível de desemprego e da desigualdade dentro dos países – e cuidar para que elas não ofusquem os benefícios de longo prazo da imigração.

Para que a política de refugiados seja efetiva, é importante que não só haja uma estratégia eficiente, como também que o fardo seja bem dividido, de modo que Itália e Grécia, que recebem um número muito maior de refugiados e imigrantes por causa da proximidade geográfica, não arquem com as consequências sozinhos. Você acha que há chances, principalmente depois do Brexit, de que a União Europeia, mais particularmente a zona do euro, se dissolva? Eu diria que, embora a probabilidade seja alta, é pouco provável.

Stavros Lambrinidis: Se a Europa pode entrar em colapso por causa de imigração? Minha resposta é um "não" enfático. Fiquei surpreso porque uma das primeiras coisas que os defensores do Brexit repudiaram após o resultado do referendo foi que, de alguma forma, o fluxo de imigrantes no Reino Unido mudaria de forma drástica.

A Europa enfrenta uma crise, sim, mas não de políticas específicas, e sim de valores. Inúmeros economistas de todas as partes do mundo analisaram o euro e disseram que era economicamente inviável, que não podia dar certo – e, no entanto, apesar das sérias crises, continua sendo uma das moedas mais fortes do mundo. Por quê? Porque foi criado como política, com uma base sólida de valores.

Essa ideia de que a Europa era uma união solitária e o fato de acharmos que pertencendo a ela teríamos nossos benefícios nacionais multiplicados fez com que as políticas, inclusive até as que eram consideradas instáveis, perfeitamente capazes de vingar. Por outro lado, quando se pensa na imigração e na política sóbria que define a questão, você imagina que alocar dois milhões de pessoas entre os 28 Estados membros seria coisa fácil.

Roger Cohen: Quando há mais de dois milhões de refugiados na Turquia e eles já representam 20% da população do Líbano.

Stavros Lambrinidis: Não está criando raízes com facilidade. Eu digo que isso é porque hoje temos valores instáveis. A imigração é uma questão global, não europeia, e foi por isso que a discuti quando estive nos EUA. Se você tem que combater a guerra e as violações aos direitos humanos, tem de fazer isso em nível global.

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