O difícil caminho para a paz

Os colombianos rejeitam um acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia

Ingrid Betancourt
Presidência da Colômbia via The New York Times

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

"Tenho de acreditar que estamos trazendo para a negociação algo muito maior que nossa própria dor: a garantia de que nossos filhos não sofrerão o que nós sofremos."

Para grande parte dos colombianos, a guerra civil que castiga a nossa nação há 50 anos é um conceito abstrato. A luta acontece em áreas remotas do interior, enquanto 75% da população vivem em áreas urbanas. A percepção geral é a de que enquanto você estiver nos limites da cidade, não estará sujeito à violência das guerrilhas. O perigo e a insegurança por que a maioria já passou vêm do crime organizado urbano e não de combatentes armados e uniformizados.

Entre 1999 e 2008, Venezuela, Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Paraguai elegeram presidentes de esquerda ou centro-esquerda, em uma sequência de eventos conhecida como "Maré Rosa". Durante esse período, em 2002, disputei a presidência, em uma chapa de centro-esquerda, para combater a corrupção e a injustiça social –e enquanto fazia campanha em uma zona declarada segura pelo Exército, fui sequestrada pelas guerrilhas marxistas da nação, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, ou Farc.

A abdução era uma indústria para os rebeldes e eu representava tudo o que eles odiavam: era política e eles acreditavam que todo político é corrupto; meu nome estava ligado à oligarquia, eu era educada e falava várias línguas, isto é, era alguém que devia ser temida e subjugada. Era cidadã com cidadania dupla (colombiana e francesa), ou seja, achavam que eu servia a interesses estrangeiros –e era mulher, portanto manipuladora e difícil. Então me mantiveram em cativeiro durante 6,5 anos.

Além de nos arrancarem de nossa vida normal e nos manterem na selva, o objetivo dos guerrilheiros era impor a mim e aos outros reféns todo tipo de privação para nos enfraquecer. E nos submeteram a todo tipo de abuso, incluindo violência brutal, dor extrema, humilhação e outras formas de tortura psicológica, usando sua ideologia para justificar seu comportamento.

Rodrigo Agangua/AFP Rodrigo Agangua/AFP

A minha luta durante aqueles 6,5 anos foi para sobreviver. Não desenvolvi a síndrome de Estocolmo: a forma como me trataram foi tão brusca que não podia esquecer que era a inimiga. Tentei escapar muitas vezes e, se ainda estivesse presa naquela selva hoje, continuaria a tramar uma possível fuga.

Durante meus anos de cativeiro, o cenário político colombiano mudou radicalmente em relação àquele que eu conhecera. A nação deu uma guinada para acompanhar a ascensão esquerdista que surgia na região e elegeu um líder conservador determinado a declarar guerra e erradicar a subversão comunista.

Quando fui libertada, em 2008, e apesar das inegáveis conquistas militares do governo, o país ainda era castigado pela presença das Farf e seu comércio de drogas traiçoeiro. Voltei para minha família e comecei o longo processo de reconstrução da minha vida.

Oito anos depois, enquanto a Cuba comunista normalizava as relações diplomáticas com os EUA, as Farc –grupo guerrilheiro esquerdista mais antigo do continente– pareciam estar finalmente começando a abaixar as armas e cortar os laços com o comércio das drogas. Em agosto de 2016, chegaram a um acordo de paz com o governo, após negociações longas e cuidadosas. Por mais chocante que seja, porém, o povo colombiano rejeitou o referendo sobre o trato algumas semanas depois.

Como explicar esse resultado? Será porque o ser humano, por natureza, tem a tendência a proteger sua identidade na base do ódio a outros grupos? Não quero acreditar nisso. Temos que ser melhores. Quando o presidente Juan Manuel Santos, que foi quem liderou as negociações, levou o Prêmio Nobel da Paz, a comunidade internacional sinalizava aos colombianos sua responsabilidade em estabelecer a paz.

Rios Escobar / The New York Times Rios Escobar / The New York Times

Foi também um recado para as Farc, que precisavam mostrar arrependimento real para provar aos colombianos a autenticidade de seu comprometimento com o acordo. Como não são Nelson Mandela, em setembro, o país queria ver seus membros na cadeia, e não no governo. A guerrilha já afirmara que não aceitaria nem um dia na prisão, embora tenha pedido perdão para alguns casos específicos de sequestro e assassinato, mencionando o fato em termos gerais quando seu líder, Rodrigo Londoño, se sentou com Santos para assinar o acordo de paz, em Cartagena, dias antes do referendo.

Os colombianos acharam que já era muito tarde para muito pouco –e depois que a consulta popular não deu certo, sua liderança teve que arcar com as consequências mais pesadas. Assim, um novo acordo, mais rígido, foi fechado em novembro entre Santos e o alto escalão da guerrilha.

O recado do Comitê do Nobel também atinge o movimento "Não", do qual faz parte do ex-presidente Álvaro Uribe, que não pode mais simplesmente ignorar qualquer acordo de paz. Se o referendo tivesse sido aprovado, teria sido por uma margem muito pequena, consequentemente dividindo o país ao meio, muito parecido com o que aconteceu com o Brexit, no Reino Unido, mas com o agravante de reacender a violência.

Diana Sanchez/AFP Diana Sanchez/AFP

Ao contrário do Brexit, porém, o referendo colombiano não teve um resultado definitivo: ao recusar um acordo específico, a população abriu a possibilidade para uma nova transação. Assim, Santos transformou a rejeição em uma nova oportunidade de unir o país, forçando os oponentes mais fortes do acordo a voltar à mesa de negociações. Ninguém mais ousa admitir a preferência pela guerra. Entretanto, ao abrir a caixa de Pandora, a oposição ganhou tempo. E é muito provável que as eleições presidenciais de 2018 definam o verdadeiro resultado de qualquer chance de paz com as Farc, mesmo que o acordo de novembro seja finalmente aprovado pelo Congresso.

Por isso, os colombianos têm que se unir para encontrar uma maneira de chegar à paz. Nossa esperança tem que ser depositada não em um resultado político de curto prazo, mas no sucesso de um processo de longo prazo que está só começando. Temos que evoluir para nos tornarmos um povo preparado para viver em uma sociedade pacífica.

Qualquer acordo que for assinado entre Santos e as Farc será a base sobre a qual os colombianos poderão construir algo novo. Nesse processo, não podemos nos esquecer das lições que o passado deixou. Os colombianos têm um longo histórico de manobras secretas, com forças escusas internas sabotando acordos de paz. Nas tentativas anteriores de entendimento, o genocídio seletivo contra os líderes da oposição arruinou qualquer chance de sucesso.

Conforme seguimos em frente juntos, precisamos reconhecer que cada um de nós tem origens diferentes. Há uma diferença geracional que mostra que os colombianos mais jovens estão determinados a se libertar do ódio dos antepassados. A diferença é regional também: quem é do interior votou a favor do referendo; quem mora na cidade, foi contra.

Edel Rodriguez/NYT Edel Rodriguez/NYT

Construir a paz significa encontrar o equilíbrio entre as várias exigências. O novo acordo precisa refletir as preocupações daqueles que têm se mostrado céticos e votaram contra o referendo sem se render ao veto daqueles que podem se beneficiar da guerra.

E também envolve escolhas difíceis por parte das vítimas, que tem que esquecer qualquer traço de vingança e assumir a opção da reconciliação como meio para um futuro melhor. Eu vivi a guerra de perto; sei exatamente o quanto é difícil. E também fiquei tentada a pensar somente na minha dor e manter aceso o ódio contra meus captores pela angústia que infligiram aos meus filhos, que cresceram sem a mãe; pela morte do meu pai, de enfarte, ao saber da minha captura; pelas lembranças dolorosas gravadas na minha mente e que ainda assombram o meu dia a dia. Mas tenho que acreditar que estamos levando para a mesa de negociações algo maior que nossa dor individual: a garantia de que nossos filhos não vão passar pelo que passamos.

Quando conseguirmos, o fim dessa batalha de meio século representará uma luz no caminho de outras nações destruídas pela guerra, como Iraque, Síria e Israel –mas enquanto estivermos mergulhados em nosso ressentimento e rancor, continuaremos presos.

Barker Evans Barker Evans

Ingrid Betancourt é política colombiana e ativista dos direitos humanos e anticorrupção. É autora de "Não há silêncio que não termine: meus anos de cativeiro na selva colombiana". Recebeu inúmeros prêmios internacionais, incluindo a Légion d’Honneur (Legião de Honra) francesa e o Prêmio da Fundação Princesa de Astúrias, em 2008.

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