Lembrança de você

Cicatriz da cesárea causa sofrimento às mulheres e esse problema precisa parar de ser tratado como mimimi

Thais Carvalho Diniz Do UOL, em São Paulo

O momento do parto é inesquecível. Para algumas mães, no entanto, além do lugar especial na memória, o nascimento de um filho fica registrado na pele - em forma de cicatriz. E o que deveria representar uma jornada vitoriosa, muitas vezes se torna o símbolo da rejeição ao corpo pós-cesárea ou da frustração por não ter conseguido um parto normal.

Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, entre os procedimentos reparadores, os relativos à cicatriz representam 5%. Nos consultórios dos dermatologistas, a queixa chega a 30% das pacientes. O desabafo sobre insatisfação com o corte no abdome vem à tona durante consultas para corrigir as estrias e a flacidez dos seios, comuns após uma gravidez.

Da vergonha ao orgulho, quatro mulheres falam aqui sobre a relação com a cicatriz. E provam que o mais físico dos sinais da maternidade envolve questões dolorosas, que vão além da preocupação estética, como muitas vezes é julgado.

Mães falam sobre aceitação, beleza e sexualidade

Preocupação com o corpo é uma angústia solitária no pós-parto

Toda mulher que acabou de ter um filho sabe que não reencontrará a silhueta de antes da gravidez. Mas lidar na prática com seios inchados, ventre alto e perda de tônus muscular é ver no espelho um novo corpo. Ele já não abriga mais um bebê e, por isso, causa estranheza.

No caso das mães que passam pela cesárea, há também a cicatriz. A obstetra Carolina Maia diz que a marca pode incomodar ainda mais quando a forma como aconteceu o parto passou longe daquela idealizada. "As pacientes que têm uma cesárea diante de um problema de saúde, mas com uma conversa sincera com o médico, dificilmente sofrerão esse problema de aceitação. Mas nem sempre é assim", explica. "Muitas passam meses se preparando um parto normal. E aí, quando não conseguem, a cicatriz psicológica é mais profunda que aquela que se vê na superfície".

O que torna o cenário cruel para a mulher, em pleno conflito de sentimentos no puerpério, é ver a questão ser tratada como futilidade. É o que explica a psicanalista Anna Mehoudar, do Gamp 21 (Grupo de Apoio à Maternidade e Paternidade).

Há uma ideia de que a maternidade traz plenitude. A mulher pode estar feliz com o bebê, mas tem o direito de sentir que não está tudo bem com ela

A psicanalista diz ainda que ter um filho é uma mudança drástica e que é preciso tempo para se "ressignificar" e entender-se como mãe e mulher. "Estar diante de um corpo que nunca se teve, que se transformou para a gravidez e mudou de novo com o parto, não é fácil. Muitas vezes, cabe o choro e o silêncio".

Bruna Sanches/UOL
Bruna Sanches/UOL Bruna Sanches/UOL

"Há quatro anos não uso biquíni por vergonha da cicatriz"

Quase quatro anos depois de ter os gêmeos Arthur e Heitor, a produtora de moda Jey Lima, 25, ainda sofre com seu corpo. Ela voltou ao peso de antes da gravidez, mas a gordura localizada, as estrias e, principalmente, a cicatriz, lhe põem para baixo e já prejudicaram até a vida sexual.

Jey credita à inabilidade dos médicos que lhe atenderam na rede pública a marca extensa, que 15 centímetros, que o corte do bisturi deixou. Também ficaram aparentes os pontos da incisão. "Não me sentia confortável quando ficava nua com meu marido e deixei de usar biquíni na praia".

Ela diz que o parceiro e pai das crianças, sempre a apoiou, dizendo que "é linda de qualquer jeito". Isso faz bem, mas o incômodo não passa. "Tenho vergonha das pessoas que me conheciam antes da gravidez. Acho que elas podem ficar comparando como era meu corpo antes e como é agora". Jey não descarta uma cirurgia plástica.

Bruna Sanches/UOL
Bruna Sanches/UOL Bruna Sanches/UOL

"Comecei a aceitar melhor a marca depois da terapia"

A educadora Maria Clara Pitol, 31, sonhava com um parto natural e se preparou com exercícios para fortalecer o períneo, além de ler muito a respeito e frequentar rodas sobre o assunto. Mas quando entrou 42ª semana de gestação de Maya, 4, acordou com os olhos e unhas amarelados: o bebê estava comprimindo seu fígado.

Maria Clara passou por uma cesárea emergencial e, duas horas depois, estava com a filha nos braços. "A médica me explicou que estava tudo certo nos exames, mas não bancaria o trabalho de parto", conta. "Não acho que sofri uma violência obstétrica, mas tudo aconteceu de forma acelerada, no susto".

O que se seguiu depois foi um processo de cicatrização torturante. Depois de tirar os pontos e seguir as recomendações médicas à risca, a cicatriz continuava grossa, alta e vermelha. "Passei dois anos de dermatologista em dermatologista para amenizar a marca e nada... Para piorar tudo, as pessoas me julgavam. 'Ela deveria estar feliz com o filho, não se preocupando com a marca que ficou'".

Foi na acupuntura e na terapia que ela descobriu que o problema não era apenas orgânico. "Vinha da alma. No fundo, eu não me perdoava por não ter tido o parto que eu desejava". Desenvolver essa consciência, segundo Maria Clara, ajudou no processo de cicatrização. "Meu incômodo nunca foi estético. Mas o lugar que essa marca ocupava na minha vida: o da frustração pelo parto que não tive".

Divulgação
Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

"Todo guerreiro tem sinais de batalha. Eu tenho os meus"

A jornalista Carla Costa, 31, descobriu que portava uma doença autoimune no intestino, a retocolite ulcerativa inflamatória, em 2013. Um ano depois, antes que a doença começasse se manifestar, ela engravidou. A gestação foi difícil e, desde o início, a cesárea se mostrou como única opção para que sua filha, Nina, nascesse em segurança.

Carla tem outras quatro cicatrizes, que se confundem à do parto, na região do abdome. É que 11 meses após dar a luz, a jornalista passou por uma operação para retirar o intestino grosso. Aqui, ela fala sobre o que essas marcas representam agora. 

"Tomo remédios pesados para controlar a doença e, por isso, não pude amamentar a Nina. Foi doído ver meu peito jorrando leite e não poder alimentá-la...

Minha filha não tinha nem um ano quando precisei ser operada. Foram 20 de UTI e 4 cicatrizes na barriga. Fiquei de cara para morte, mas disse: 'não vou!'. E voltei para casa poucos dias antes do primeiro aniversário dela. Organizei sua festinha no leito do hospital.

A doença agora se instalou no reto e sei que, em algum momento, terei que colocar a bolsa de colostomia. Será mais uma cirurgia. Tenho limitações, não posso ficar em locais fechados, nem com muita gente por causa da minha baixa imunidade. Mas sempre consegui cuidar da Nina sozinha. Somos apegadas.

Tenho orgulho das minhas cicatrizes. Elas representam a vida: a da minha filha e a minha. Não faço nada para escondê-las e amo muito mais meu corpo depois delas. O irônico é que antes de tudo isso, eu tinha um pouco de vergonha. Sempre achando que precisava perder uns quilinhos..."

"Sou doula, milito pelo parto humanizado e tive uma cesárea"

Juliana Paixão, 29, é doula e ativista do parto humanizado. Quando engravidou de Theodoro, 1 ano e 4 meses, se cercou de equipe e aparatos necessários para ter o filho em casa. Porém, quando estava com 36 semanas, o bebê sentou no útero - e o parto natural começou a se mostrar um projeto arriscado.

"Foi muito difícil entender que teria que abrir mão de algo pelo qual sempre batalhei. Eu queria ter sentido as dores, ter meu filho da forma que acreditava ser a certa para toda mulher", explica a doula.

Com 41 semanas, Juliana entrou em trabalho de parto. O útero estava baixo e o bebê tinha 51 centímetros e 4 quilos. Ela já esperava que um parto pélvico para Theodoro resultaria em uma incisão maior que a média.

Juliana carrega uma cicatriz de 20 centímetros. Ironicamente, foi a marca extensa que a ajudou a superar a frustração de não ter tido o parto com o qual sonhava. "Eu pensava: 'caraca, tive um filho muito grande!' e isso me enchia de orgulho", diz. "O tamanho da cicatriz é a prova de que sustentei uma criança grande, que nasceu saudável. É a minha medalha".

Bruna Sanches/UOL

Curtiu? Compartilhe.

Topo