Pode isso?

Pode! Não se depilar, assumir o cabelo branco, raspar a cabeça e até não ter seio. A escolha agora é da mulher

Daniela Carasco Da Universa

Por que os pelos femininos causam tanta repulsa? Se homens grisalhos são considerados charmosos, por que nelas os fios brancos são julgados como desleixo? E por que a opção de uma mulher por não reconstruir as mamas pós-mastectomia causa choque?

Em tempos de luta pela igualdade de gêneros, condutas estéticas que sempre foram obrigatórias agora passam por uma revisão geral. Mulheres que exibem, sem pudor, axilas e pernas peludas, assumem o grisalho e se sentem sensuais, mesmo de cabeça raspada ou sem os seios, são protagonistas do movimento que questiona o que é, afinal, feminino.

"Adotar características naturalizadas como 'coisa de homem' é provocador. Elas são minoria, mas estão promovendo a revolução", diz a antropóloga Mirian Goldenberg. Por desafiar padrões tão rígidos, elas sofrem bullying e cobrança social - inclusive de outras mulheres.

Aqui, Luiza, Marília, Daniela e Sirlene contam por que vale a pena pagar esse preço em nome da liberdade de escolha.

"Evito levantar os braços no ônibus. Me olham com nojo"

Foi aos 11 anos que a carioca Luiza Junqueira, 25, raspou os pelos pela primeira vez. "Fiquei horrorizada ao ver uns garotos zombando de uma menina que tinha pernas peludas. Virei refém da gilete", conta. A decisão de abandonar a depilação é recente.

"Há dois anos, ouvi meu pai dizer que 'mulher peluda é nojenta'. Achei tão machista!", lembra. "Parei de raspar as axilas, as pernas e a virilha. Foi para fazer ele refletir mesmo". A decisão gerou não só mal-estar familiar, mas também nas ruas. Olhares tortos e xingamentos passaram a fazer parte da rotina de Luiza.

"No ônibus era só levantar os braços para me olharem com nojo. Uns caras me jogaram papel amassado uma vez", diz. "No começo, eu fazia questão de colocar regata, que era para exibir meus pelos na cara dos outros mesmo."

Hoje, Luiza reserva o ativismo estético para as redes. Em seu canal no YouTube, o "Tá Querida!", um vídeo sobre o tema soma mais de 800 mil acessos. "Os haters me xingam de 'porca' e de 'gorda nojenta'. Não me ofendem."

Dizem que meu namorado é 'guerreiro por transar com uma peluda'. Não tenho nojo dos pelos dele, por que ele deveria ter dos meus? Também falam que mulher com pelo cheira mal. É machismo! Quem disse que somos obrigadas a exalar aroma floral o tempo todo? Corpo tem cheiro de corpo.

Luiza Junqueira, youtuber

No passado, mulher peluda despertava fantasias sexuais

Pelos sempre foram vistos como atributos da virilidade masculina. Mas você sabia que os fiozinhos femininos também já foram considerados sensuais? No século XIX, as mulheres eram obrigadas a vestir blusas com manga para evitar devaneios eróticos dos homens.

"A axila peluda era imediatamente associada à vagina", explica a pesquisadora Mary Del Priore, autora do livro "Histórias íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil". "Até os anos 1920, as mangas longas predominavam no vestuário feminino."

A prática de raspar os pelos se popularizou nos anos 80, mesmo depois de as feministas abrirem mão dela nos anos 60, como forma de resistência. Mas aí o objetivo já era outro, como explica a historiadora:

Eliminar os pelos prova essa obsessão pela juventude. Só as garotinhas têm a região íntima lisa

"Escondia meu cabelo branco para agradar aos outros"

A chegada dos primeiros fios de cabelo branco da paulista Daniela De Bonis foi precoce, aos 23. Aos 30, o volume grisalho aumentou e a cada 15 dias ela ia ao cabeleireiro tingi-los. "Eu era uma jovem angustiada em parecer jovem", conta. "Ficava preocupada em esconder o grisalho, para não me acharem descuidada."

A gravidez, aos 36, motivou a administradora de empresa a assumir o grisalho de vez. "O obstetra me desaconselhou a usar química na gestação, poderia fazer mal ao bebê."

Deixar o cabelo crescer ao natural demorou um ano e foi um processo "terrível", como diz Daniela. Não faltaram comentários indelicados disfarçados de preocupação. "Amigas diziam que, mais cedo ou mais tarde, eu me arrependeria e acabaria tingindo."

No trabalho, sofri quando me apelidaram de 'Tempestade', a mutante do X-Men

Para reunir forças, ela criou um grupo no Facebook, o "Grisalhas Assumidas e em Transição", que conta com mais de 30 mil interessadas. "Eu me sentia sozinha. Agora sou livre de uma obrigação que não me agradava. Não me acho velha quando me olho no espelho, mas confiante na mulher que sou."

Envelhecer não é socialmente aceito no Brasil. A juventude é tratada como se fosse um capital de grande valor. Mas portas estão se abrindo para a libertação desses padrões. Mulheres grisalhas, ainda que sem intenção, contestam a teoria popular de que 'a brasileira não fica velha, fica loira'.

Mirian Goldenberg, antropóloga e autora do livro "A bela velhice"

"Perdi um seio, mas redescobri minha sexualidade"

Um exame de rotina, há três anos, virou de ponta cabeça a vida da psicóloga curitibana Sirlene Costa, 57. No resultado da ultrassonografia, o diagnóstico inesperado: câncer de mama. Consciente da luta que estava por vir, ela decidiu raspar os cabelos antes da quimioterapia. "Olhei no espelho e falei para o tumor: você não vai me matar, eu vou te vencer", recorda.

Foram seis meses de tratamento contra a doença, antes da decisão médica pela mastectomia. Depois de ter tirado a mama esquerda e os gânglios do braço, Sirlene passou por mais 26 sessões de radioterapia. Curada, iniciou o processo de reconstrução da mama - uma das partes mais difíceis do processo.

Meu corpo rejeitou a prótese de silicone. Foi a primeira vez que chorei durante o câncer

"Sempre fui vaidosa, explorava os decotes e cheguei a fazer redução de mamas por estética", revela. "Os médicos me incentivaram a tentar colocar outra prótese"

Sirlene teve que se conformar que não seria possível reconstruir a mama. Procurou ajuda na AAMA (Associação das Amigas da Mama) e decidiu fazer uma tatuagem de flores na região da cicatriz. Um jeito de resgatar a autoestima.

Nos primeiros meses pós-mastectomia, Sirlene evitava que o marido a visse nua. Mas o casamento de 25 anos resistiu graças à autoestima reconquistada gradualmente. Para ela, refazer a sexualidade tem a ver com construir um novo modelo mental. "O seio que perdi não me faz falta."

Tive que aprender a me amar novamente. Quando consegui, minha libido disparou

No trabalho, para não chocar, nem desviar atenção para sua aparência, prefere usar sutiãs com prótese. No entanto, ao contrário da maioria das mulheres que se sentem julgadas pela estética, a psicóloga se sente admirada. "O fato de ter superado o câncer ajuda com que eu receba um olhar mais contemplativo."

Ser mulher, para ela, é um conjunto de fatores. "Não são meus seios que me fazem feminina. É o fato de eu ser uma mulher segura, forte, madura, intelectual e única."

"Dizem que pareço um homenzinho, mas me acho sexy"

O desejo de radicalizar o visual veio junto com a mudança interior para a gerente paraense Marília Fialka, 25. Recém-formada, realizada profissionalmente, feliz no casamento e cada vez mais engajada com as causas feministas, ela decidiu que sua aparência deveria refletir essa a fase. "Meu cabelão até a cintura destoava da mulher que eu havia me tornado", diz.

O primeiro passo foi adotar o corte "joãozinho". Seis meses depois, em abril deste ano, encarou a máquina 4. "Na hora que a cabeleireira raspou a frente, vi cada uma das minhas amarras indo embora. A sensação de liberdade sobressaía."

Chorei quando me vi careca. Mas não de arrependimento. Me senti mais mulher, mais forte

Marília passou um dia inteiro se olhando no espelho depois da mudança. A etapa seguinte era enfrentar o marido, a família e o mundo.

"Assim que me viu, meu marido disse que eu estava linda. Nas ruas, virei o centro das atenções", diz ela. "Os homens me descrevem como poderosa. Já as mulheres se sentem provocadas. Cabelo ainda é visto como um símbolo de sensualidade. Se livrar deles é corajoso."

Quanto as brasileiras gastam para estar dentro dos padrões

  • Depilação

    O Brasil é o segundo mercado consumidor de produtos depilatórios do mundo. Foram R$ 952 milhões em 2016, segundo o Euromonitor.

  • Cabelos

    R$ 4,5 milhões é o quanto as brasileiras gastaram com tintura em 2016, segundo o SPC Brasil. Depois de xampu e do condicionador, coloração é a categoria mais consumida.

  • Cirurgia plástica

    Em 2015, foram 1,2 milhão de procedimentos - 86% deles, em mulheres. Implantes de silicone registrados: 158.950, diz a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética.

Precisamos deixar claro que o feminismo defende o poder de escolha da mulher. O movimento não quer impor mais normas de comportamento e estética. Só que a imagem feminina estereotipada, da mulher depilada, com cabelão e seios exibidos no decote, oprime muitas de nós. Chega de obrigações. Uma mulher pode ser bonita estando ou não dentro dos padrões

Eloisa Samy, advogada e feminista

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