Mulher indigesta

Fernanda Young foi julgada por sua obra, corpo e reputação. Mas se nega a ser ré e obriga o mundo a engoli-la

Natacha Cortêz Do UOL
Lucas Lima/UOL

Fernanda Young é difícil de engolir. E sabe por quê. "Nada mais indigesto para o mundo dominador que a liberdade de uma mulher", diz. Aos 47 anos, depois de muita pedrada e tentativas alheias de botá-la em gavetas, partidos e sarjetas, ela segue escolhendo o que quer ser. Hoje é mãe, escritora e punk irremediável.

Recentemente, processou um hater que a chamou de "vadia lésbica" no Instagram. Saiu vitoriosa - em parte. O juiz reduziu o valor da indenização alegando que sua "reputação é elástica", por ter posado nua e fazendo um gesto obsceno em uma revista. "O excelentíssimo crê que mulheres como eu provocam o caos", ironiza.

Agora, ela prepara um romance autobiográfico com o definitivo título de "O Livro". Grande parte dos capítulos será dedicada a um momento traumático: a quase perda do marido, o roteirista Alexandre Machado, no início deste ano. 

Em uma tarde de conversa com o UOL em seu dúplex em São Paulo, onde vive com a família, dois cachorros e três gatos, Fernanda deu alguns spoilers do novo trabalho. Falou ainda sobre seus "arrependimentos burgueses", como o de ter comprado uma casa em Miami e votado em Aécio Neves, a convivência com a depressão, a dor de ver os filhos caçulas serem alvo de racismo e suas tantas voltas por cima. 

"Na pior fase da minha vida, virei loira. Mostrei que não estava frágil"

Caio Guatelli/Folhapress Caio Guatelli/Folhapress

"Pensam que sou uma assistente do meu marido. É machismo puro!"

Fernanda e Alexandre estão juntos há 24 anos. A parceria rendeu 15 séries televisivas, incluindo "Os Normais", comédia que modernizou a linguagem dramatúrgica da Globo no início dos anos 2000, além de "Separação?!" (2010) e "Como Aproveitar o Fim do Mundo" (2012), indicadas ao prêmio Emmy Internacional. 

"Sou uma autora contratada da Globo e tenho obrigações. Uma delas é fazer sucesso", explica. "Há erro e acerto. Essa moeda do sucesso é volátil".

A escritora sempre foi mais midiática que o marido. É atriz, apresentadora e posou nua duas vezes - para a Playboy, em 2009, e para a Top Magazine, em 2016. A relação quase nula de Alexandre com os holofotes originou comentários de que Fernanda seria apenas a "porta-voz" do casal. Ele, o "cérebro".

Já disseram que sou só uma invenção do Alexandre

Fernanda, mesmo assim, não deixa de destacar a importância do companheiro. "Não sei nada de regra de português. Foi o Alexandre quem me ensinou a pontuar quando eu tinha 16 anos. Nossa parceira é tão antiga quanto nosso encontro".

Apesar de ser "extremamente apaixonado", o casal dorme em quartos separados desde o nascimento de suas filhas gêmeas, em 2000. Para Fernanda, fidelidade "é algo que não existe", o que importa é lealdade. "Tive pouquíssimos namorados e encontros sexuais. Minha 'reputação elástica' é mais sobre o que pensam de mim, do que aquilo que faço".

"Não acredito que se masturbem com minha Playboy. Lendo meus livros, sim"

O motivo do impeachment da Dilma não é nem um pouco razoável. Foi punida por ser mulher. Mas antes disso, foi usada pelo próprio PT. Ela não foi escolhida pelo seu vigor político, mas porque seria bem utilizada nessa máquina toda torta

Fernanda Young

"Votei contrariadíssima em Aécio. Estava claro que era um vexame"

"Não acho a depressão charmosa. Mas ela me deu coisas em troca"

"A depressão é uma lente que distorce as coisas. A grande crueldade dessa doença é que você pensa que deveria morrer, porque é pior viver.

Não desejo a depressão de novo. Nem deixo que ela me domine. Não sou a doença. Depois de enfrentá-la durante toda a adolescência, posso dizer que agora a tenho controlada. Tomo 5 mg de Lexapro por dia e, para mim, é um efeito placebo.

Não acho a depressão charmosa, tive que sobreviver a ela. Mas a doença me deu coisas em troca. O gosto pelos exercícios físicos, por exemplo. A disciplina. Se não fosse a depressão, não teria feito nem 70% do que realizei na vida".

Tenho uma casa em Miami, mas não a suporto. Tenho vergonha, acho cafona e só comprei porque estava baratíssima. Acho muito burguês, do mesmo jeito que acho carro blindado muito burguês. Quando você compra um, é como dizer que saber que está numa guerra

Fernanda Young

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

"Tem umas coisas que não posso beber. Uísque me deixa homicida"

"Fumei por 21 anos e foi a coisa mais estúpida que já fiz. Experimentei tudo o que tinha em minha época e parei no LSD. Hoje, não uso nada.

Deixei de fumar maconha quando me dei conta de que ela fazia parte de um sistema do qual não quero participar. Defendo a descriminalização de todas as drogas. 

Se maconha fosse legalizada, fumaria de novo. Mas fumaria pouco, pois não quero me ausentar da realidade

Minha alegria é comer pizza com ketchup e chope. Cerveja também é muito legal. Aprendi a gostar de vinho rosé, mas não é a verdade absoluta do meu ser etílico. Tem umas coisas que não posso beber. Uísque, por exemplo. Fico homicida".

Greg Salibian/Folhapress Greg Salibian/Folhapress

"Perdi a conta das piadas racistas que meus filhos ouviram"

Fernanda é mãe das gêmeas Estela May e Cecília Madonna, de 17 anos, e de Catarina Lakshimi, 9, e John Gopala, 8, que adotou em 2009. São crianças negras e a escritora sofre ao falar do racismo com que têm de lidar.

Teve uma época em que o John só desenhava menino loiro. Ele não entendia que era negro

Ela diz ter perdido as contas das vezes em que os filhos vieram se queixar das agressões que sofreram. "Me falam das piadas que fazem com o cabelo deles. Infelizmente acontece muito mais do que eu imaginava". 

Empoderar os filhos é a forma que ela encontrou de ensiná-los a enfrentar o preconceito. "Sabe essa coisa de gostar de habitar seu corpo? 'Eu reverencio o Deus que habita em mim'? É isso que tento passar para eles".

Os escritores preferidos de Fernanda são homens. E ela não gosta que seja assim

Literatura feminina

"Outro dia me perguntaram quais eram meus autores preferidos do momento. Percebi que só citei homens. Fiquei incomodada e me questionando depois. Com certeza meus escritores preferidos, em sua maioria, são homens. Mas por que será? Os homens publicam mais e têm mais tempo de liberdade de expressão. Você vai estudar história da arte e não tem como não se perguntar: cadê as mulheres no Renascentismo?"

Fernanda autora

"O que considero bom em meus 12 livros? Nunca me censurei. Uma amiga, que também é escritora, certa vez me falou: 'você consegue algo raro, que é ter formado uma família e ao mesmo tempo ter mantido sua verdade de pensamento protegida'. E é verdade! Pouquíssimas pessoas conseguem manter sonhos românticos sem que isso seja um problema para sua liberdade. 'Como assim essa mulher fala essas coisa e tem filhos?'"

Lucas Lima/UOL

No frigir dos ovos, as pessoas entenderam que não sou perigosa. Sou honesta. Não abro mão da minha ideologia. Moderno é ser eterno

Fernanda Young

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