Mulher de pênis

Travesti é quem não fez cirurgia e trans é quem fez? Não. Amara Moira quer que as pessoas entendam isso

Thais Carvalho Diniz Do UOL, em São Paulo
Carine Wallauer/UOL

Amara Moira, 32, se apresenta como travesti, feminista e escritora. Referência nos debates de gênero, com mais espaço no Brasil a cada dia, é dona de uma voz delicada e uma sensibilidade sem igual para explicar as causas pelas quais luta.

Mesmo quando fala das dores e violências que sofreu para conseguir existir como mulher, "após 29 anos representando um papel imposto pela sociedade", não deixa o otimismo de lado e acredita que a militância de hoje renderá bons frutos.

Trans, protagonistas do debate

Autora do livro "E Se Eu Fosse Puta" e doutoranda em literatura na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Amara vê o dia 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, como um marco histórico. Nessa mesma data, em 2004, o governo reconheceu a existência de transgêneros e travestis como parte da sociedade pela primeira vez.

"Passamos a existir de maneira concreta e oficial. Mesmo que precariamente, porque surgiu de uma campanha do Ministério da Saúde de combate a doenças sexualmente transmissíveis, foi o reconhecimento possível para a época."

Catorze anos se passaram e a situação é outra: pessoas trans protagonizam movimentos sociais e têm papel importante nas artes: Liniker e Linn da Quebrada na música, Laerte na literatura e Renata Carvalho, que se destacou ao fazer Cristo travesti no teatro, por exemplo.

"Estamos ocupando vários lugares na sociedade, mas ainda é muito pouco. Ainda são as exceções que conseguem se fazer ouvir e quebrar os estereótipos que escreveram ao nosso respeito e que orientam a forma como a sociedade nos vê."

 

Na 'Odisseia de Homero', Ulisses sofre a moira (destino) amara (amarga) de ver-se impedido de voltar à terra natal após vencida a Guerra de Troia. Amara Moira, destino amargo, nome mais do que apropriado para uma travesti

Amara Moira

"Pressão por padrões estéticos levam às cirurgias"

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Mulheres de pênis e homens de vagina

Amara é uma mulher de pênis. Sempre teve pavor de cirurgia e preferiu evitar ao máximo. Cogitou colocar prótase nas mamas, mas, quando começou a tomar hormônio e os peitos tomaram forma, atingiram um tamanho que ela considera adequado. 
 
Para ela, manter o genital é tornar legítimas expressões como "mulher de pênis" e "homem de vagina", para que as próximas gerações tenham modelos de corpos trans para se espelhar. 
 
"Há 30 anos, quando só existiam referências de homens cisgênero para o primeiro homem trans a se destacar, João Nery, era natural que ele pensasse a própria existência naquele estereótipo para ser reconhecido e se entender. Hoje, a gente descobre que há outras formas de ser homem e mulher."
 
Entretanto, é preciso se dar conta de que o desejo de transformação é resquício dos padrões ensinados. "Mudamos os nossos corpos para sermos aceitas. Isso não é nenhum crime. Temos que lutar contra essa beleza excludente, mas entendendo de onde vem esse mal-estar."

Quero ser referência para outras trans que precisam encontrar a própria força

Amara Moira

Carine Wallauer/UOL

Mulher trans X travesti

Amara diz que foram as ciências médicas e psíquicas que classificaram a transexualidade como "de verdade" e "de mentira". E que causa a típica confusão: travesti é quem não fez cirurgia? Trans é quem fez? Não e não. 

A escolha é pessoal, um direito individual. Travesti é uma palavra estigmatizada, diz Amara. Logo se imagina uma prostituta. Transexual, porém, surgiu nos consultórios médicos, de alguém que conseguiu o que é tido como "a tão sonhada operação".

Segundo ela, há uma crença de que a travesti não quer operar e, por isso, está bem com o próprio genital, o que não é necessariamente verdade. Ou que todo transgênero quer realizar a cirurgia: outra mentira.

"As implicações são perversas. E é muito invasivo disponibilizar essa informação na palavra com a qual eu me identifico. Parece que eu preciso dizer como eu lido com o meu genital para validar a forma como eu me identifico socialmente."

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O medo de que apenas aqueles que conseguem lugar de destaque receba o devido respeito é uma preocupação permanente de Amara, e tem fundamento: o Brasil ainda lidera o ranking mundial como país que mais mata travestis e transexuais, de acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

A realidade é crítica: a cada 48 horas uma travesti ou mulher trans é assassinada no Brasil. Em 2017, foram 179 mortes espalhadas por todos os estados do país. 

Porém, ocupar espaços na mídia, como o papel de Carol Duarte como um homem trans na novela "A Força do Querer", da TV Globo, pode impulsionar mudanças.

"Com todas as limitações e não chegando nem perto do discurso ideal, a novela permitiu que muitas pessoas começassem um diálogo com suas famílias. Mas precisamos aprofundar essas mudanças e colocá-las em prática."

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Gosto de usar 'travesti' porque é a palavra que menos se espera. E eu espero que essa palavra ocupe mais espaços na sociedade

Amara Moira

Enfim, Amara

Aos 16, Amara se viu bissexual e entendeu que poderia sentir atração por homens --e não só por mulheres, como o que fora imposto. Com as meninas era possível se relacionar à luz do dia. Com os meninos, não.

"Foi muito difícil e algo que só mudou pouco antes do início da transição, quando liguei o foda-se e assumi publicamente meu interesse por ambos."

Pouco tempo depois, conheceu algumas travestis. "Lembro do dia em que uma delas pediu para me maquiar, para ver como eu ficaria de mulher. Tive um surto: "Sou homem!" Preferia não descobrir.

Aos 22, escreveu poemas sob a perspectiva da mulher trans. "Eu me dei conta de que os poemas falavam sobre mim." Desse ponto até os 29, quando pediu para a primeira pessoa a chamar de Amara, chegou a tomar hormônio, mas desistiu.

"Descobri pessoas trans ocupando a sociedade, existindo, e isso me fez acreditar que eu também poderia." 

As pessoas não te criam só para ser heterossexual, mas para ter medo de descobrir que você não é

Amara Moira

"Não gosto quando me colocam como ex-prostituta"

Na rua, com as prostitutas amigas, meu corpo fazia sentido. Era mais do que me sentir desejada novamente. Lá eu podia acreditar que era bela

Amara Moira

Sexo se faz com o corpo

Os hormônios e bloqueadores de testosterona fazem a libido cair e o prazer já não se faz visível fisicamente --em uma ereção, por exemplo. Ejaculação, Amara não tem há muito tempo, pois não produz mais espermatozoides. Mas isso não é um problema. A vida sexual, antes, era quase um suplício.

"Era como se eu saísse do meu corpo durante o sexo. Precisava transar para me afirmar como homem e agradar o outro. Sexo, até a transição, nunca foi algo para minha própria satisfação."

Ela não tem vontade de ter uma vagina nem de usar o pênis durante a relação sexual. Depois da transição, ela se relacionou apenas com homens trans e mulheres. "Os homens [cisgênero] que dão em cima de mim são aqueles que querem ficar comigo sem que ninguém saiba. E eu não tenho mais paciência para isso. Não aceito quem tem vergonha de mim."

Prefiro usar boca, dedos, cu, o corpo de uma forma mais plena. Gosto de pensar no corpo como um todo pedindo por sexo a insistir em envolver somente os genitais

Amara Moira

Como é lidar com o assédio "do lado de cá"

A dependência da coragem alheia para trabalhar

Há dez anos, quando iniciava a graduação em letras, Amara foi procurar emprego e acabou contratada como professor em um colégio de Campinas, cidade onde nasceu e foi criada. Hoje, às vésperas de defender seu doutorado em uma das universidades mais prestigiadas do Brasil, precisa "contar com a coragem de uma instituição" para ocupar o cargo de professora.

Mesmo assim, Amara leciona. O emprego, que já vai para o segundo ano consecutivo, é em um cursinho que transmite aulas para o país inteiro. Dessa forma, só assiste quem realmente está interessado "e não vai se incomodar com o fato de aprender com uma travesti".

"Os alunos me veem com admiração e demonstram ter prazer em aprender literatura comigo. Eles me escrevem e dizem o quanto é importante ter aula com uma professora travesti, que é uma experiência riquíssima." 

O corpo e a existência da travesti diz coisas que a desabonam enquanto uma pessoa capaz

Amara Moira

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