Ela não fracassou

Premiada nadadora brasileira, Renata Agondi morreu há 30 anos tentando cruzar o Canal da Mancha

Gabriel Carneiro Do UOL
Arte/UOL

Uma mulher de 25 anos de idade definida por pessoas próximas como "doce, mas com opiniões e certezas", "realmente determinada" e que "não se dobrava fácil" morreu há exatamente 30 anos. Renata Câmara Agondi, nadadora premiada no Brasil e também internacionalmente, tentava concluir a travessia do Canal da Mancha, entre a Inglaterra e a França, quando teve uma parada cardíaca causada por hipotermia e fadiga após dez horas de nado.

Foram 42 mil braçadas que não chegaram a lugar algum por uma série de razões. Há versões que falam em treinamento insuficiente, preconceito por ser uma atleta brasileira e o comprovado despreparo das pessoas que estavam no barco de apoio e acabaram condenadas a seis meses de prisão por um erro de rota. Também há uma interpretação comum a quase todas as pessoas envolvidas de certo modo no caso e ouvidas pelo UOL Esporte: Renata queria completar a travessia, se sentia capaz e não desistiria. Ela preferiu a morte à derrota.

Canal da Mancha é o Everest dos nadadores

A travessia do Canal da Mancha é uma espécie de grife para quem nada. É tipo chegar ao topo do Everest para alguém que curte alpinismo. Ou então uma pessoa que tem familiaridade com o triathlon se aventurar no Ironman. É o extremo. O ser humano é o único animal que arrisca sua vida sem ser para comer ou se salvar de um predador. Ele arrisca a vida por adrenalina, por desafios, pelo prazer. A travessia do Canal da Mancha, então, é uma aventura esportiva que o homem tenta realizar desde que a primeira pessoa provou que era possível, em 1875.

Desde Matthew Webb, mais de 15 mil pessoas tentaram a travessia a nado, mas de acordo com dados oficiais foram apenas 2.319 casos de sucesso na história. Isso não significa que todos os outros tenham morrido, é claro. A maioria simplesmente desiste quando vê o tamanho do desafio. Grande distância (33km entre Dover e Calais), ameaça de hipotermia, tempo imprevisível e a necessidade de reforço energético constante tornam a travessia um desafio à resistência humana. 

Não há informações 100% confiáveis, mas estima-se que foram dez mortes de atletas durante o percurso - uma da brasileira Renata Agondi. Em contrapartida, 28 nadadores do país completaram a travessia, sendo o último Michel Caires Saad, de Franca (SP), no último 20 de agosto. Antes dele, Mario Pinto havia feito o desafio em julho, em 12 horas e cinco minutos. O Brasil também tem um nadador que fez o percurso de ida e volta do Canal da Mancha: Igor de Souza, em 1997. Ele foi contemporâneo de Renata na natação.

Criaram as competições de maratona aquática oficialmente mais ou menos na nossa época, então viajamos pelo Brasil. Como éramos os dois que mais se destacavam fomos os primeiros a ir para o exterior. A gente juntava um dinheirinho aqui, juntava ali, às vezes dormia no mesmo quarto para sair mais barato, mas competíamos. Foram uns seis ou sete anos assim. Eu estava com ela até uma semana antes do embarque para o Canal da Mancha. As taxas eram caras, ela só foi porque arrumou um patrocinador. Eu segui no circuito pela Europa

Igor de Souza

Igor de Souza, Ex-nadador, presidente da ONG Associação Aquática e diretor de marketing da Speedo

Para Renata, realização da travessia foi caminho natural

Renata Agondi era uma nadadora experiente e premiada no Brasil quando decidiu cruzar o Canal da Mancha. Ela já competia no mar desde 1983, quando foi vice-campeã de uma travessia entre a Praia das Astúrias e da Enseada, no Guarujá. Foi uma prova de 3,5km que provou uma das características que mais rendia elogios nas provas de piscina: a resistência. Em 1987 ela se aventurou pela primeira vez fora do país, na travessia entre as cidades de Capri e Nápoles, na Itália. Renata terminou em sexto lugar geral e terceiro entre mulheres. Na primeira prova! Estava claro: fazer carreira em maratonas, provas de águas abertas, era seu caminho. 

Ao fim daquele ano foi descoberta pelos nadadores brasileiros a existência de um circuito mundial deste esporte. A chance de Renata Agondi fazer história pelo país era tão real que ela conseguiu um patrocinador para custear toda a preparação e torneio, além da travessia do Canal da Mancha - até então só dois brasileiros haviam conseguido. Com maiô e touca escrito Credicard, a nadadora chegou à Europa no dia 5 de julho de 1988 para uma série de competições menores antes do grande desafio.

Renata foi acompanhada nesta viagem por Judith Russo, uma amiga que circulava no meio do esporte em Santos e foi uma espécie de treinadora nestas travessias, com a responsabilidade de dar instruções e organizar reposições energéticas, principalmente. Em 20 de agosto, Renata fez uma brincadeira com a técnica: escreveu um cartão postal em Dover, proibiu Judith de ler e enviou ao Brasil. Os dizeres eram os seguintes: "Obrigada pela força. A conquista foi nossa. Esta viagem certamente entrará em nossas vidas. Beijos, Renata."

Não houve exatamente uma conquista.

"Raio de sol": como amigos souberam da morte; assista

Sucessão de erros

  • Piloto diferente

    Todo percurso no Canal da Mancha é seguido por um barco, que tem a missão de fazer o mesmo caminho ao lado do nadador. Neste barco vão, além do treinador, um piloto, um co-piloto e um fiscal da travessia, para evitar irregularidades. Renata deu azar em sua vez: Eric Baker, piloto escolhido meses antes para a travessia, passou mal no dia agendado e indicou uma tripulação diferente, referendada por ele, e também um barco diferente.

  • Barco diferente

    Colin Cook e Graham Featherbee foram os tripulantes do barco chamado Hilda May. Renata e Judith rapidamente notaram que havia diferenças importantes em relação ao barco previamente escolhido: este era mais alto, o que dificultaria a treinadora de fornecer o alimento da nadadora. "Era um barco de pesca", disse Judith, anos depois. Renata não se opôs a embarcar no Hilda May, mesmo diante das dificuldades que poderiam acontecer.

  • Fiscal despreparado

    A travessia indica um fiscal para acompanhar cada nadador. No caso de Renata ele foi Mark Eduard Lewis, jovem nascido nos Estados Unidos. Não havia maiores credenciais sobre ele. Mais tarde descobriu-se que Lewis estava na Inglaterra na condição de acompanhante de um professor que tentaria a travessia por aqueles dias, mais ou menos como Judith. Pediram "colaboração" do americano, que aceitou sem conhecer a importância da função.

Quem dá direção ao nadador é o barco

Renata Agondi partiu de Shakespeare Beach, na Inglaterra, às 8h22 do dia 23 de agosto de 1988.

Ao iniciar a travessia do Canal da Mancha ela fazia 80 movimentos de braço por minuto e depois de uma hora seguia no mesmo ritmo, o que é considerado um ótimo desempenho em maratonas aquáticas. O início de prova foi elogiado: metade do percurso percorrido em menos de cinco horas. O problema foi o que aconteceu depois. Nas quatro horas seguintes, a brasileira não nadou mais do que 5km. Renata estava nadando em uma rota errada.

"O mar começou a ficar mais revolto e começou o tráfego de navios. Às vezes o barco tinha que parar um pouco por causa da vinda dos navios, mas o piloto não continuou a acompanhar Renata como deveria. Adiantava o barco e Renata ficava para trás. Ele parava, a Renata passava e ele acelerava. Eu pedia a ele: não faça isso, pois cansa o nadador, tem que ser ao lado", disse Judith Russo em depoimento ao livro "Revolution 9". 

Se o barco está à frente, o nadador força o pescoço para avistá-lo. Se o barco está atrás, o nadador está sem direção. Quem dá direção ao nadador em uma prova assim é o barco. 

O barco Hilda May não acompanhava direito Renata Agondi, a ponto de quase atingi-la. Após quase 11 horas ela ainda estava longe da terra e nadando em vão. O clima no barco estava tenso, repleto de impasses e discussões. Em algum momento os tripulantes concluíram que era difícil retomar a rota original e deviam cancelar a travessia. Eles aproximaram o barco da nadadora e jogaram a boia no mar - nas provas, agarrar a boia significa desistência, e encostar no barco representa desclassificação. Renata viu a boia. 

Em razão do tempo e da boa performance, Renata acreditou que estava perto da costa. Há quem diga que ela já podia ver a terra naquele momento. "Ela viu a boia e perguntou: "por quê?" Ela olhou para mim, aqueles olhos como que implorando: "por quê você quer me tirar? Por quê? Por quê?". Eu disse: Renata, não dá mais", relembra Judith.

Renata não cumpriu a ordem. Aumentou o ritmo das braçadas demonstrando indignação e tentando se afastar do barco para não tocá-lo. "Naquele instante ela quis se desvincular das orientações erradas e chegar à costa. Mas quando ela quis dar o sprint final ela sentiu o mal estar fatal", conta Marcelo Teixeira.

Um dia quem sabe haja uma explicação de porque a Renata foi tão cedo. A dúvida permanece. Capacidade para fazer aquela travessia ela tinha, não era uma aventureira. Aliás, o que eu não queria nunca que passasse é a imagem de que ela era uma aventureira, que foi nadar sem competência. "Mas ela fez isso", "mas ela" o caramba. Ela sabia o que fazia, era bem treinada, não se arriscaria no sentido de uma aventura

Tereza Cristina Tesser

Tereza Cristina Tesser, Amiga de Renata Agondi

O barco Hilda May fez contato com a guarda costeira às 18h01 para informar que Renata estava em perigo. O fiscal Lewis a resgatou do mar e um helicóptero foi buscá-la. Antes da chegada ao hospital na França, a brasileira morreu. "Síndrome de esgotamento" foi a causa, de acordo com os primeiros boletins. Não houve afogamento. Renata Agondi teve uma parada cardíaca causada por hipotermia e fadiga. Era a quarta morte de um atleta no Canal da Mancha em toda a história.

O corpo de Renata Câmara Agondi chegou ao Brasil às 7h do dia 2 de setembro de 1988. Os patrocinadores e a Universidade Santa Cecília, onde ela treinava em Santos, se encarregaram dos custos. Uma multidão de pessoas acompanhou o velório na sede da faculdade e depois o enterro. Em sua lápide foi escrito: "Brilha no céu uma estrela do mar".

Judith Russo

Judith Russo, durante meses, foi considerada a única responsável pela morte de Renata Agondi. Ela foi enquadrada no artigo 63 do Código Penal francês por negligenciar assistência à pessoa em perigo e foi presa na sequência da prova. A Credicard, patrocinadora da atleta, pagou fiança de 500 mil francos, e a treinadora voltou ao Brasil.

Como provas roubadas revelaram culpados; assista

Morte de Renata desencadeou mudanças no esporte

A trágica morte de Renata Agondi desencadeou mudanças importantes em relação à segurança das maratonas aquáticas. Anteriormente apenas o treinador tinha direito de interromper a prova, mas o piloto do barco de apoio também passou a ter essa possibilidade depois de tudo o que aconteceu. Os próprios técnicos, aliás, passaram a ser mais profissionais: antes era comum que os atletas levassem meros acompanhantes, amigos que queriam viajar à Europa e aproveitavam a ocasião.

O treinamento e preparação dos barqueiros também está em outro nível. Atualmente é preciso reservar um barco para a travessia cerca de dois anos antes da viagem, o que evita improvisos e imprevistos como no caso de 30 anos atrás. São poucos barcos autorizados, todos preparados e equipados. Renata, por exemplo, não fez reserva alguma: conseguiu um patrocinador pouco antes e por isso embarcou para tentar o Canal da Mancha.

Há muito mais informações, e mesmo assim as mortes não cessaram. Depois da brasileira houve mais seis tragédias na travessia, sendo a última em 2017. 

Renata Agondi dá nome à primeira etapa da Copa do Mundo de maratona aquática e duas ruas, uma em Santos (no bairro Saboó) e outra em São Paulo (Itaim Paulista).

Acervo pessoal Acervo pessoal

Voz da natação nos anos 80

Antes mesmo de morrer, Renata já vinha atuando como incentivadora de mudanças estruturais no esporte. Ela trabalhou na Secretaria Municipal de Esportes de Santos (Semes), desenvolveu trabalhos na área de comunicação e organização de dados de esportistas da cidade e fez parte do comitê que fortaleceu os Jogos Abertos do Interior na época. Ativista, ela virou uma voz da natação a partir do momento em que passou a conquistar resultados expressivos. 

"O atleta é um joguete nas mãos dos outros e acaba estragando sua carreira" e "A melhor forma de derrubar tudo isso é nadar e obter bons resultados, porque assim você é considerado credenciado para falar e surgem algumas brechas para a gente mandar ver" são frases ditas por ela a jornais locais em 1986.

Formada em relações públicas, ela também era ativa em movimentos estudantis, no hippieismo, no feminismo e até na formação de partido político. Boa parte de suas posições eram expressas em um diário que escreveu desde os oito anos de idade e que tinha até nome: "Revolution 9", nome de uma música do Álbum Branco dos Beatles, em 1968. 

Revolution 9: frases do diário de Renata Agondi

Acho que não dá pra gente aprender sem sofrer. Quando estamos sofrendo, estamos aprendendo algo que será difícil esquecer. Estou com medo de que minha vida se torne apenas uma passagem, mais nada. Gostaria de aprender e ensinar, não teoricamente, virar um profeta ou algo parecido. Mas que as pessoas aprendessem comigo através do que sou, o que faço, o que sinto, porque sou assim

Em 24 de março de 1984

É interessante o destino. Dizem que é fácil colocar a culpa no destino. Acredito que posso fazer o meu caminho, trocá-lo, mas eu vou ter que passar por certas coisas que estão escritas no destino, que não dá pra fugir. Entende? Podem acontecer mil coisas comigo que acontecerão por minha causa, porque eu quis. Mas tem coisas que sem eu querer vou passar, está escrito por Deus

Em 10 de junho de 1984

A família de Renata Agondi ainda tem muito desconforto para falar sobre o assunto, especialmente em datas próximas ao dia específico de sua morte. Ela tem pai e mãe vivos, Raul e Lucrécia, e quatro irmãos, Rosana, Raul, Rodolfo e Roberto. Periodicamente eles recebem homenagens, mas costumam falar sobre o legado, e não sobre as causas e consequências da fatalidade. O assunto segue como um tabu. E também segue nebuloso. As lágrimas mostram tristeza pelo adeus precoce de uma promessa do esporte e também dúvidas sobre o que poderia ter sido feito de diferente para evitar esta morte.

"Por quê?", perguntou a nadadora após ver uma boia atirada em sua direção para que desistisse da travessia do Canal da Mancha. Depois de 30 anos ninguém respondeu sua pergunta.

Curtiu? Compartilhe.

Topo