O rei do migué virou filme

Vida de Kaiser, o melhor jogador que nunca jogou, vai às telonas, e Renato Gaúcho vira "Beckham brasileiro"

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo
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Divulgação/kaiserthefilm.co.uk Divulgação/kaiserthefilm.co.uk

A história de Carlos Henrique Raposo, o Kaiser, já é bem conhecida no Brasil há quase dez anos. Apelidado de "Forrest Gump brasileiro", ele foi um jogador de futebol que se aposentou aos 41 anos de idade e sustentou uma carreira de mais de duas décadas sem praticamente ter entrado em campo em partidas oficiais. Ele passou por grandes clubes no Brasil e esteve no elenco até de times estrangeiros, mas seus grandes atributos não eram chutes, passes ou dribles, e sim sua rede de relacionamentos e uma boa dose de malandragem. 

Agora, sua história é do mundo inteiro. Foi lançado na última semana, em Londres, o documentário Kaiser: The Greatest Footballer Never To Play Football (em português, "o maior jogador de futebol que nunca jogou futebol"). O filme foi produzido ao longo de três anos e foi exibido e premiado no Festival de Cinema de Tribeca em abril, nos Estados Unidos. A ideia era lançar na Inglaterra em julho, em circuitos restritos, mas a recepção de público e crítica foi positiva à história do brasileiro.

"A avaliação do filme é sempre de quatro ou cinco estrelas. Aparecemos em todos os jornais do Reino Unido e vários programas de TV. Tanto é que seríamos exibidos nos cinemas por uma noite, mas agora estamos nas telas de todo o país para atender a demanda. A recepção tem sido brilhante", diz, ao UOL Esporte, o diretor do filme, Louis Myles.

O filme tenta explicar os segredos de um homem que resistiu tanto tempo dentro do futebol sem jogar. A história já é conhecida, mas sempre vale a pena.

Para não entrar em campo vale até soco em torcedor

Trecho do filme cedido pela produtora We Are Buzzers

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"A melhor história de todas"

Diretor do filme sobre a vida de Kaiser, Louis Myles é um britânico de 35 anos de idade que conheceu a história do brasileiro no bar, "durante alguns chopes", por meio de dois amigos que se tornaram produtores executivos do projeto. "Como um cara administrou uma carreira falsa de 26 anos no futebol basicamente sendo o maior malandro da história? Fiquei impressionado". Na sequência, Myles consultou o jornalista Tim Vickery, inglês radicado no Brasil, para saber mais sobre Kaiser. E lembra-se de ter ouvido o que mais queria.

Tim Vickery me disse que em 21 anos morando no Rio de Janeiro a história de Kaiser não era a melhor história de futebol que ele tinha ouvido sobre o Brasil. Mas a melhor história de todas."

A produção começou em novembro de 2015, com assinatura de contrato de exclusividade para um filme e um livro com os ingleses. Foram dois anos de viagens, entrevistas com 73 pessoas e muita diversão, segundo o diretor. "Não vivi, mas já tenho saudades desta geração de ouro do futebol brasileiro", brinca Myles. Zico, Júnior, Ricardo Rocha, Renato Gaúcho, Carlos Alberto Torres e Bebeto estão entre os personagens do filme.

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Renato Gaúcho vira "Beckham brasileiro" nas telonas

Um dos melhores amigos de Kaiser no mundo do futebol é Renato Gaúcho, ex-jogador e hoje técnico do Grêmio. Ambos foram contemporâneos no futebol carioca e eram apreciadores da noite - daí a proximidade entre eles, reforçada pelo porte físico e especialmente pelos mullets no cabelo tão tradicionais nos anos 80. De acordo com o diretor Louis Myles, Renato Gaúcho é o principal personagem da história de Kaiser depois do próprio Kaiser.

"As pessoas da Europa não necessariamente se lembram do Renato, então o impacto de sua contribuição não é totalmente compreendido aqui, embora todo mundo goste. Nós tentamos dizer que ele é o Beckham brasileiro por aqui. Acho que os brasileiros vão adorar", conta o diretor.

Beckham foi um grande nome do futebol inglês, mas também ganhou manchetes em razão do comportamento fora de campo. Preocupação com o visual, vida pessoal agitada, companhias femininas, polêmicas... Uma série de coincidências com Renato Gaúcho, que teve carreira sólida no futebol, com passagem até pela Roma e seleção brasileira, e trabalha como treinador desde 2001. Foi ele, aliás, quem deu o nome do filme.

"Foi a última frase da entrevista do Renato Gaúcho, quando pedimos para ele resumir a vida do Kaiser e ele disse que foi o melhor jogador de futebol a nunca ter jogado futebol."

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Desamor pelo futebol desde a infância

Carlos Henrique Raposo tem 55 anos. Personal trainer no Rio de Janeiro (e agora estrela de cinema), ele conta com orgulho dos tempos de jogador. Ou quase isso... "Eu nunca quis ser jogador e muito menos viver isso que está acontecendo. Virou uma loucura. Mas estamos aí", diz.

Apelidado de Kaiser desde a infância, ele conta que começou a jogar futebol em clubes por influência familiar. Aos 10 anos já treinava na base do Botafogo e era pressionado a continuar jogando, porque a ajuda de custo era importante na renda da casa. Ninguém perguntou se ele queria jogar. E Kaiser na verdade não queria, mas foi ficando. E fingindo que jogava. E se profissionalizando. E trocando de clube. E sendo transferido. Por 26 anos.

"Eu não tinha noção de profissionalismo. Era divertido, eu estava em meio aos meus amigos, recebia salário. As pessoas não entendem meu desamor pelo futebol, mas minha mãe vendeu meu passe a um empresário e eu tinha que seguir o que ele mandava. Então do dia para a noite eu estava em outro time e assim foi durante um bom tempo. Eu não era ruim de bola, mas simplesmente não queria. Era um trauma, sei lá", reflete o ex-jogador.

Há registros da presença de Kaiser em vários clubes: Botafogo, Vasco, Fluminense, Palmeiras, Bangu, América-RJ, Puebla (México) e Ajaccio (França). Na maioria deles, entretanto, ele não jogou. Ou jogou muito pouco. Muito pouco mesmo. 

Senta que lá vem história...

  • Pra torcida

    Já no fim da carreira, Kaiser foi levado por um amigo ao Ajaccio, da 3ª divisão da França. Como era brasileiro, apresentação foi com pompa: torcida no estádio e bola em campo para embaixadinhas e todo o protocolo. Depois, treino aberto. Para evitar ser visto (e avaliado), Kaiser aproveitou o cerimonial e chutou todas as bolas aos torcedores para fazer graça, sendo ovacionado. Sem bola só rolou treino físico.

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  • Por Castor

    A história mostrada no trailer de filme fica ainda melhor nas palavras de Kaiser. O "jogador" usou a forte influência no Bangu de um dos maiores nomes do jogo do bicho, Castor de Andrade. Na hora da bronca no vestiário, justificou dizendo que estavam falando mal na arquibancada de Moça Bonita do presidente do clube. "É horrível ouvir dizerem que seu pai é criminoso. Não me controlei". Ele não foi punido.

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  • Eu sou Renato

    A semelhança com Renato Gaúcho abria portas para Kaiser. O atual técnico do Grêmio foi convidado certa vez para ir a uma boate em Búzios, onde haveria um camarote reservado. No fim do dia, o então atacante decidiu marcar presença, mas foi barrado pelos seguranças quando chegou. "O Renato já chegou, está lá dentro, você deve ser só parecido com ele". A confusão foi desfeita e os sósias se divertiram.

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  • Fala muito!

    Kaiser se vendia bem. Suas dispensas de clubes viravam saídas "por motivos pessoais". Sua curta passagem pelo Puebla, do México, virou uma temporada de sucesso com proposta de naturalização. Ele diz que é campeão da Libertadores e do Mundial pelo Independiente, mas o clube não tem registro. E ele diz que jogou no Palmeiras por indicação do volante Rocha, mas nunca assinou contrato, só treinou por um tempo.

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  • Fake news desde 1990

    No Botafogo, Kaiser queria impressionar. Dono de um celular na época em que isso não era comum, vivia pelos cantos do clube com o aparelho no ouvido, falando com empresários sobre propostas e até em inglês sobre sua carreira. Era mentira. O então preparador físico, Ronaldo Torres, desmascarou a farsa e revelou para todo o elenco. Como a fama de mentiroso já estava estabelecida, foi só diversão.

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  • Amor está no ar

    A vida sentimental de Kaiser é um capítulo à parte. Na época do filme ele namorava Andrea Ximenes, que aparece nas filmagens e trocou Adriano Imperador por ele - de acordo com o próprio Kaiser. O ex-jogador também já teve relacionamento público com Paloma, A Transtornada do Funk, conhecida como a 1ª transexual do funk carioca, e com uma atriz de filmes adultos chamada Yara Morganna.

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Acervo pessoal Acervo pessoal

"Freelance" de assessor manteve história em segredo

Da mesma maneira que torcedores e dirigentes, os jornalistas também eram enganados por Kaiser. Problemas físicos do atacante já foram registrados em jornais e boletins de rádio e televisão. Mas também havia os profissionais de imprensa que usavam a influência do jogador que não jogava para esconder a malandragem do público em troca de alguns benefícios.

"Na época ninguém mandou essa minha história para o pau na imprensa. Muitos sabiam, mas aí a gente fazia uma combinação. Um dia eles queriam entrevistar o Romário, só que o Romário estava de mau humor. Aí eles chegavam em mim para conversar com o Romário e eu convencia o Romário a falar com eles. Era uma troca. Eles me entendiam e eu entendia o lado deles", conta Kaiser, que se aproveitava da falta de informação desses tempos e também presenteava profissionais com camisas ou passava informações sigilosas em troca do silêncio sobre sua própria história.

Foi em 2011 que a história se popularizou por meio de uma reportagem do "Esporte Espetacular", da TV Globo. "Dois repórteres me procuraram e disseram: 'Romário, Ricardo Rocha, Renato Gaúcho... já ouvimos todo mundo. Agora você vai confirmar sua história ou dizer que eles são mentirosos?'. Aí eu me abri pela primeira vez", diz Kaiser, que desde então é frequentemente personagem de matérias e agora teve sua história contada em filme e livro pela primeira vez.

Números de Kaiser

Repdrodução Repdrodução

Escassez de imagens atrapalhou

Também fez parte da produção do filme uma série de cenas gravadas entre 2016 e 2017. O grupo de teatro Nós do Morro, fundado em 1986 no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, cedeu atores para a dramatização de acontecimentos contados por Kaiser que não têm registro físico, como suas aventuras com mulheres, por exemplo. O ator Eduardo Lara interpretou o próprio ex-jogador em alguns momentos da história.

Como Kaiser não jogava não existem lances disponíveis, somente algumas entrevistas ou vezes em que ele aparecia atrás de jogadores famosos. Por isso a escolha pela dramatização, como explica Louis Myles: "As histórias eram tão fantásticas que sentimos que precisávamos mostrar." Kaiser tem um grande acervo de jornais e revistas que o citam, e isso ajudou a produção do documentário. As aparições na TV desde 2011 também foram agregadas.

Não há previsão de lançamento no Brasil. A produção tem conversas em andamento, mas fazia parte dos planos lançar primeiro no Reino Unido em razão da rede de contatos dos cineastas por lá. A ideia agora é preparar a chegada do filme ao país onde tudo aconteceu ainda neste ano.

Acervo Pessoal/Catia Lúcia Kayzer Acervo Pessoal/Catia Lúcia Kayzer

Personal trainer bom de lábia

Carlos Henrique Kaiser largou totalmente o futebol depois do fim da carreira como "jogador". Formado em Educação Física, ele hoje é personal trainer em uma academia do Rio de Janeiro. O foco de seu trabalho são mulheres em treinamento para competições de fisiculturismo. Catia Lúcia é uma das alunas.

Aos 44 anos, ela atua na categoria "wellness master", destinada a mulheres que preferem desenvolver um físico menos musculoso. "Ele é um excelente profissional, muito rigoroso nos treinos", diz a aluna, que adotou "Kayzer" como sobrenome e treina há quase dois anos com o ex-jogador. 

Na nova profissão a lábia segue sendo parte importante do sucesso.

"Ele me abordou na rua. Me viu e veio correndo atrás. Educadamente se identificou e perguntou se eu poderia ouvi-lo. Confesso que eu fiquei assustada, ainda mais porque ele falou coisas que parecia um vidente. Ele disse que os deuses dele mandaram investir e cuidar de mim. Sem me conhecer ele falou exatamente coisas que eu havia passado e minha maneira de ser, que eu me preocupo com as pessoas e precisava cuidar de mim. Eu achei louco, mas agradeci e ele me deixou um folheto da academia. Liguei para lá sem me identificar e vi que era real, ele trabalhava lá. Estamos aí até hoje", conta a aluna de Kaiser, convencida a ir para a academia depois de encontrá-lo por acaso na rua.

Kaiser diz que já treinou 52 campeãs de wellness e foi eleito por duas federações como o melhor treinador do país. 

Acervo pessoal Acervo pessoal

Vai haver outro?

Carlos Henrique Kaiser se vê como uma espécie de Robin Hood do futebol brasileiro. Os clubes e dirigentes enganaram tanto os jogadores que uma única vingança não poderia ser mal vista pelos torcedores. Ele é um vingador. Mas apesar da fama e das oportunidades decorrentes de sua história de vida, ele guarda um arrependimento. "Eu poderia ter levado minha carreira a sério. Hoje vejo que rasguei muito dinheiro por não ter contratos mais longos, por exemplo. Mas não reclamo também. Quem me odeia é porque queria fazer o que eu fiz. O sol nasce para muitos, mas não brilha para todos."

Ele acha impossível que apareça um novo Kaiser no futebol brasileiro - no sentido de ter uma carreira longa no futebol praticamente sem jogar. "Eu fiz isso por 26 anos, mas hoje não dá mais. E olha que tem muita gente que tenta, viu? Gente que ludibria treinadores e tudo mais. Não vou citar nomes. Mas é muito fácil se esconder do jogo", brinca o ex-jogador. Louis Myles, diretor do documentário sobre a vida do maior jogador a nunca ter jogado, tem explicações para o fim da "linhagem" Kaiser.

"Hoje em dia há telefones com câmeras em todos os lugares. Quem quiser imitá-lo está perdido. Jovens jogadores são observados desde cedo e é tudo muito profissional. Essa história só poderia acontecer naqueles tempos e só no Rio de Janeiro. É uma história única." 

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