Sérvio da Silva

Há 21 anos no Brasil, Petkovic cogita se naturalizar, mas teme se meter com a política do país

Adriano Wilkson e Bruno Freitas Do UOL, em São Paulo

Quando Dejan Petkovic deixou o banco do Real Madrid, no já longínquo ano de 1997, a ideia era passar apenas uma temporada no Brasil, se valorizar e voltar em alta para a Europa. Mas sua vida tomou um rumo diferente. O sérvio destacou-se na Bahia, foi para o Rio de Janeiro e, no Flamengo, virou ídolo da maior torcida do país. Mais de 20 anos e uma história construída nos campos do país depois, Pet começa a trilhar uma carreira diferente no futebol.

Como comentarista do Sportv, ele apareceu ao vivo diariamente durante toda a Copa do Mundo falando sobre o que mais gosta. “Tudo que tenho hoje, consegui através do futebol”, disse ele nesta entrevista ao UOL Esporte concedida antes da viagem à Rússia. “Tenho muito respeito pela criatura redonda que às vezes eu maltratava ou tratava bem.”

Em mais de uma hora de conversa, o ex-jogador também falou de da infância na Sérvia, a política brasileira, o gol mais memorável da carreira, o calote que sofreu do Flamengo e sua relação (nem sempre calma) com outros expoentes do time na época: Adriano Imperador e Edilson Capetinha.

Divulgação/Sportv Divulgação/Sportv

Comentarista de TV é o "melhor trabalho do mundo"

A Copa da Rússia foi o primeiro grande teste de Petkovic na televisão. Ele já participava como convidado de programas do Sportv, mas durante mais de um mês esteve quase diariamente na bancada do “Seleção” ao lado de Marcelo Barreto e André Rizek. Seus comentários misturavam um humor malcriado com observações boleiras que frequentemente serviam de contraponto ao discurso dos jornalistas.

Parecia estar se divertindo. “Você escuta comentários dentro do estádio, do treino, do bar, dentro da tua casa, do restaurante, no churrasco. Todo mundo faz comentário. Você fala do futebol continuamente. Olhando por esses olhos realmente parece tão simples”, disse Pet, sobre sua nova profissão. “Mas acho que tem que escolher certos comentários, a coerência, conhecimento e o conteúdo pra poder errar o menos possível nas tuas colocações.”

Ele disse que, quando jogava, não gostava de ler nos jornais as reportagens sobre sua atuação. Com o tempo, aprendeu que é preciso separar paixão de racionalidade na hora de opinar sobre qualquer assunto na TV. “Às vezes, os comentários não têm nada a ver. A gente se irrita, mas com o passar do tempo, você aprende, amadurece, digere com mais tranquilidade e entende essa paixão, essa emoção.”

Pet explica inspiração para quadro "Poetkovic"

Uma das brincadeiras mais comentadas do Sportv na Copa foi o quadro "Poetkovic", no qual o sérvio recitava rimas ricas, raras e preciosas, compostas por ele mesmo.

O comentarista disse que a repercussão dos poemas foi o que mais lhe surpreendeu: “A primeira poesia que fiz, que foi em espanhol falando sobre Maradona, Pelé e Messi, algumas pessoas não entenderam. Movimentou muito as redes sociais e me incentivou ainda mais para continuar fazendo as poesias.”

“Surgiu espontaneamente, no debate entre os comentaristas e apresentadores", disse ele. "Depois pediram outra e então segui fazendo. No início estava fazendo bem perto do início ou durante o programa, nos intervalos. Algumas levei mais tempo, como a que falei sobre a seleção brasileira.”

Rafael Andrade/Folhapress Rafael Andrade/Folhapress

17 anos para ganhar visto permanente no Brasil

Mesmo sendo o estrangeiro que mais marcou gols na história do futebol brasileiro (170), Petkovic não escapou das amarras burocráticas que dificultam a vida de um cidadão de outro país no Brasil. Foram 17 anos até que seu visto permanente saísse. “Minha situação não encaixava no registro. Por quê? Porque eu tinha que ter emprego sem tempo determinado. E jogador de futebol não tem contrato sem tempo determinado.”

Como ele não se encaixava nas outras situações previstas na lei para conseguir o visto (como ser casado com uma brasileira ou ter filhos brasileiros), precisou entrar com um processo para conseguir seus papéis. Antes disso, dava “jeitinho brasileiro” para renovar seu visto provisório: fazia viagens curtas para Argentina ou Paraguai só para receber um carimbo novo de entrada no Brasil.

Mesmo assim, não reclama do que o país que adotou lhe deu: “A minha vida de estrangeiro no Brasil foi fora de curva. Vim aqui e consegui fazer sucesso, consegui me tornar ídolo, muito respeitado, conhecido, diferente de outros estrangeiros que vêm aqui em busca de oportunidade, melhoria de vida. Já vim com nome, com patamar de vida diferente.”

"Se virar brasileiro, ser obrigado a votar vai me complicar"

Já na seleção, Pet viu de perto a guerra que dissolveu seu país

Petkovic nasceu na pequena Majdanpek, uma cidade mineradora de 15 mil habitantes no coração da então Iugoslávia. Logo foi a Nis, uma cidade maior onde haviam jogado seu irmão e seu pai. Apelidado de “Rambo”, por seu porte físico atarracado que lembrava o do personagem de Sylvester Stallone, Petkovic começou a se destacar a ponto de conseguir uma transferência ao Estrela Vermelha, um dos principais times do futebol iugoslavo.

Em Belgrado, já convocado pela seleção nacional, viu crescer a insatisfação das várias nacionalidades que compunham o país – como croatas, macedônios e bósnios – em relação ao governo sérvio. Essa insatisfação logo saiu do campo da política e ganhou as ruas, colocando um muro invisível entre pessoas de nacionalidades diferentes. “Eu tinha amigo com quem dividia quarto na seleção que era croata. Não entendia aquela situação”, lembra Pet.

Conflito europeu mais sangrento desde a Segunda Guerra Mundial, a dissolução da Iugoslávia causou a morte de ao menos 130 mil pessoas. Pet, que no início do conflito tinha 19 anos, percebeu os primeiros sinais da guerra aos poucos. “O primeiro problema foi o serviço militar obrigatório. Começam a desertar certas pessoas, primeiro esloveno, depois croata. Isso não deixa de ser um ato de abandonar o exército, o que não era perdoado. Depois vieram as declarações de independência, as separações. Lamento muito as mortes de inocentes, as perdas de vidas sem nenhum sentido. Não se ganhou nada com isso, só se perdeu. Mas pessoas mais próximas e amigos eu não cheguei a perder.”

"No socialismo não tinha fome, mas malandros não trabalhavam"

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Veio ao Brasil às pressas por causa de mentira sobre o papa

Campeão nacional com o Estrela Vermelha, Petkovic entrou no radar dos gigantes europeus. Em 1995, foi contratado pelo Real Madrid, mas não conseguiu se firmar na equipe. Acabou emprestado ao Sevilla e ao Racing Santander. De volta a Madri, sua vida só mudaria de vez quando, durante um torneio amistoso, encheu os olhos de um dirigente do Vitória, que excursionava pela Europa.

Ele explica que tipo de pensamento passou pela sua cabeça quando o cartola Waltercio Fonseca se aproximou com a insólita proposta de levá-lo ao Brasil. “Pensei: ‘O quê? Brasil? De jeito nenhum, tá louco?’. Sabia pouca coisa sobre o país. Era futebol, samba, carnaval, café, praia, e acabou. Muito pouco. Logicamente falei não.”

Logo, graças à insistência de Waltercio, Pet resolveu dar começou a analisar aquela aventura de outro jeito: “Neste momento, sou o 12º jogador do Real Madrid. Se eu for lá e for bem, fizer um papel maravilhoso, conseguir me firmar, vou voltar para a Europa, porque o brasileiro vem para a Europa.” 

“Vim no mesmo dia porque o cara conseguiu me convencer. Falou que o papa estava no Brasil. Se eu não fosse agora, no dia seguinte não ia dar para assinar contrato com a CBF porque o Brasil estaria parado por causa do papa. Então, tinha que ser naquele dia. O cara foi muito bom no argumento. Waltercio Fonseca é um dos melhores pescadores do Brasil. E o pescador, além de pescar, faz o quê bem? [Risos]. Não tinha papa nada. Hoje o Waltercio é meu irmão de coração.”

Ana Carolina Fernandes/Folhapress Ana Carolina Fernandes/Folhapress

Gol histórico quase não aconteceu por causa de calote do Fla

No Flamengo, Petkovic foi duas vezes campeão carioca e uma vez campeão brasileiro, mas seu feito mais lembrado talvez tenha sido o gol do título na final do Estadual contra o Vasco em 2001. O torcedor flamenguista (e certamente o vascaíno) jamais esqueceu: o Fla vencia por 2 a 1 e, mesmo assim, deixava o título escapar por ter perdido o primeiro jogo.

Aos 43 minutos do segundo tempo, Pet cobra uma falta com perfeição poucas vezes vista no Maracanã. A bola entra com força e velocidade no único local inacessível ao goleiro cruzmaltino Elton: o ângulo esquerdo. Metade do Maracanã explodiu naquele que, até hoje, é considerado um dos maiores Flamengo x Vasco da história.

Mas o que nem todos sabem é que aquela cena quase não aconteceu, tudo por causa da bagunça administrativa que tomava conta do Flamengo no início dos anos 2000. Na reta final do Estadual, Petkovic estava com oito meses de salários atrasados e, após sucessivas promessas não cumpridas, tinha decidido não entrar em campo contra o Vasco. Dois dias antes do jogo, uma conversa em uma pizzaria regada a chope e emoção, além do voto de confiança do então técnico Zagallo, o demoveu da ideia. Pet não cansa de contar essa história.

Pizza, cerveja e a vontade de arrumar briga na concentração

Juca Varella / Folhapress Juca Varella / Folhapress

Briga com Edilson Capetinha foi motivada por inveja

Hoje eles são bons amigos, mas, na época em que vestiram juntos a camisa flamenguista, a relação era turbulenta. Petkovic e Edilson Capetinha já chegaram a discutir publicamente e contribuíram para deixar o clima tenso no vestiário rubro-negro em 2001 e 2002.

“Uma entrada no treino. Besteira, como acontece em qualquer rachão. Pelada de sábado”, minimizou o ex-meia. “A gente é amigo hoje em dia, foi um momento que acontece. Tem 30 homens lá fechados, concentrados, treinando todo dia, com salários atrasados... Mas não chegamos a brigar fisicamente.”

Mas havia outra razão para a desavença entre os dois. Segundo Pet, Edilson tinha “inveja” das folgas mais longas a que os estrangeiros do Flamengo tinham direito. “Eu e Gamarra ganhamos mais dias de folga depois do título em cima do Vasco”, explica Pet, se referindo ao zagueiro paraguaio. Edilson não achava justo esse privilégio. “Mas era óbvio. Para a casa dele [Edilson], eram duas horas de voo. Pra minha casa, eram dois dias. Claro que ida e volta dá praticamente o mesmo. Os quatro dias que ele ganhou, eu também ganhei, porque fiquei quatro dias em casa e outros quatro viajando. Ele ficou com inveja, ciúme. E teve o desentendimento.”

Esposa e duas filhas: um Pet entre três mulheres

Buda Mendes/UOL Buda Mendes/UOL

Campeão com Adriano, viu atacante se satisfazer com "boleiragem"

Quando resolveu voltar ao Flamengo em 2009, Petkovic não foi recebido com grande entusiasmo pela torcida. Mas ele logo reverteria isso, se tornando a principal peça do setor de articulação da equipe. No time, encontrou Adriano, que conheceu ainda em sua primeira passagem pela Gávea, quando o atacante canhoto era somente um jovem promissor.

“Uma parcela pequena de formar o Adriano tem a minha contribuição também”, afirmou Pet. “Ele é uma gente maravilhosa. Reflete muito bem como que é a vida do jogador brasileiro. Dificuldades, humildade, pobreza, perdas familiares, falta de formação, educação. Mas ele tinha coração. E tem um coração aberto.”

Juntos, Petkovic e Adriano, sob orientação do técnico Andrade, foram os principais responsáveis por levar o Flamengo de perto da zona do rebaixamento ao título do Brasileiro. Mas Petkovic acha que Adriano poderia ter ido ainda mais longe.

“Às vezes o jogador fica cercado de pessoas que talvez não contribuam muito na vida dele. Pessoas que não o direcionam pra aproveitar mais o talento próprio dele, as capacidades. E se satisfaz com aquilo que eu chamo de ‘boleiragem’: o tapa no ombro dos amigos”, afirma ele. “Pra ser um grande profissional de alta competência, você tem que ser exposto a grandes sacrifícios, se privar das coisas na vida, às vezes de seus familiares, não estar sempre em casa para ajudar a trocar fralda da filha, dar banho...”

Tem que se preservar, tem que fazer sacrifício. Quem consegue mais isso, quem tem sorte de estar com pessoas que podem contribuir, tem mais chance de vencer e alcançar o que você pode alcançar. Cada um alcança aquilo que merece. Se eu não alcancei mais e poderia, eu provavelmente não merecia mais

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Cartola e técnico sem brilho, Pet diz que política atrapalha futebol

Petkovic estudou para assumir cargos fora das quatro linhas. Formou-se treinador na Europa e dirigiu Atlético-PR, Criciúma, Sampaio Corrêa e Vitória, onde também foi gerente e diretor de futebol. Nunca conseguiu o mesmo brilho da época de jogador.

“Há poucos profissionais no futebol brasileiro preparados para o cargo. Normalmente, é [pessoa da] confiança dos presidentes ou são contratados na amizade”, afirma. “Clubes são amadores no aspecto de gestão porque não tem gestor profissional. A gestão é política. Você tem que fazer campanha política pra ser eleito. A maioria dos clubes não têm uma filosofia pré-estabelecida, um conceito de futebol, critérios, metodologia”, critica ele. “As muitas correntes políticas brigam entre si e atrapalham a vida do futebol.”

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