A angústia de Jorge Mendonça

Meia da seleção de 1978 deixou Zico no banco, mas perdeu o jogo para o alcoolismo

Bruno Doro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo
Folhapress

Jorge Mendonça colocou Zico na reserva na Copa do Mundo de 1978. Em uma mesma edição do Campeonato Paulista, só marcou menos gols do que Pelé e Feitiço, o lendário centroavante do Santos da década de 1930. Chegou a marcar oito gols em uma partida, quando jogava pelo Náutico, em 1974.

Mesmo com esse currículo, Jorge Mendonça foi abandonado. Foi abandonado pelo futebol quando estava se aposentando. Foi abandonado pela força de vontade quando não conseguiu enfrentar o alcoolismo e a depressão. Foi abandonado pelos seus clubes. E, pouco antes de sua morte, sua família também sofreu críticas por tê-lo abandonado. Seus filhos, porém, negam que isso tenha ocorrido.

Este é o relato do martírio dos últimos anos de Jorge Mendonça.

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A morte que veio em um sonho

Eu tive um sonho muito ruim com o meu pai. Ele me pedia água e morria nos meus braços. O sonho me deixou pensando e liguei para o meu pai. Ele não me atendia. Fui até a casa dele. “Pai, eu tive um sonho muito ruim. Vamos no médico”. Ele não queria ir. Dizia que estava bem.

Ele vinha de uma festa, estava meio alterado. Então, eu apelei: “Pai, olha o seu neto. Você não quer ver o seu neto crescer?” Ele pegou o meu filho. “Dá o meu neto aqui. Aliás, neto não. Vem aqui com o titio, porque eu sou muito novo para ser avô”.

Eu voltei a insistir na visita ao médico, mas ele respondeu: “Se eu morrer hoje, eu morro feliz. Conheci todos os lugares, tive todas as mulheres e fiz tudo o que eu quis. Mas eu não vou morrer agora porque eu vou ensinar o meu neto a jogar futebol”.

Foi a última vez que conversamos. Ele não foi, mesmo, ao médico. Aconteceu alguns dias antes da morte de verdade. E ele morreu nos braços da minha tia Roseane.

Fabiana Dantas Mendonça, 40 anos, filha de Jorge Mendonça

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O abandono que não aconteceu

Jorge Mendonça morreu no dia 17 de fevereiro de 2006, aos 51 anos. Nos 15 anos entre o fim da carreira e o fim da vida, sua família sofreu com histórias sobre um abandono que, segundo seus filhos, nunca ocorreu.

“Essa era uma questão muito explorada. No último Dia dos Pais dele, em agosto de 2005, vimos uma reportagem que dizia que ele ficou sozinho, abandonado pela família. Eu olhava aquilo e ficava inconformada. Eu tenho uma foto dele abraçando a minha barriga. Eu estava grávida do meu filho Rafael. A gente estava em família, na casa do meu avô. Como uma pessoa tem a ousadia de falar e escrever uma coisa dessa? Uma maldade dessa?”, questiona Fabiana.

Os relatos, porém, têm origem na relação conturbada da família com Jorge Mendonça nas noites de bebedeira. Cristiano Mendonça, 41 anos, um dos três filhos, foi o que mais sofreu com isso. E tem muitas histórias tristes sobre o período.

Teve dia em que eu estava trabalhando e recebia uma ligação: "Corre que o seu pai está aqui e quer bater na sua mãe". Eu chegava em casa correndo, tirava ele de cima dela. Não foi fácil. E ainda tem de ouvir agora que a família o abandonou?

Cristiano, lembrando do pai, que ficava violento quando bebia

Chegou uma hora em que a família... Pôxa, não dava mais para ficar dando murro na ponta de faca. A minha mãe era jovem, ela tinha muita coisa para viver ainda. Eu tenho a minha família, a minha vida... Claro, eu procurei ajudá-lo, mas aquele foco que você põe naquele assunto começa a pesar

Cristiano, sobre o que levou a família a colocar limites na relação

A minha mãe fazia questão de ir junto com os filhos nas internações. Muitas mulheres que tivessem passado por 5% do que minha mãe passou já teriam o largado. Minha mãe aguentou firme por muito tempo. Mesmo sabendo de tudo. Mesmo sendo humilhada e ofendida diariamente

Cristiano, sobre as agruras pelas quais a mãe passou no casamento

O melhor de Jorge Mendonça

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Jorge Mendonça era alcóolatra

Como a história contada por Cristiano revela, Jorge Mendonça sofria de alcoolismo. Foi internado pelo menos quatro vezes em clínicas de reabilitação após o fim da carreira. Como a história contada pelo filho Cristiano mostra, ele nunca se recuperou:

Ele conheceu a bebida em São Paulo, quando veio para o Palmeiras. Era aquela coisa social. Mas quando parou de jogar, precisava de alguma coisa para preencher um vazio. Ele não tinha pessoas para aconselhá-lo. Eu tinha 14 anos, minha mãe não completou os estudos. O álcool chegou primeiro.

Ele teve quatro internações em clínicas, só uma com ele sóbrio. Nas outras, teve que ser dopado. Em todas elas, com o mesmo histórico de violência. Quando eu tinha os meus 14 ou 15 anos, dormia com a minha mãe. Meu pai chegava de madrugada embriagado e sempre partia para cima dela. Era o álcool ali, porque quando ele estava sóbrio isso não acontecia. Eu tirei meu pai de cima da minha mãe algumas vezes. Eu não quero usar isso para denegri-lo, não é isso. Eu falo isso para você ver o quanto a minha mãe foi forte.

As internações não funcionaram. A pessoa precisa aceitar. Aceitar que tem um problema e que precisa de ajuda. Infelizmente, meu pai não conseguiu encontrar força para aceitar isso. Ele bebia ainda. Essa consciência só chegou um pouco tarde. Ele já vinha muito debilitado quando apareceu o convite do Guarani. Os órgãos dele já tinham sido consumidos pelo álcool.

Cristiano Mendonça, 41 anos, filho mais velho de Jorge Mendonça

A minha mãe conta que, na primeira vez em que meu pai bebeu, ele chorou. Chorou com medo que meu avô descobrisse

Fabiana, lembrando da história do primeiro gole de álcool do pai

Pai não foi ao casamento do filho por vergonha

Casei em 2005. Eu fui até o Guarani, onde ele trabalhava, para chamá-lo para a cerimônia. Ele recusou o convite. Não fiquei bravo. No fundo, sabia que ele estava em um momento de reconstrução. Tinha vergonha do que fez para a família. Não queria encarar aquele momento de felicidade

Cristiano, sobre a ausência do pai em seu casamento

Ele era muito resguardado. Lembrava de tudo aquilo que tinha passado, mas era uma coisa que, com o tempo, a gente conseguiria anular. A cada dia que passava, a gente tinha um acesso melhor. Um pouco antes do falecimento, eu conseguia sair para jantar, falar com ele. Ele estava baixando a guarda

Cristiano, sobre o processo de reaproximação com o pai

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Mulheres também abalaram relação com os filhos

Além do vício, as mulheres também foram um problema na relação de Jorge Mendonça com a família. Os filhos admitem que o pai era mulherengo e que a mãe, Gleice, aguentou muita coisa para ficar ao seu lado.

“Eu posso dizer que o casamento do meu pai com a minha mãe não foi sólido. Ele teve relacionamentos extraconjugais, isso é conhecido”, lembra Cristiano. “Sair com outras mulheres era frequente”, completa.

“Ele tinha vários casos extraconjugais. Inclusive, eu passei por uma situação meio constrangedora. Ou engraçada, vai saber... Sempre que vinha reportagem sobre meu pai, era com o ‘Boêmio Jorge Mendonça’. Um dia eu perguntei: ‘Pai, o que é boêmio?’ Ele disse que era uma pessoa muito boa”, lembra Fabiana, aos risos. “A gente estudava num colégio tradicional aqui em Campinas e, em uma redação sobre a família, escrevi que meu pai era uma pessoa muito boêmia. Foi a diretora que me explicou o que era. Foi a única vez que fui para a diretoria. Então, papai era boêmio”.

Quando você pergunta de casos extraconjugais, eu penso que era cultural da época. Ele não era o único. Mas meu pai sempre falava que o amor da vida dele sempre foi a minha mãe, embora tenha tido outras mulheres. Depois da minha mãe, meu pai nunca assumiu ninguém para a família. Ninguém. Eu ficava direto com ele. E não apresentou ninguém

Fabiana, sobre o lado mulherengo do pai

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Como os vícios feriram a família

A vida boêmia de Jorge Mendonça marcou seus filhos e deixou cicatrizes. Fabiana, a filha do meio, por exemplo, tinha pavor do futebol. “A maioria tem o sonho de ter um filho que jogue futebol. Quando o Rafael (seu filho de 11 anos) falava isso chegava a arrepiar. Logo pensava na questão da mulherada, na vida desregrada... Eu adorava quando papai fazia um gol, a torcida toda fanática por ele, a gente ia andando e o pessoal ia abraçando, beijando, e ele sempre correspondendo com todo o carinho. Mas é inerente do ser humano. Quando se fala de alguém, a primeira coisa que você lembra são as coisas ruins”, fala.

Já Cristiano não bebe álcool. “Trauma tem dois lados. Um negativo e um positivo. Eu consegui assimilar algumas coisas. Por exemplo: eu não bebo, não gosto. E por eu ter visto o que vi com o meu pai dentro de casa...”

O terceiro irmão, Júnior, foi pelo outro lado: nunca teve um relacionamento sério. “Ele não fala para mim, mas faz parte do trauma. De tudo que ele viu do relacionamento do meu pai com a minha mãe. Até hoje ele mora com a minha mãe. Cuida, fica sempre do lado dela. E isso é bom para gente. Mas ele não quer ninguém, nenhum relacionamento sério”, explica Cristiano.

Eu não deixava dar bola para o meu filho. Não deixava o menino jogar bola. Olha o tamanho da ignorância! E, quando ele começou a falar, quais foram as primeiras palavras? Mamãe, papai e bola! Foi no dia 5 de junho de 2006 e eu estava chorando porque o meu pai ia fazer aniversário no dia seguinte. Eu abri um pacote de sucrilhos e, na época, vinha uma de brinde. Eu estava brincando com meu filho e ele virou e falou sua terceira palavra: bola. Arrepiou até a alma

Fabiana, falando da ironia de sua relação com o futebol, lembrando do filho Rafael

Morreu sem ter casa

Quando Jorge Mendonça morreu, aos 51 anos, todo o dinheiro que juntou quando jogava futebol já tinha desaparecido. Ele chegou a ser dono de casas em São Paulo e no Recife, mas aos poucos foi perdendo o dinheiro em investimentos ruins.

“Ele era tão bom que chegava a ser ruim para ele mesmo. Algumas pessoas se aproveitaram da bondade e acabaram com ele”, conta Luciano Ramos, casado com Mariangela, irmã de Jorge. “Ele teve momentos de depressão, ficou desiludido com o futebol. Ele era muito humilde e tinha um coração de gigante, mas as pessoas se aproveitavam disso e ele perdeu muita coisa”.

“No final de carreira, como a maioria dos jogadores da época, meu pai acabou não se preparando para a aposentadoria. Ele teve alguns investimentos, mas não era muito. Ele não sabia administrar também e não nos trouxe uma segurança para o futuro, não soube se preparar para isso”, fala Cristiano.

Sem dinheiro, Jorge Mendonça morou, em seus últimos, na casa dos pais. Em 2006, sua mãe, dona Olga, já tinha morrido. Quem cuidou dele em seus últimos dias foi Roseane, sua irmã mais nova.

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Por que Jorge Mendonça é importante

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8 gols em um jogo

Em 1974, aos 20 anos, Jorge Mendonça já brilhava pelo Náutico. Em uma partida contra o Santo Amaro pelo Campeonato Pernambucano, marcou todos os gols dos 8 a 0 do Náutico. Dois anos depois, chegou ao Palmeiras, onde era um dos destaques do time campeão paulista de 76 e vice-campeão brasileiro de 1978.

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Zico na reserva em 78

Sua performance pelo Palmeiras o levou para a Copa do Mundo de 1978. O técnico Cláudio Coutinho tinha Zico como seu meia titular, mas a partir do terceiro jogo, Jorge Mendonça mudou a seleção. Com ele entre os 11, a seleção melhorou e o Brasil só não foi para a final por uma combinação de resultados entre Argentina e Peru.

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O recorde pelo Guarani

Em 1980, Jorge Mendonça foi para o Vasco. A passagem foi rápida e, no mesmo ano, ele voltou para São Paulo, para jogar no Guarani. Novamente de verde, virou o terceiro maior artilheiro em uma mesma edição do Paulistão. Foram 38 gols na edição de 1981 do torneio. Só Pelé e Fetiço, ambos do Santos, balançaram mais as redes.

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A frustração na Copa de 1982

Depois de brilhar na Copa da Argentina (foto) e, em 1981, quebrar o recorde de gols do Paulistão, todos esperavam ver Jorge Mendonça na Copa da Espanha. Uma briga com o técnico Telê Santana, ainda na época do Palmeiras, porém, impediu que ele jogasse seu segundo Mundial.

O problema também envolvia bebida: “O Jorge tinha problema de ácido úrico. Não podia ingerir álcool, tinha que fazer tudo regrado. Mas não fazia nada disso. E ácido úrico causa muita dor. Tinha época em que ele não conseguia treinar. Então, eu e o Telê nos reunimos uma vez. Queríamos que ele ficasse internado”, lembra Rosemiro, ex-lateral do Palmeiras e um dos melhores amigos de Jorge Mendonça. “O Telê até ameaçava: ‘Ô Jorge, você não vai jogar, você vai ter que parar, vai ter que fazer esse tratamento todo’”.

 Segundo o filho, Jorge admitiu problemas com Telê no aspecto tático. “Eu cansei de ouvir o meu pai falar sobre esse tema na roda de amigos e eu nunca o ouvi falando do Telê Santana com ódio, com rancor ou falta de respeito”. Segundo Cristiano, Jorge se recusou a jogar mais recuado, marcando.

Posso falar que sim, sem medo de errar, não ir à Copa de 1982 foi a maior frustração da vida dele. Ele estava voando. Eu mesmo nunca conversei com ele a respeito desse assunto. Mas ele não precisava falar. Era claro e a gente não falava disso para não ficar tocando no assunto. Foi uma grande frustração, sem dúvida

Cristiano, sobre a relação do pai com a Copa de 1982

Chegou uma época em que ele tinha restrição alimentar por causa do ácido úrico. Mas a minha mãe e a minha avó cozinhavam bem. Faziam rabada, todo esse tipo de comida que ele não podia comer. Ele comia mesmo assim. Não se privava de nada. Depois, claro, o ácido úrico atacava. Era mais no dedo mindinho e no joelho, que ficava igual a uma bola. Ele dizia que não estava com dor, mas que era 'gotoso' [risos]. Eu tenho a imagem que ele viveu como um Peter Pan, sem amadurecer. Era inocente, gostava muito de viver, de festas, de gente. Não tinha tanta seriedade

Fabiana, sobre o problema do pai com ácido úrico

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Quem ajudou Jorge Mendonça?

Uma das decepções da família de Jorge Mendonça com o futebol foi a falta de apoio ao pai logo após a sua aposentadoria. Ele só conseguiu trabalhar em um clube no fim de sua vida, quando já não tinha tanta saúde.

“Quando apareceu o convite do Guarani para participar das categorias de base ele recuperou a autoestima. Mas aí o meu pai já estava bem debilitado, com o organismo bem comprometido”, lembra Cristiano.

“Dos times que o meu pai passou, o Palmeiras ajudou? Não sei. Parece que não. O único time que realmente estendeu as mãos, da maneira que deveria estender, mesmo na fase de dependência do álcool e tudo mais, foi o Guarani”.

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