Organizadores do caos

Sem leis, MMA não é considerado esporte no Brasil e promotores fazem o que querem

Adriano Wilkson e Aiuri Rebello Do UOL, em São Paulo

#MMAsemlei

O MMA não é considerado um esporte pela lei brasileira. Há anos, o Congresso discute uma regulamentação para o esporte de luta mais popular do século 21, mas enquanto isso não acontece, a modalidade vive em um limbo, alheio à legislação.

Durante mais de um mês, o UOL Esporte entrevistou promotores, lutadores, técnicos e jornalistas especializados para criar reportagens sobre o mundo das lutas longe dos holofotes do UFC. A série #MMAsemlei terá quatro capítulos.

Na primeira parte, mostramos como os promotores tentam, a sua maneira, colocar ordem nesse caos. O segundo capítulo relata a experiência de um jornalista que nunca treinou (sexta, dia 27) e, mesmo assim, foi chamado para subir no octógono. A terceira parte conta a história de lutadores sonhadores (sábado, dia 28). O final traz relatos trágicos se quem se arriscou e pagou caro por isso (segunda, dia 30).

Você está preparado?

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

Entre o luxo e o lixo

Toda semana, dezenas de eventos de MMA acontecem no Brasil. É impossível saber quantos são ao certo. Não há uma organização centralizada por federações unificadas. As entidades que existem são concorrentes e, cada uma, chancela eventos com suas próprias regras.

Nessa miríade existe de tudo. Torneios sofisticados são transmitidos por canais de TV. Outros parecem mais circos mambembes. A maioria não tem médicos no local, não exige exames de sangue. São raríssimos os que têm algum controle antidoping. Alguns não contam nem com ambulância para emergências...

Esses eventos pagam pouco e lutadores sobem no octógono sem saber quanto ganharão: o valor depende de quantos ingressos os próprios atletas vendem. Ainda assim, os eventos acontecem. Há anos, o Congresso discute uma regulamentação.

Enquanto isso, o esporte vive no limbo. Nesta reportagem, conversamos com promotores que tentam, a sua maneira, colocar um pouco de ordem nesse caos. 

Reprodução Reprodução

"É meu e faço nele o que quiser"

No último dia 21 de outubro, Marcelo Brigadeiro, dono de um dos eventos mais importantes do Brasil, o Aspera FC, escreveu uma mensagem a seus 5 mil seguidores no Facebook. “Rapaziada deixa eu explicar uma coisa. O ASPERA FC é MEU evento, portanto eu faço com o mesmo o que eu quiser. Se eu quiser fazer lutas de MMA, muay thai, boxe, karatê, sambo, luta marajoara, boxe de anão do Zimbábue ou qualquer outra porra dentro do meu cage eu faço e pronto!"

A mensagem foi escrita depois que uma federação tentou vetar um evento que Brigadeiro queria organizar: uma luta de boxe dentro de um cage de MMA. “Eu não aceito que ninguém venha dizer como eu devo fazer as coisas”, explicou ele depois à reportagem. “O dinheiro é meu, o evento é meu, a igreja é minha, tem que rezar pela minha cartilha.”

Ele admitiu que no começo do Aspera FC, casava lutas desequilibradas para beneficiar os atletas de sua equipe. “Hoje estamos no Esporte Interativo e não dá mais para fazer isso.” Brigadeiro acredita que a falta de dinheiro e o amadorismo do MMA nacional são os problemas que o impedem de crescer. “Tem muita briguinha de ego por aqui”, afirmou ele, antes de criticar duramente Wallid Ismail, o presidente de outro dos grandes eventos nacionais, o Jungle Fight.

É um ser desprezível, asqueroso, que humilha os atletas que lutam no Jungle [Fight], que está em decadência total

Brigadeiro, sobre outro promotor, Wallid Ismail, de um evento concorrente

Reprodução Reprodução

"Os caras falam mil abobrinhas"

O amazonense Wallid Ismail expressou, obviamente, uma opinião diferente a respeito do Jungle Fight, torneio que comanda há 13 anos. “Aquele covarde [Marcelo Brigadeiro] diz que aquela merda do Aspera é o maior do Brasil. Olha os números e vê se o Jungle não é o maior”, disse ele. “Os caras falam mil abobrinhas!"

Em seguida enviou por e-mail à reportagem os números de audiência de seu torneio, transmitido pelo Bandsports. Depois telefonou e repetiu os mesmos números em viva voz. Alguns dias depois fez outra ligação só para ter certeza. “Desculpa ficar te incomodando”, disse ele. “Mas acho importante você entender os números. Você não concorda que somos maiores? Compare com os outros.”

O Jungle Fight tem índices de audiência maiores, o que é reconhecido pelos concorrentes. Wallid tem feito lobby junto ao Congresso para articular a regulamentação do MMA. Quer criar uma comissão que seja mais rígida e exija melhores condições aos eventos Brasil afora, mas que não seja tão rígida quanto a CABMMA, que chancela o UFC no Brasil.

Um evento desses o dono tem que ir preso. Sem médico não dá, tem que ter no mínimo dois. Se não tiver condição de arcar com os custos, se não consegue fazer um evento seguro, então não faça

Wallid, sobre eventos sem médico ou ambulância

Vinicius Andrade Vinicius Andrade

"Quem tem coragem de organizar evento no Brasil é herói"

O lutador Marco Rodrigues “Babuíno” dos Santos, de 40 anos, conta que começou a organizar o MMA Gold Fight para que os lutadores de sua academia tivessem onde competir. “Na época em que comecei os eventos maiores não abriam muito as portas para atletas jovens, então criei um para revelar talentos”, afirma Babuíno. “Hoje trazemos atletas de todo o país para lutar, é um dos maiores eventos do Brasil”, diz o criador do Gold Fight, que está na oitava edição.

Babuíno tenta diferenciar seu torneio com a mistura de apresentações musicais e as lutas no octógono. Em uma das edições recentes, houve um show do rapper Gabriel Pensador. O lutador cultiva um discurso de paz e amor em relação a outros eventos. “Os organizadores e as outras equipes e academias são nossos parceiros de trabalho”, afirma.

“Quem tem coragem de organizar um evento no Brasil hoje é herói”, diz Babuíno. “É muito caro, as empresas não se interessam em investir e se não dá público, rola um prejuízo difícil de pagar." Babuíno diz que um torneio como o Gold Fight não sai por menos de R$ 140 mil. “Tem muito evento por aí que não pede exame de sangue, não tem ambulância, socorrista, não paga bolsa para os atletas. Aqui não, a gente se esforça para fazer tudo certinho."

"Aqui tratamos o lutador com carinho"

Antes do MMA existia o vale-tudo

Hoje o MMA é um esporte consagrado, com regras definidas e torneios organizados ao redor do mundo. Antes existia o vale-tudo. Inspiradas nos combates do início do UFC nos Estados Unidos e do Pride japonês, as lutas caracterizavam-se pela frouxidão ou ausência completa de regras. Eram disputas obscuras, feitas em fundo de quintal, dentro de piscinas esvaziadas e até no meio de festas. O público podia fazer apostas.

Eventos clandestinos assim não são mais comuns, mas até recentemente eram muito populares no Brasil. Até 2008, quando foi proibido pelo Ministério Público após uma reportagem do jornal "Diário de S. Paulo", acontecia o maior e mais popular torneio clandestino de luta livre do Brasil, o Rio Heroes. Sem limite de tempo, categoria de peso ou uso de luvas, as lutas eram sanguinárias e só terminavam por nocaute, finalização ou desistência.

Atletas chegavam a lutar até três vezes na mesma noite para conquistar o "título". As lutas eram transmitidas por sites de apostas estrangeiros e as bolsas para os vencedores chegavam a R$ 10.000.

Lutas sanguinárias e regras banalizadas

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E os médicos?

A maioria dos eventos de MMA de pequeno e médio porte no Brasil não conta com um médico de plantão no local das lutas. O mais comum é haver apenas uma ambulância e socorristas. O motivo é o custo, considerado proibitivo pelos organizadores. A diária de um médico fica entre R$ 200 e R$ 1000, dependendo do porte do evento.

Em um dos torneios a que fomos, na região metropolitana de São Paulo, houve três nocautes técnicos na noite. Um dos nocauteados ficou desmaiado por vários minutos e teve de ser socorrido pelo cutman, que não é médico. Quando o lutador recobrou a consciência, ficou mais meia hora recebendo oxigênio e não chegou a ir ao hospital.

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

Outro atleta ficou com o rosto completamente ensanguentado. A socorrista, nervosa, ia e voltava da ambulância à plateia para fazer curativos. Não havia ambulatório.

Isso aqui não tá legal, mas não sou médica, como que vou avaliar se ele está bem ou não?”, reclamava ela.

Com insistência, convenceu o atleta a ser encaminhado para um hospital. A ambulância não voltou mais, mesmo faltando duas lutas para acabar o evento. No último combate, nem a socorrista estava mais presente.

Em outro torneio, apenas um socorrista e uma enfermeira foram chamados para cuidar dos atletas. "Acho errado eles não terem contratado um médico", disse o socorrista. Quando o ombro de um dos lutadores deslocou no meio de uma luta, quem o colocou no lugar foi um dos juízes.

Exercício ilegal de profissão

No caso de uma lesão, a única pessoa autorizada a fazer um diagnóstico é o médico. Um enfermeiro não pode fazer esse atendimento sob risco de incorrer no crime de exercício ilegal da profissão

Artur Acha, médico que atende lutadores em eventos de MMA, sobre os relatos de enfermeiros e socorristas trabalhando nos eventos

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

Exame de sangue é raro

Não é só a falta de estrutura que chama atenção. A falta de cuidado com os atletas também é grande. Como não existe legislação para definir os critérios de segurança para atletas, pouquíssimos promotores exigem exames básicos de sangue para doenças infectocontagiosas, fundamentais em um esporte no qual os atletas podem trocar sangue em algum momento.

É provável que muitos lutadores estejam se expondo ao risco de contrair hepatite ou HIV e nem saibam. Exames antidoping são mais raros que unicórnios. Não existe uma federação com força política suficiente para organizar uma lista básica de critérios técnicos e de segurança para um evento ocorrer.

A Comissão Atlética de MMA é a entidade mais organizada do país. São eles que chancelam as edições do UFC no Brasil. Mas organizadores de eventos menores não conseguem atender suas demandas. Alguns por considerá-las exigentes demais. Outros, por serem caras demais. Uma desculpa comum dos organizadores é que o custo de todos os exames inviabilizaria os eventos.

"O exame de sangue para doenças transmissíveis a gente exige porque é fundamental para a segurança dos atletas", afirma Marco "Babuíno”, lutador e técnico e promotor do Gold Fight. "Exame antidoping é muito complicado. Se fôssemos fazer, ia ficar muito caro para o evento e praticamente impossível para boa parte dos atletas pagarem, o que acabaria por exclui-los do evento por falta de dinheiro."

Buda Mendes/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images Buda Mendes/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images

Padrão UFC está longe

Para chancelar um evento, a CABMMA (Comissão Atlética Brasileira de Mixed Martial Arts) exige uma equipe da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem e pelo menos quatro médicos no local, além de ambulatório e duas ambulâncias tipo UTI móvel. Na prática, raríssimos conseguem atender a esses padrões. O UFC é um dos poucos. Outros franquias param, no máximo, no exame para hepatites e HIV. Organizadores dizem que não haveria MMA no Brasil se isso fosse obrigatório.

Entendemos que estes custos são um investimento e não uma despesa”, diz Rafael Favetti, o presidente da CABMMA.

Além de exame antidoping, a entidade pede uma gama de exames mais precisos, como eletrocardiogramas e raio-x de tórax. “Não ganhamos nenhum dinheiro com isso. Um atleta profissional deveria ter estes exames prontos sem mesmo ter uma luta marcada.”

Favetti, no entanto, afirma que não vê como negativo o modelo descentralizado e livre da organização do MMA brasileiro. “Quem organiza campeonatos são empresas privadas. Cabe ao fã escolher qual campeonato seguir. É um modelo calcado na representatividade e na livre escolha do fã.  Organizar um campeonato fora do sistema tradicional é disruptivo e super interessante”.

A visão do UFC

Isso é algo muito difícil de controlar para o UFC, mas a comissão tem tido uma forte presença no Brasil em termos de regulamentação. Nós sempre vamos apoiar todo tipo de regulamentação. É perigoso quando um evento de MMA não-regulamentado, seja amador, profissional ou pirata, coloca os atletas em risco. O UFC sempre dá todo apoio ao desenvolvimento de regulamentações que ajude a saúde e a situação de lutadores. Sempre estamos juntos de comissões e federações que ajudam o cenário do MMA.

Joe Carr

Joe Carr, vice-presidente internacional do UFC

Marcelo Camargo/Folhapress Marcelo Camargo/Folhapress

Deputados discutem lei há quatro anos

Em 2013 o então deputado federal Acelino Popó de Freitas criou uma subcomissão na Câmara para elaborar uma lei que regulamentasse a prática e os eventos de MMA no Brasil. A ideia era ouvir lutadores, organizadores, juízes, médicos e juristas para definir regras básicas, estrutura e exigências mínimas para a realização de eventos. De lá para cá quatro anos se passaram. Popó não se reelegeu, a subcomissão foi instaurada ou prorrogada quase uma dezena de vezes. Nada de concreto aconteceu.

Nossa ideia não é interferir nas regras da luta, que já existem e são mais ou menos as mesmas em todo o mundo. O que queremos é criar as regras mínimas para a realização destes torneios", diz o deputado federal Fábio Mitidieri.

Segundo Mitidieri, que foi presidente da subcomissão, o objetivo é tornar presença de ambulância e médicos uma exigência, assim como a realização de exames de sangue ou intervalos mínimos entre as lutas para os atletas.

Não há prazo nem previsão para a conclusão dos trabalhos. Até lá, o MMA segue sem ser considerado oficialmente um esporte no Brasil - ao contrário de outras artes marciais como jiu-jitsu, judô ou boxe. Hoje é uma atividade desenvolvida em um limbo jurídico entre o esporte e o entretenimento, e seus praticantes não têm amparo legal.

Veja todos os capítulos da série #MMAsemlei

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    Organizadores do caos

    Sem leis, MMA não é considerado esporte no Brasil e promotores fazem o que querem (você está aqui)

    Imagem: Reprodução
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    Vale todo mundo

    No MMA sem regulamentos, qualquer um pode subir ao octógono mesmo sem nunca ter treinado (a ser publicado na sexta)

    Imagem: Reprodução
  3. 3

    Dias de luta

    Para eles, o MMA não é só um esporte: é também a salvação (a ser publicado no sábado)

    Imagem: Aiuri Rebello/UOL
  4. 4

    Tragédia final

    Como vivem (e como morrem) as vítimas de um esporte sem lei no Brasil (a ser publicado na segunda)

    Imagem: Reprodução

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