Tragédia final

Como vivem (e como morrem) as vítimas de um esporte sem lei no Brasil

Adriano Wilkson e Aiuri Rebello Do UOL, em São Paulo

#MMAsemlei

O MMA não é considerado um esporte pela lei brasileira. Há anos, o Congresso discute uma regulamentação para o esporte de luta mais popular do século 21, mas enquanto isso não acontece, a modalidade vive em um limbo, alheio à legislação.

Durante mais de um mês, o UOL Esporte entrevistou promotores, lutadores, técnicos e jornalistas especializados para criar reportagens sobre o mundo das lutas longe dos holofotes do UFC. A série #MMAsemlei tem quatro capítulos.

Depois de mostrar como os promotores tentam, a sua maneira, colocar ordem no caos desse universo, relatar como um jornalista que nunca treinou e, mesmo assim, foi chamado para subir no octógono e contar a história de lutadores que sonham em sobressair, chegamos ao capítulo final dessa história. A partir de agora, conheça os relatos trágicas de quem se arriscou nesse ambiente e pagou caro por isso.

Você está preparado?

Qual é o limite?

Ossos não foram feitos para quebrar, o cérebro não foi feito para apagar e o sangue devia ficar sempre dentro do corpo, mas o MMA é um esporte cujo objetivo é causar esse tipo de dano em colegas de trabalho. Olhando de fora, parece uma atividade violenta demais.

Não é o que pensam treinadores, lutadores e promotores de torneios, para os quais regras definidas previamente e a ação dos juízes, que têm obrigação de parar lutas quando um atleta não pode mais se defender, garantem a segurança da maior parte dos confrontos.

Mesmo assim, o MMA brasileiro tem visto casos de lesões graves e até mortes que fazem o público se perguntar: até que ponto se trata de um esporte realmente seguro?

AFP PHOTO / Juan Mabromata AFP PHOTO / Juan Mabromata

Segurança relativa

O MMA é mais seguro que o boxe".

Essa é a frase mais comum entre os defensores do esporte de combate mais popular do século 21. Eles não parecem estar errados, ao menos de acordo com um estudo médico coordenado por Shelby Karpman, da Universidade de Alberta no Canadá. Entre 2003 e 2013, os pesquisadores analisaram as lesões de lutadores de boxe e MMA e descobriram duas coisas interessantes.

Primeiro, que 59,4% dos lutadores de MMA analisados sofreram algum tipo de lesão em suas lutas, mais do que os 49,8% dos boxeadores. Porém, no boxe 7,1% dos lutadores sofreram lesões graves que levaram à perda de consciência ou ao deslocamento de retina, por exemplo. Apenas 4,2% dos atletas de MMA passaram pelo mesmo.

Isso significa que sim, o lutador de MMA tende a se machucar mais em uma luta, mas essas lesões tendem a ser menos sérias do que no boxe. Ainda assim, dizer que o MMA é mais seguro que o boxe não significa dizer que o MMA é 100% seguro.

Por ser um esporte novo, ainda não existem estudos robustos que possam medir o risco de lutadores desenvolverem problemas de longo prazo e doenças como a ETC, encefalopatia traumática crônica, causada pela recorrência de pancadas na cabeça. A doença, relativamente comum em esportes como o boxe e o futebol americano, se assemelha ao mal de Alzheimer e pode causar amnésia, demência, problemas de comunicação e pensamentos suicidas, por exemplo.

Mais de 70 fraturas em lutas clandestinas

Feijão morreu na sauna

Leandro "Feijão" Souza tinha 26 anos e um punhado de lutas no currículo quando foi chamado para lutar na edição 43 do Shooto Brasil, em 2013. A morte de um lutador que participaria de um evento tão importante chamou a atenção para um dos grandes problemas do esporte hoje, com solução ainda incerta: a perda de peso acompanhada da desidratação drástica, rotina comum no mundo da luta. 

Segundo André Chatuba, um de seus professores, Feijão precisava perder 5 kg na semana da luta. Na véspera da pesagem, ainda não tinha conseguido cortar tudo. A saída era perder água em uma sauna do Rio de Janeiro. No meio do processo, desmaiou e foi levado por amigos a um hospital público. Não resistiu.

O exame do IML constatou que Feijão morreu por causa de um acidente vascular cerebral. Ele nunca tinha mostrado problemas desse tipo. Chatuba tem certeza que a perda de peso e a desidratação forçada desempenharam um papel relevante na morte do atleta.

Agora nós tomamos muito mais cuidado com esse processo. Não deixamos um atleta perder mais de 7 kg para uma luta e nem mais de 2 kg na desidratação. Assim, acho que temos uma margem de segurança para impedir que uma coisa dessas volte a acontecer

André Chatuba, professor de Feijão

O terror de todo lutador

William Lucas/inovafoto William Lucas/inovafoto

Tradição importada

Essa perda radical de peso é uma tradição importada do boxe, mas no MMA ela desafia os limites do corpo humano. Alguns atletas chegam a secar até 20 kg em duas semanas.

Alimentam-se muito pouco e treinam duro para cortar calorias. No final, passam por um processo de desidratação radical, tomam diuréticos, vão suar em saunas ou banheiras de água quente. Alguns chegam a desmaiar. Casos de morte como a de Feijão não são tão raras quanto você pode imaginar.

Mas por que eles fazem isso?

A lógica é a seguinte: o atleta precisa estar no peso da categoria apenas no dia da pesagem, sempre feita na véspera da luta. Um lutador cujo peso normal é 90kg, por exemplo, prefere se inscrever na categoria até 77kg. Ele vai emagrecer 13kg, passar pela pesagem, confirmar a luta e então recuperar, em um dia, o máximo de peso que conseguir.

Quanto mais pesado ficar entre a pesagem e a luta, mais vantagem terá no confronto. Qualquer quilo a mais faz diferença no octógono. O atleta mais pesado pode não ser tão ágil, mas tem golpes mais fortes e é mais difícil de derrubar. "Adoro lutar, mas a perda de peso é a única coisa que me faz pensar em desistir do MMA", disse o lutador Anderson Berinja sobre o sofrimento na véspera da pesagem.

Olhe as duas próximas fotos. São de Conor McGregor, a grande estrela atual do UFC. A primeira, no dia da pesagem. A segunda, no dia da luta. Entendeu a questão?

John Locher/AP John Locher/AP

Antes

John Locher/AP John Locher/AP

Depois

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

"Atrocidade bárbara"

O médico Artur Acha atende há 20 anos lutadores de MMA e já comandou a parte médica de diversos eventos no sul do país. Ele tem palavras duras contra o hábito de perda de peso radical antes das lutas: "Isso é uma atrocidade bárbara".

Os médicos recomendam que uma pessoa normal perca no máximo meio quilo por semana. A um atleta, perder mais de 3kg por mês já pode significar ultrapassar o limite do saudável. "Mais que isso ele já começa a colocar em risco o bom funcionamento do organismo", diz Acha.

Mas a principal fonte de preocupação é a desidratação. Como a recuperação de líquidos é mais fácil no período pós-pesagem, os atletas perdem muitos litros de água nas horas finais antes de subir na balança. "Isso pode levar a um caso grave de insuficiência renal", afirma o médico.

Esse não é único risco: nas reportagens anteriores, mostramos eventos sem a exigência de exames de sangue (correndo risco de contágio de vírus como o HIV e o da hepatite) ou sem médicos ou ambulâncias para fazer o atendimento médico.

Reprodução Reprodução

Morte no ringue

A segunda história fatal não aconteceu em um evento de MMA, mas em um de muay thai. No Brasil, a arte marcial tailandesa é o primeiro passo para quem quer chegar até o UFC. E a modalidade vive os mesmos problemas de falta de estrutura e regulamentação que o MMA.

Nosso personagem é Mário Guimarães, um rapaz simpático e brincalhão que se transformava em um monstro no ringue. Por isso, o treinador o batizou Hulk. Mário chegou a ganhar um campeonato de muay thai, mas sonhava mesmo era com a transição. "O MMA era o que dava dinheiro", disse o irmão, Carlos Eduardo.

Mário se preparou para aquela luta sem saber que seria a última. Perdeu peso, se despediu do irmão, aqueceu o corpo e, ao vestir o calção preto e dourado e as luvas vermelhas, tentou se transformar em monstro. Ele tinha 26 anos e um bom histórico de lutas. Mas naquele dia alguma coisa deu errado.

Uma joelhada no momento errado

No segundo assalto, Hulk levou uma joelhada na costela e foi ao chão pela última vez. Não havia médico na academia. Não havia ambulância. O árbitro não sabia o que fazer. Nem seu treinador, nem os outros lutadores, nem a esposa dele, que, desesperada, chorava ao lado do marido.

O lutador foi levado ao hospital. Quando Carlos Eduardo chegou, não teve mais dúvida: Hulk havia mesmo morrido.

Foi o pior dia da minha vida", disse o irmão.

Mas Carlos Eduardo não guarda mágoas, nem busca culpados. Hoje em dia, treina na mesma equipe que organizou o evento em que o irmão morreu.

"Não culpo ninguém; ele escolheu isso para ele..."

Veja todos os capítulos da série #MMAsemlei

  1. 1

    Organizadores do caos

    Sem leis, MMA não é considerado esporte no Brasil e promotores fazem o que querem

    Imagem: Reprodução
  2. 2

    Vale todo mundo

    No MMA sem regulamentos, qualquer um pode subir ao octógono mesmo sem nunca ter treinado

    Imagem: Reprodução
  3. 3

    Dias de luta

    Para eles, o MMA não é só um esporte: é também a salvação

    Imagem: Aiuri Rebello/UOL
  4. 4

    Tragédia final

    Como vivem (e como morrem) as vítimas de um esporte sem lei no Brasil (você está aqui)

    Imagem: Reprodução

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