Renascidas

Como um filme independente mudou uma geração de mães (e pais) e ajudou a desafiar a indústria da cesárea

Maurício Dehò Do UOL, em São Paulo
Elis Freitas/Divulgação

O nascimento de um filho é sempre um momento marcante na vida da família, principalmente da mulher. Mas em muitos casos a alegria pela chegada da nova vida vem acompanhada de violência e desrespeito.

Em 2013, o documentário "O Renascimento do Parto" mostrou o problema. Com uma linguagem simples, muitos depoimentos de especialistas e imagens de partos reais, o filme virou referência por revelar casos de violência obstétrica e expor mitos que levaram ao que foi chamado de indústria da cesárea, que transformaram muitas expectativas de nascimentos felizes em memórias de frustração e dor.

Nesta quinta, chega aos cinemas "O Renascimento do Parto 2", que intensifica o ar de denúncia e registra diversos momentos de violência em salas de parto pelo país.

Para falar sobre o problema, o UOL convidou algumas mulheres que passaram por essa violência e, após assistirem ao primeiro filme, lutaram por um parto mais humanizado. Essas são as suas histórias.

Elas contam as suas histórias

Relatos de violência

Lela Betrão/Arquivo Pessoal

Luciana Carla Ferreira, de 39 anos, teve um primeiro parto normal, mas sofreu violência obstétrica. Para dar à luz Giulia, hoje com 5 anos, enfrentou uma gestação de risco, por conta de miomas. Apesar de querer parto normal, tinha recomendação de sua obstetra de fazer uma cesárea, o que acabou revertendo com uma plantonista, quando já estava em trabalho de parto.

Mesmo que tenha vindo pela via que queria, Luciana sentiu na pele o desrespeito e a violência de técnicas protocolares nos hospitais. Teve uma episiotomia (corte na vagina para, em tese, facilitar a saída do bebê) feita sem consulta e chegou a ser esquecida na sala de parto, quando se recuperava de uma hemorragia que a deixou desmaiada.

Na hora que o bebê saiu, eu já senti, como se tivesse saindo também do meu corpo. Ela (a médica) tinha me cortado. Ela tinha feito uma episiotomia em mim, não perguntou se podia fazer essa episio. Ela simplesmente me cortou. 

Luciana deixou o parto achando que o problema era com seu corpo e sofreu de depressão pós parto. "Nunca tinha ouvido falar sobre violência obstétrica. Quando eu assisti ao filme eu entendi o que era o sistema de parto no Brasil e tudo aquilo que aconteceu comigo. Fui só um número na estatística".

Para o segundo filho, Kalel, hoje com 1 ano, ela teve uma equipe humanizada e conseguiu um parto como queria, ao lado do marido, André Nascimento. "Na primeira gestação foi tudo no susto. Nunca tive preparo, nunca busquei informação. É triste, mas hoje tenho orgulho de falar, porque eu podia estar no automático até hoje, podia não ter buscado a paternidade que exerço hoje. Precisou vir o Kalel para eu virar um pai melhor para a Giulia", diz Nascimento.

Arquivo Pessoal

Daniela Rabelo teve a sua primeira filha em uma cesárea agendada, antes das festas de fim de ano e na 38ª semana de gestação em um risco, então desconhecido por ela, de prematuridade. Sem saber que poderia aguardar até a 42ª semana, ela aceitou com naturalidade a sugestão do médico de agendar para 20 de dezembro a cesárea de Laura, hoje com 7 anos.

Quando soube dos riscos que a filha tinha em nascer antes de dar o sinal de que estava pronta -com o início do trabalho de parto-, Daniela passou a buscar informações para, caso engravidasse novamente, buscasse um parto normal. 

Nunca senti culpa, porque não sabia que precisava lutar tanto para ter uma informação de qualidade. Quando soube que uma cesárea eletiva na semana 38 era um risco de prematuridade, e de ter os pulmões não amadurecidos totalmente, fiquei preocupada.

Foi quando ficou sabendo de o "O Renascimento do Parto". "Eu fiquei absolutamente chocada com aquela avalanche de informações. Pedi para meu marido assistir também e ele terminou chorando. Falei: 'É isso, a gente achou o que buscava'. O filme tem muita informação. E ele tem nome, tem rosto, tem bebês, tem a cara da informação. Ele personifica tudo aquilo que a gente quer saber".

Helena, a segunda filha, hoje tem três anos e veio em um parto humanizado, que começou em casa e acabou em um hospital, devido ao cansaço da mãe. "Eu não sou defensora de parto hospitalar ou domiciliar. Sou defensora do parto que for mais confortável para a mulher. E foi lindo dessa forma. Eu tive duas pequenas intervenções pontuais e a Helena nasceu num parto muito bonito e muito humano". 

A história de Daniela é semelhante à de Lorena Francisquini, 34, que teve uma cesárea desnecessária no primeiro filho, conseguiu um parto natural no segundo e hoje trabalha na área, como doula e fotógrafa de partos, além de cursar obstetrícia na USP.

Carla Raiter/Arquivo Pessoal

Lorena, na primeira gravidez, não tinha grandes planos para o parto. No decorrer da gestação, aprendeu e demonstrou a preferência pelo parto normal. Seu obstetra à época não aceitou acompanhar o parto, previsto para 2 de janeiro. Alegou que um ultrassom mostrou que o bebê estava "muito grande". "Ele disse: 'Se acontecer alguma coisa, se entrar em trabalho de parto, você pode morrer'".

Sem ele, Lorena confiou nos plantonistas de uma maternidade, em São Paulo, mas foi levada a uma cesárea, também sob ameaças vagas, já que a médica afirmou que sua dilatação havia diminuído. Além do cansaço e da cesárea indesejada, a distância da sua filha, Lurdes Helena - hoje com 6 anos - e o abandono na sala de recuperação a entristeceram, mas já colocaram em sua cabeça que um segundo parto seria diferente.

O filme foi um divisor de águas. Ver aquelas violências, aquelas mentiras... Assistia e me via naquelas histórias. O primeiro filme deveria fazer parte da videografia básica para a mulher que vai gestar. Mesmo que escolha cesariana conscientemente. Ele mostra como o sistema é multifatorial: a formação médica, o sistema privado versus a precarização do sistema público, o patriarcado mexendo com o corpo da mulheres. É um be-a-bá muito sutil.

Lorena tentou um parto domiciliar em sua segunda gravidez, mas optou pela transferência ao hospital. "A diferença foi que me foram expostas as opções". Pouco depois, Otávio, hoje com 4 anos, nasceu e foi direto para o seu colo, como prega a "cartilha" humanizada.

Elis Freitas/Divulgação Elis Freitas/Divulgação
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De criação despretensiosa a referência

"O Renascimento do Parto" surgiu quando o cineasta Eduardo Chauvet, sua mulher à época, a doula Érica de Paula, e um amigo tiveram em Brasília a ideia de fazer um documentário sobre o tema. O amigo desistiu, mas Eduardo e Érica foram em frente. Na raça, assinaram quase toda a produção e estrearam em três salas, com ajuda de um crowdfunding para bancar a distribuição.

O burburinho em torno do filme aumentou e o fez a chegar a cerca de 50 cidades. Agora, com "O Renascimento do Parto 2", serão 35 cidades apenas para estreia, incluindo São Paulo, Salvador, Rio, Fortaleza, Recife e Manaus. 

"Acabei me reinventando, renascendo também por contar essas histórias. Para mim, foi muito impactante. Não tinha a menor ideia de que ia causar o que causou, de virar essa ferramenta de transformação social. Pensamos: 'Peraí, vamos chacoalhar um pouquinho, vamos pensar um pouco no que está por trás de tanta cesárea'."

Eduardo diz que a base foi colocar tudo sob o microscópio das evidências científicas, algo que nos partos feitos tradicionalmente se perdeu, trocado por protocolos nem sempre necessários nos hospitais. O primeiro filme se baseou principalmente em dar um "bê-a-bá" para os iniciantes no tema. Agora a violência obstétrica é o tema.

Não tem como amenizar. A gente mostra como uma denúncia mesmo. Tem gente que fala que não existe (violência obstétrica). Se não existe, assiste e vem falar comigo depois. Essa opção de mostrar eu nem tive, eu tinha que mostrar. Para ficar claro para as pessoas entenderem seus direitos, e ao que a mulher está sujeita ao entrar num hospital.

O documentário agora aborda exemplos de sucesso no SUS, como o Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, e também temas como partos normais de gêmeos -- como o de Fernanda Lima -- e partos pélvicos (quando o bebê está "sentado"). 

Um dos cuidados é para não demonizar as cesáreas, como explica a obstetriz Ana Cristina Duarte, entrevistada no primeiro filme. "O parto natural é um desejo, mas é possível haver intercorrências e mesmo que a gente evite os procedimentos, é importante que eles estejam disponíveis e as equipes bem treinadas para seu uso diante da necessidade. Isso inclui a cesariana, que quando necessária pode salvar vidas."

A luta do movimento não é obrigar ninguém a fazer nada. A escolha é da mulher. O movimento briga por quem quer parir e não consegue. Sempre surge algum problema e, aos 47 minutos do segundo tempo, começa aquele bando de histórias. Só 10% a 15% dos nascimentos necessitam de cesárea. Mas chegamos a ter 90% ou 95% de cesáreas em alguns hospitais. Então, tem algo de errado aí.

Eduardo Chauvet , diretor do documentário

Os famosos

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Márcio Garcia

Ambos os filmes apostam em alguns famosos para atrair o público. No primeiro, Márcio Garcia e sua mulher, Andréa Santa Rosa, contam como tiveram uma cesárea desnecessária no primeiro nascimento e se redescobriram para o segundo.

Divulgação Divulgação

Fernanda Lima

No segundo filme, é Fernanda Lima quem está na "cota de celebridades". Ela é exemplo de um parto normal de gêmeos, feito com informação e respeito à mãe e aos bebês e participação ativa do pai, Rodrigo Hilbert.

Veja o trailer

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Trilogia: Terceiro filme a caminho

Além desta segunda parte, Chauvet vem trabalhando com o fechamento da trilogia de "O Renascimento do Parto", já em setembro de 2018 Entre os temas, está o parto orgásmico, uma referência a mulheres que sentem prazer na hora do parto. O tema ficou famoso ao ser tratado no documentário norte-americano "Orgasmic Birth: The Best-Kept Secret", de 2008.

O filme ainda vai tratar de outros casos dramáticos, como o de uma mulher que sofreu violência obstétrica, desistiu de ter mais filhos, mas ficou grávida novamente após ver o documentário.

Números do parto no Brasil

  • 70%

    Das brasileiras começam a gestação preferindo o parto normal.

  • 15%

    É a incidência ideal de cesáreas, se feitas apenas quando necessário.

  • 57%

    Foi a ser a taxa de cesáreas no país em 2013. Nos hospitais particulares, o número atingiu 84,4%.

  • 8 hospitais

    Entre 2009 e 2014, 8 hospitais particulares tinham mais de 90% de cesarianas realizadas.

  • 1,5%

    Entre 2013 e 2016, após programas voltados ao tema, a taxa de cesáreas no Brasil diminuiu para 55,5%.

  • 10º

    O Brasil é o décimo país com maior número de nascimentos prematuros. Cesáreas eletivas aumentam o risco.

Divulgação Divulgação

A nova (velha) forma de parir

Nos últimos anos, tanto a Organização Mundial de Saúde quanto o Ministério da Saúde brasileiro começaram um movimento para diminuir o número de cesáreas, principalmente de forma a impedir sua realização de forma desnecessária. Enquanto 70% das brasileiras iniciam sua gestação querendo um parto normal, segundo a Fiocruz, menos da metade consegue chegar nele. Na rede privada, chegou-se a ter, em 2013, 84,4% de cesarianas. 

Vendida como forma mais segura, a cesárea, na verdade, triplica riscos para mãe e bebê quando feitas desnecessariamente. É o caso das cesáreas eletivas, como a de Daniela Rabelo e seu parto na 38ª semana. Hoje, a regra é aguardar pelo menos até a 39ª.

E não é só. Uma bandeira de quem defende o parto humanizado é contra a violência obstétrica e condutas desrespeitosas em relação às mulheres. Por muito tempo realizar a episiotomia era padrão, mesmo sem necessidade comprovada, assim como o uso da manobra de Kristeller, empurrando a barriga da gestante - outro processo doloroso. O uso de ocitocina artificial, restrição de movimento e jejum são outros costumes combatidos.

A obstetriz Ana Cristina Duarte alia a isso outros fatores que precisam ser atingidos: “Precisamos de inclusão das enfermeiras obstétricas e obstetrizes na assistência ao parto de forma efetiva, capacitação das equipes de plantonistas e atualização das regras dos hospitais privados. E também acesso a doula de escolha da mulher, entrada do acompanhante de livre escolha e maior inclusão de enfermeiras obstetras e obstetrizes na assistência, deixando o médico voltado para o alto risco e complicações."

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