35 anos de fúria

O som e as tretas do punk brasileiro recontadas por quem estava lá

Leonardo Rodrigues Do UOL, em São Paulo
Rui Mendes/Reprodução/Carla Borges Pinto/Arte UOL

O ano era 1982. O Brasil enfrentava crise da dívida externa e a iminência de racionamento. A seleção naufragava na Copa do Mundo da Espanha, e a ditadura militar, embora em processo de abertura, ainda solapava direitos e liberdades individuais. Quem mais sofria era quem menos tinha grana.

Foi nesse cenário caótico que o movimento punk eclodiu oficialmente no país, com alguns anos de delay do que já vinha acontecendo lá fora. A anarquia brasileira caminhou a partir das periferias, engendrada por jovens que viam no rock mais básico a mais contundente forma de expressão pessoal e política.

O epicentro da cena era São Paulo, que abrigou o primeiro grande festival do punk brasileiro, o Começo do Fim do Mundo, que naquele ano reuniu 20 bandas independentes no Sesc Pompeia, região de alto poder econômico da capital. Ali, grupos como Inocentes, Ratos de Porão, Olho Seco e Lixomania acenavam ao futuro.

E são esses personagens que recontam, aqui, a história de um dos mais importantes movimentos da nossa música jovem, que influenciou, entre outros sons, no nascimento do rock oitentista e no discurso feroz de gêneros como o rap.

"Eu sou boy": o início de tudo

Clemente (Restos de Nada/Inocentes): O punk, como movimento, veio das periferias de São Paulo. Uma molecada de 13, 14, 15 anos, tudo fodido. A gente, quando tinha emprego, era de office boy. Todo mundo curtia rock, mas estava de saco cheio do rock vigente, que era muito chato. O progressivo tinha desconectado o rock de suas raízes de rebeldia, das músicas de dois minutos para agitar, de falar o que o jovem das ruas sentiam.

Ariel (Restos de Nada/Inocentes): A gente era delinquente juvenil mesmo. E foi o punk que descobriu a gente, não o contrário. Na minha região, na Vila Carolina [bairro da zona norte de São Paulo], a gente já era punk antes de isso ter o nome. Tinha uns 40 punks ali e milhares de outros espalhados nas periferias. Tinha muitos na Freguesia do Ó, no bairro do Limão, mas tudo começou nas vilas Palmeiras e Carolina. Daí veio o pessoal que formou o Restos de Nada, o Condutores de Cadáveres, os Inocentes. O Cólera também vinha ensaiar por aqui.

João Gordo (Ratos de Porão): O Kid Kinil foi o grande pioneiro. Ele era mais velho que a gente e foi o primeiro a ter mídia, programa de rádio. Ele ia para Inglaterra em 1978 e trazia discos que ele tocava na rádio Excelsior. Aí quando saiu o disco da revista "Pop", chamado "A Revista Pop Apresenta o Punk Rock" [1977], com Sex Pistols, Ramones, aí acabou, velho. O pessoal foi aparecendo: o Fabião, o Clemente, o Ariel, O Redson. A galera pensante da época.

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Carla Borges Pinto/Arte UOL Carla Borges Pinto/Arte UOL

Visual meio inglês, meio americano

Alê (Lixomania): Eu nunca pude ter visual agressivo por causa do meu trabalho de boy no centro. É uma contradição. Embora nosso grande ícone fossem os Ramones, e eles eram todos cabeludos, no Brasil não se aceitava cabelo comprido no punk. Não sei por quê. Tive que cortar o meu. A gente se vestia como os americanos, mas, por algum motivo, era preciso ter cabelo curto como o dos ingleses.

Clemente: Teve um momento em que a gente parou de ouvir Led Zeppelin e Deep Purple, e começou a pegar MC5, Iggy and the Stooges, New York Dolls e muito rock dos anos 1950. E o uniforme dessa galera era jeans, jaqueta de couro, camiseta e tênis. Era como a gente se vestia. Só depois, na segunda geração, a do Exploited [primeira banda a adotar o visual punk extremo] e tal, é que começou a aparecer o pessoal de moicano.

Rui Mendes Rui Mendes

Atitude e gambiarras

Ariel: A gente começou a formar as bandas sem saber tocar. E, para comprar uma guitarra, uma Giannini que fosse, era muito difícil. A gente tinha Tonante, violão Rei. E, naquela época, não havia casa de show, nós inventamos lugares. Era show em sociedade de amigos de bairro, em salão, em praça puxando 'gato' de poste.

Clemente: Na minha turma tinha uns 20 caras, e a gente tinha a casa do Mustá, que era como uma sede da galera. Cada um comprava um disco e deixava lá, e o resto da turma ia gravando. Eu, por anos, fiquei conhecido como único cara que tinha o primeiro do The Cure, que era uma banda alternativa na época.

Fraudando os Correios

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As lojas de disco

Fábio Sampaio (Olho Seco e Punk Rock Discos): Eu estava sem grana e resolvi vender uns discos na Wop Bop, que ficava no terceiro andar da Galeria do Rock. Eles não pagaram nada, eu desci de escada e vi um anúncio de "aluga-se". Falei: "É aqui que vou abrir minha loja". Foi em 1979. Coloquei o nome do que eu estava escutando na época: Punk Rock Discos. O Kid Vinil vinha pegar discos para usar no programa dele. Eu tinha um cara que mandava as novidades importadas. Ali também se fazia fanzine. Era o centro de tudo. Depois tivemos a ideia de gravar um compacto com o Olho Seco, mas pensamos: "Por que não juntar todo mundo num disco só?". Foi aí que nasceu o LP "Grito Suburbano" [1982], considerado o marco zero do punk.

Alê: Os discos começaram a vir pela Wop Bop, primeira loja de discos da galeria. Mas quando o Fábio resolveu abrir a Punk Rock Discos, a coisa tomou outra proporção. A gente começou a conhecer muito material. Por ser no centro, o movimento acabou pegando gente de tudo quanto é lugar de São Paulo. Foi um up fora do normal para o movimento. Muitas bandas começaram a se formar ali.

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Anarquia via fita K7

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Fanzines: a voz dos jovens

Clemente: A gente começou a produzir nossos próprios zines em 1981, 1982. Li o primeiro "Factor Zero", que é considerado o primeiro fanzine punk no Brasil. Mas tinham outros: "Vix-Punk", "Alerta Punk", "1999". Eles eram vendidos nos shows e na Punk Rock Discos. A gente mesmo fez um, que era o "SP Punk". Não existia movimento antes dos zines.

Ariel: Se tinha uma revista velha, uma ideia na cabeça e uma folha em branco, a gente fazia um fanzine. Recortava, montava, fazia uma puta arte. Era a nossa voz. E tinha muita informação que a gente conseguia trocando material com o pessoal da Europa, da Finlândia. E quando o [jornalista] Luiz Fernando Emediato escreveu aquelas reportagens sobre a geração abandonada, a gente usou o "SP Punk" para se retratar.

Val (Cólera): O pessoal que conseguia tirar xerox no trabalho, tirava. E era muito interessante essa cultura porque a gente não tinha acesso a revistas de música e a quase nada. Praticamente só havia a revista "Som Pop". O fanzine era legal porque trazia sempre o que o cara pensava, além de entrevistas, o cara comentando os novos discos daqui e de fora. Era interessante.

Discos emblemáticos do punk paulistano

  • Grito Suburbano (1982)

    Lançado pela loja/selo Punk Rock Discos, reuniu faixas de três importantes bandas da cena: Olho Seco, Inocentes e Cólera. É a pedra fundamental do punk brasileiro.

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  • Violência e Sobrevivência (1982)

    Com seis faixas e dez intensos minutos de duração, o EP do Lixomania é considerado o primeiro disco individual de uma banda do nosso punk rock.

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  • SUB (1983)

    Obra do selo Estúdios Vermelhos, do vocalista Redson (Cólera), a influente coletânea de capa "vermelho-comunista" reuniu Cólera, Ratos de Porão, Psykóze e Fogo Cruzado.

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  • Crucificados pelo Sistema (1984)

    Clássico de estreia do Ratos de Porão, já com forte influência do hardcore e manifestos como "Agressão/Repressão" e a faixa-título.

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  • Mais Podres do que Nunca (1985)

    Produzida por Redson, a estreia dos Garotos Podres é um dos mais elogiados discos da cena. Destaque para as afrontosas "Papai Noel Filho da Puta" e "Maldita Polícia".

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  • Ataque Sonoro (1985)

    A coletânea do selo Ataque Frontal juntou um exército de bandas: Armagedom, Auschwitz, Cólera, Desordeiros, Espermogramix, Garotos Podres, Ratos de Porão, entre outras.

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  • Pânico em SP (1986)

    Gravado no estúdio Mosh, em São Paulo, o mini-LP dos Inocentes marcou época por ser o primeiro disco de um grupo punk brasileiro lançado por uma grande gravadora, a Warner.

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  • Pela Paz em Todo Mundo (1986)

    Politizado, o segundo álbum do Cólera conseguiu o feito de vender mais 80 mil cópias na época, com porradas como "Direitos Humanos" e "Não Fome!"

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São Paulo, berço do punk brasileiro?

Clemente: O punk não nasceu só em São Paulo. O pessoal estava montando banda no Brasil inteiro. O Marcelo Nova estava ouvindo na Bahia. O pessoal de Brasília ouvia. O Wander Wildner ouvia no Rio Grande do Sul. Tinha a banda do Lixo em Minas Gerais. Mas, quando se fala em movimento punk, o lugar que reunia condições para ter um movimento era a maior cidade do Brasil, São Paulo.

Alê: Não havia muita comunicação entre as cenas, mas acho que saber onde tudo começou é coisa irrelevante. Dizem que foi em Brasília, com a turma do Renato Russo, que os primeiros discos chegaram por lá. Isso pode, sim, ter ocorrido, mas não significa que eles criaram o movimento. O movimento, sem dúvida, criou corpo em São Paulo.

Francisco I. Sucar/Folhapress Francisco I. Sucar/Folhapress

Censura e repressão

Val: A repressão policial era enorme. Tem o caso do show no salão Luso-Brasileiro, no Bom Retiro, que a polícia invadiu e colocou homens para um lado e mulheres para o outro. Todo mundo teve que tirar coturno, jaqueta e jogar na pilha. Bateram na gente. Foi pesado. Eles entravam em todos os shows.

Ariel: Censuraram todas as músicas do primeiro disco dos Inocentes. Tivemos que maquiar as letras para poder lançar como EP depois. Era assim com todas as bandas. E você não podia andar na rua porque o visual atraía polícia que nem mosca. Naquela época, se você não tinha carteira de trabalho registrada, podia ir preso por vadiagem. 

Alê: Uma vez o Lixomania foi tocar no programa "Fábrica do Som", da TV Cultura, e a gente teve que entregar o setlist antes para aprovarem. Disseram que a gente não podia tocar a música "Presidente", que diz que o presidente não é gente. Isso abriu o nosso apetite, né? Tocamos no fim, e, segundo meus irmãos, a TV Cultura cortou a transmissão no meio. Nunca consegui recuperar a fita. Dizem que queimou no incêndio.

Marcelo Justo/Montagem Marcelo Justo/Montagem

Nosso "Woodstock punk"

Fábio: O Antônio Bivar [escritor e organizador do festival Começo do Fim do Mundo] apareceu na Punk Rock Discos e ficou olhando o pessoal. "Pô, aqui também tem punk, né?". Ele foi se entrosando rápido e correu atrás de tudo para organizar o evento. Tinha um amigo meu que tinha aparelhagem boa para a época e levou tudo para lá. O Callegari, dos Inocentes, e a Meiri Martins, que era namorada dele, também ajudaram muito. Foi tudo nesse esquema colaborativo.

Alê: Eu não acreditava que o festival lotaria a calçada do Sesc Pompeia. E lotou. Lembro de quando subimos no palco e vimos uma massa compacta do palco até onde hoje é a área de alimentação. Foi demais. Não julgo como um "Woodstock punk" por causa da proporção. Mas, para um movimento que não tinha mídia, concentrar 3.000 pessoas, por meio de fanzine e gravação independente? Foi surreal.

Val: No final, a polícia chegou e o caramba, mas nada disso tirou a grandeza do evento. Foi um marco, um festival com as 20 principais bandas da cidade tocando em dois dias numa área nobre de São Paulo. O negócio funcionou bem no início, mas a vizinhança ficou apavorada com tanto punk. Acharam que seriam roubados ou algo assim, e chamaram até tropa de choque. Ninguém sabia que existia tanto punk.

Rui Mendes Rui Mendes

Briga de gangues

Ariel: Tudo começou com rivalidade de turmas de bairro. Antes, era uma treta mais juvenil, de brigar na mão, com uma paulada aqui e ali. Não tinha arma. A partir de 1982, 1983, quando começaram a se delimitar os grupos fascistas, aí a coisa ficou tensa. Chegou a ter morte, teve neguinho que ficou aleijado.

João Gordo: Era coisa de ganguismo, inspirada no filme "Warriors". Você podia pegar o metrô no bairro de Santana e ir até a estação Jabaquara. Aí, podia entrar uma gangue que não gostava de você e você se foder. Era todo mundo contra todo mundo. Punk contra punk. Punk contra careca. Metal contra careca. Metal contra metal. Todo mundo se odiando. Isso acabou com o movimento, que só retornou anos depois com uma nova geração.

Alê: Não digo que isso acabou com o movimento, mas deu o início de um hiato. A maior rivalidade era entre São Paulo e o ABC [Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul], porque os caras do ABC falavam que andavam de trem e trabalhavam de metalúrgico, e os da cidade, que eram office boy e andavam de ônibus, seriam menos punks que eles. A gente ia nos shows já sabendo que teria conflito no final. Se tinha um show punk num lugar, seria a última vez ali.

Clemente: As brigas tinham dado uma trégua em 1982, mas depois voltou tudo de novo. O problema eram as brigas institucionalizadas. Carecas do subúrbio versus punks de São Paulo. Eram 300 caras de um lado, 300 de outro, tipo torcida organizada. Aí o Cólera e o Olho Seco pararam de tocar, o Ratos de Porão foi para o metal, nós [dos Inocentes] começamos a fazer pós-punk e assinamos com a Warner. Pouquíssimos conseguiram gravadora. A cena se dispersou.

Bruno Santos/Folhapress

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Rui Mendes Rui Mendes

O que ficou do movimento

Ariel: O maior legado do punk nacional é "o faça você mesmo". Você não imaginava pegar um instrumento e sair tocando. Com três acordes, o punk possibilitou que muitos caras começassem na música, gravando de forma independente, do jeito que queria. Antes, se você não entrasse em um conservatório e, depois, não conseguisse assinar com gravadora, era praticamente impossível. Nós democratizamos a música.

Clemente: O punk ainda está vivo na música e nas periferias. Mas acho que, hoje em dia, de certa forma, o rap cumpre uma espécie de função de legado do punk, do que ele representou naquele momento. Porque o rap é o estilo mais politizado e que há décadas vem forte da periferia, como a gente vinha. As atitudes contestadoras, realistas, políticas, têm suas semelhanças.

Alê: Uma coisa eu não tenho dúvida: aquela explosão comercial do rock dos anos 1980, com o sucesso de Paralamas, Titãs, Ultraje, Plebe Rude, Legião, não existiria sem os punks. O nosso movimento foi mudando, se transformando, mas fomos nós quem abrimos espaço para o rock chegar na mídia, na televisão, no rádio, durante os anos 1980 e depois nos anos 1990. O rock brasileiro deve muito ao punk.

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