Gal ainda é fatal

Musa do desbunde, símbolo sexual, mãe coruja: a mulher transgressora que ela foi e ainda é aos 72 anos

Tiago Dias Do UOL, em São Paulo
Lucas Lima/UOL

O olhar é penetrante. A boca pintada entrega um sorriso largo. O nome dela é Gal e, nos últimos 50 anos, ela incomodou a ditadura com um tapa-sexo, revolucionou a música e o comportamento de toda uma geração, e ainda explorou a sensualidade quando o nu feminino não era afamado.

É por isso que, em tempos de campanhas contra nudez na arte, ela deixa escapar uma gargalhada: "Imagina, se fosse hoje eu seria presa".

Já são cinco décadas de transgressões da cantora de 72 anos. A fase mãezona, que chegou tardiamente com a adoção de Gabriel, 12, pode até enganar. Na cabeça, Gal não envelheceu: faz o chifrinho de heavy metal na capa do novo CD e DVD, "Estratosférica Ao Vivo", se despede da reportagem com um tapa na mão e promete uma canção inédita de Marília Mendonça para o próximo disco --mais um renascimento que ela trama em segredo.

Eu nunca imaginei que com essa idade eu estaria fazendo o que estou fazendo, com um público jovem e a carreira ainda mutante aos 72 anos. Eu não imaginava isso quando comecei, aos 22.

Força estranha

A baiana nasceu tímida e com o dom misteriosamente apurado. Sua mãe, Dona Mariah, passou os nove meses de gestação cantando. Queria que o rebento viesse ao mundo musicista. Deu certo. O instrumento natural que Gal dominou foi aprimorado na cozinha. Passava horas com uma panela grande na cabeça experimentando, no eco, até onde sua voz podia alcançar.

"Eu queria ser cantora e sabia que eu iria ser. Tudo que um cantor precisa eu sabia intuitivamente, respiração, diafragma. Nunca estudei canto. Eu vim ao mundo para fazer isso", diz.

Aos 18 anos já tinha essa certeza, quando teve a sorte de cantar para João Gilberto. Depois de uma longa audição informal em uma calçada na Barra Avenida, em Salvador, o mestre da bossa nova falou sem rodeios: "Você é a maior cantora do Brasil". Mas foi com a Tropicália --que, há 50 anos, jogou uma bomba de irreverência e contracultura em tempos obscuros -- que Gal alcançou o canto total, legal, global.

Com "Divino, Maravilhoso", de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a cantora renasceu como um avatar hippie. Cabelo black power, roupas coloridas e o canto rasgado, que deixava o refrão da canção ainda mais destemido: "É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte".

Era a primeira de muitas rupturas que fez ao longo dos anos. "Estava totalmente engajada naquela postura revolucionária, mas também foi uma revolução pessoal minha", lembra.

Eu usei o grito muitas vezes como expressão. Percebi assim que sou corajosa, não tenho medo, eu enfrento as coisas. Eu acho que, quando você arrisca e quando você se joga nas coisas sem medo, você se transforma. O período tropicalista foi isso.

Nas ruas, o visual deixava as pessoas agressivas:

Eu me vestia como ia para o palco. Me chamavam de piolhenta, mandavam eu tomar banho.

"Só não trepava na praia porque eu tinha vergonha"

Arte é arte, não tem como associar à pedofilia. Essa censura é absurda vindo de cima [institucional] ou debaixo [população]. O pior é que as pessoas se contaminam com isso. As pessoas têm que entender aquilo que o artista está querendo dizer e não suprimir, esmagar. É proibido proibir.

Gal, sobre as campanhas de grupos contra exposições de arte e museus

Índia censurada

Em 1973, Gal posou seminua na capa de "Índia" e irritou os censores: queriam retirar à força o disco das lojas

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Gata escaldada

Ser dona do próprio corpo e dos próprios gestos fez a garota tímida desencantar. Em "Gal Tropical" (1979), ela subiu no salto alto e vestiu um longo brilhante. Nascia ali um dos mais potentes símbolos sexuais da música. Seis anos depois, foi a primeira cantora da MPB a posar nua em uma revista: "Já tinha botado tudo pra fora. Só faltava o que estava embaixo do tapa-sexo, que aí eu mostrei, suavemente."

Em 1994, sob o impacto da morte da mãe, Gal rompeu outra vez.

No show do disco "O Sorriso do Gato de Alice", deixou de lado a exuberância e acatou a sugestão do diretor Gerald Thomas para que ela entrasse em cena engatinhando silenciosamente: uma gata perdida na noite.

A provocação ia além. Durante a música "Brasil" (exatamente no trecho: "Brasil, mostra a tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim"), de Cazuza, Gal levantava os braços e a camisa aberta revelava os seios.

Não se falava sobre outra coisa. "As pessoas focaram muito nessa coisa do peito e o espetáculo que era lindo, maravilhoso, acabou se perdendo no sentido de que as pessoas não olhavam para outras coisas bonitas que havia. E era uma bobagem porque meu peito eu já tinha mostrado, não era novidade".

Ao relembrar das críticas que faziam ao show, reforça:

E eu amava entrar engatinhando naquele palco.

"Claro que me assediaram, eu era gostosa"

Divulgação Divulgação

"Que se rasguem, eu gosto de Bethânia"

Desde que pisou no palco pela primeira vez, no Teatro Vila Velha, em Salvador, Gal esteve ao lado de Maria Bethânia. O encontro de duas forças contrastantes sempre seduziu o público e rendeu uma relação que muitos achavam ter ficado no passado.

Recentemente, Bethânia participou da série documental "O Nome Dela é Gal" e se emocionou ao relembrar da vivência com a amiga nos palcos: "Sinto falta", desabafou.

Pouco afeita ao saudosismo, Gal se surpreendeu: "Até eu fiquei com saudade." E garante que nunca rompeu com a cantora. "Nós temos os laços estreitados, a gente só não se vê há muito tempo".

Imagina, adoro Bethânia. Não tem rixa, não tem briga, não. A gente fica um ano sem se ver porque somos irmãos espirituais. Nós quatro, os Doces Bárbaros [Gal, Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil], temos uma ligação que independe da nossa vontade. É uma força estranha. Desde que a gente começou a cantar, desde lá no começo, fazem rixa entre mim e ela, competição, não sei o quê. Podem fazer, que se rasguem. Eu gosto dela, ela gosta de mim, não tô nem aí.

Gal ouve as revelações de hoje

  • Anitta

    Eu acho que a Anitta canta direito, mas não sou apaixonada. Não é uma coisa que me atrai, algo que me sacuda.

  • Raquel Virgínia e Assussena Assussena (As Bahias e a Cozinha Mineira)

    [Pedro] Bial me chamou para fazer um programa junto com elas. Eu vi uma vez um vídeo e achei super bacana.

  • Pabllo Vittar

    Já ouvi, mas nunca vi pessoalmente. Ela gravou com a Preta Gil, já vi pela televisão. É bonita, tem um porte, um charme. Espero que ela tenha muito sucesso.

  • Marília Mendonça

    Acho legal, ela tem uma coisa bem bacana de falar do cotidiano das pessoas de uma forma muito espontânea e verdadeira. Isso é o grande gancho do sucesso dela.

Mãe aos 60

"Gabriel veio de barriga de aluguel para mim e tem meu DNA espiritual"

Lucas Lima/UOL

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