Baseado em fatos reais

Até que ponto uma obra inspirada pela vida real pode lançar mão de licenças poéticas?

Beatriz Amendola Do UOL, em São Paulo
Karima Shehata/Netflix

Transformar histórias reais em aventuras fictícias é uma estratégia tão comum quanto recorrente na indústria do cinema e da TV. Mas nem todas causam tanto rebuliço quanto aconteceu com "O Mecanismo", a série da Netflix baseada na Operação Lava Jato. Criada por José Padilha (diretor de "Tropa de Elite" e "Narcos") e Elena Soarez (de "Xingu"), a produção estreou na última sexta-feira (23) e, em pouco mais de 24 horas, dominou discussões nas redes sociais. O motivo? As liberdades tomadas em relação aos acontecimentos da vida real.

Um ponto, especificamente, trouxe mais incômodo a parte dos espectadores: a frase sobre estabelecer um "grande acordo nacional" para "estancar a sangria" e impedir o prosseguimento das investigações, dita pelo senador Romero Jucá (PMDB) em um áudio que veio a público em 2016. Na série, a fala aparece na boca do personagem Higino (Arthur Kohl), uma clara alusão ao ex-presidente Lula.

Nas discussões que se seguiram, contaminadas pelo clima de polarização política preponderante nas redes sociais, a Netflix se tornou alvo de uma campanha de boicote, em que espectadores chegavam a anunciar o cancelamento da assinatura do serviço de streaming.

Mas, afinal, há limites quando uma obra se propõe a adaptar um evento real? Ou o aviso de que "este programa é uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais" garante carta-branca para se contar uma história?

"O Mecanismo", a série da Netflix

Markus Schreiber/AP Markus Schreiber/AP

Efeito dramático

Os protagonistas de "O Mecanismo" são os delegados federais Marco Ruffo (Selton Mello) e Verena Cardoni (Carol Abras), que investigam um grande escândalo de corrupção que tem como ponto central o doleiro Roberto Ibrahim, uma referência a Alberto Youssef. Outras figuras da esfera política, como a ex-presidente Dilma Rousseff, o senador Aécio Neves e o empresário Marcelo Odebretch, também ganham representações claras, mas sempre com nomes fictícios.

Na vida real, foi Dilma a primeira personagem retratada a criticar publicamente a série. Em um texto publicado em seu site oficial, a ex-presidente da República acusou Padilha de distorcer a realidade, propagar mentiras e praticar o "assassinato de reputações", e classificou a produção como "mentirosa e dissimulada".

O cineasta reagiu às críticas sobre a fala de Jucá, chamando a discussão de "boboca" e afirmando que "O Mecanismo", na verdade, faz uma crítica a todos os partidos políticos. "Na abertura de cada capítulo da série avisamos que fatos foram alterados para efeitos dramáticos. Para o pessoal que sabe ler, portanto, não há ruído algum", disse ele ao site Observatório do Cinema, parceiro do UOL.

Diferença básica

  • Ficção

    Criação artística de uma narrativa imaginária. Se baseada ou inspirada em fatos reais, o autor faz uma leitura particular e geralmente original da realidade, resultando na interpretação subjetiva de um acontecimento.

  • Documentário

    Filme informativo ou didático que se caracteriza principalmente pelo compromisso de explorar algo ou alguém real. Ainda assim, por mais imparcial que seja, o resultado é uma representação subjetiva da realidade.

PEDRO SAAD/NETFLIX/DIVULGAÇÃO PEDRO SAAD/NETFLIX/DIVULGAÇÃO

Como os roteiristas lidam?

Bráulio Mantovani, que trabalhou com José Padilha nos dois filmes de "Tropa de Elite", já se colocou na posição de adaptar histórias da vida real para as telas: em "Última Parada 174", ele conta uma ficção baseada no notório sequestro ao ônibus 174 no Rio de Janeiro; e em "VIPs" ele inspira-se na história do estelionatário Marcelo Nascimento da Rocha.

Para ele, é a coesão interna da obra que vale. "Para conhecer a realidade, você lê notícias, assiste a telejornais, lê livros sobre filosofia, política, história e ciência. A experiência da ficção é outra. A ficção produz um sentido que a realidade raramente (ou nunca) tem", Mantovani afirma, por e-mail, ao UOL.

E há limites para as obras de ficção? "Se você escreve uma cinebiografia, obviamente você tem que lidar com muitas limitações. A biografia ficcionalizada vai sempre fundir personagens e situações. Como ouvi uma vez do [cineasta] Guel Arraes: 'A vida é uma excelente roteirista, mas só entrega o primeiro tratamento'. Porém, você precisa respeitar a pessoa que se torna o seu personagem. Não pode manipular fatos sem escrúpulos".

Se a realidade é apenas uma inspiração, se você parte de fatos, mas inventa personagens, é possível não se auto-impor um limite alheio à obra que você escreve. Na prática, cada caso é um caso. Cada autor deve tomar as decisões que lhe pareçam mais corretas para chegar a um resultado melhor.

Encontrando o equilíbrio

Luiz Bolognesi, que escreveu os roteiros do filme "Bingo", inspirado na vida de Arlindo Barreto, o palhaço Bozo, e de "Elis", sobre a vida da cantora Elis Regina, reconhece: achar o equilíbrio entre a ficção e o real é "extremamente delicado e complexo". "O aspecto legal é facilmente resolvido quando você faz o que o Padilha fez, que é avisar que é uma obra de ficção baseada em fatos reais. Se você avisa, os jornalistas e o público têm que entender que é uma leitura subjetiva. Me parece que nós tínhamos que ler, mais claramente, que ['O Mecanismo'] é a versão do Padilha."

Ainda assim, ele defende que questões de ordem ética devem ser consideradas. "Quando você envolve nomes ou personagens claramente inspirados em personagens reais, na minha opinião o campo ético tem que ser definido por um território que é: você não pode roubar no jogo de modo a denegrir a pessoa retratada ou referenciada", argumenta, ressaltando especialmente quando serão mostradas as "sombras" do personagem, seu lado mais obscuro e negativo.

Bolognesi cita o caso de Elis Regina: para mostrar a insegurança e o desequilíbrio da cantora no filme, ele optou por usar em outros contextos declarações que a cantora havia dado em entrevistas. "As falas são todas dela, mas deslocadas. É uma intervenção de ficção, mas eu não posso por na boca de Elis Regina, na minha opinião, coisas que ela não falou e que vão contra ela."

O cineasta passou por outro caso semelhante em seu novo filme, o documentário ainda inédito "Ex-Pajé", no qual retrata uma tribo indígena do norte do país. "Mesmo que em alguns momentos se sintam constrangidos, tenham sua intimidade revelada e suas coisas negativas apresentadas, é muito importante que eles se sintam dignos. Ou se você jogou alguém na lama, que aquilo esteja embasado em fatos que aquela pessoa comprovadamente fez".

As dificuldades que eles tiveram para adaptar a vida real

Escrevi um roteiro baseado em um artigo de Chris Chivers, publicado pela revista 'Esquire' em 2006. Conta a história do massacre em uma escola de Beslan, na Ossétia, após ser invadida por militantes separatistas da Chechênia (a quem os russos se referem como terroristas). Fiquei travado. Não parava de pensar nos sobreviventes e nas pessoas que tinham morrido (na maior parte, crianças). Só consegui escrever quando mudei os nomes dos personagens reais, e aí eles se tornaram seres de ficção. Consegui fundir fatos e personagens, deslocar acontecimentos e criar situações e características psicológicas que não existiam. Eu não conseguiria escrever um documentário ou mesmo uma cinebiografia. Eu só sei inventar.

Bráulio Mantovani

Bráulio Mantovani

No filme 'Bingo', tinha a questão [pública] da cocaína. O personagem que me deu as entrevistas dizia que não consumia drogas no ambiente de trabalho, e outras pessoas que trabalhavam com ele diziam que sim, que havia drogas no ambiente de trabalho e ele consumia. O que você faz com isso? É muito delicado. A gente acabou utilizando, com base em vários depoimentos, que ele consumia drogas no ambiente do trabalho. Ele diz que é uma licença poética, e eu aceito isso. Ele não se ofendeu, porque gosta do filme. Eu estava muito preocupado em como o Arlindo Barreto e os filhos dele iam reagir ao filme. Eu os encontrei e eles vieram me abraçar emocionados, chorando.

Luiz Bolognesi

Luiz Bolognesi

Pedro Saad/Netflix Pedro Saad/Netflix

Temporada 01, episódio 05

Quando falaram ao UOL, nem Mantovani nem Bolognesi haviam assistido ao episódio 5 de "O Mecanismo", em que Higino diz a frase de Jucá, com roteiro de Elena Soárez e direção de Marcos Prado. Bolognesi, na verdade, ressaltou que nem pretendia assistir à série, mas que considera positivo o debate sobre o campo ético.

"Em cima dessa série, vejo uma parte desse debate que é muito rica, e um perigo de apedrejamento que eu espero que não aconteça. O Brasil está muito à flor da pele e a gente perde os meios tons. Os bons filmes e as boas discussões têm nuances, a vida tem nuances. Ninguém é totalmente bom, nem totalmente mau. A vida não é maniqueísta como se trata a discussão de direta e esquerda. Isso é empobrecedor", diz Bolognesi.

Mantovani, por sua vez, lembra que é amigo de Padilha e fã do trabalho da roteirista Elena Soarez e que, por isso, não é capaz de dar uma opinião objetiva. "Se eles optaram por deslocar uma frase de Romero Jucá para o personagem que identificamos com Lula, devem ter tido um bom motivo para fazê-lo".

Mas para ele, no fim, se trata de um personagem da ficção. "Aquele personagem que parece o Lula é, apesar de todas as semelhanças, um personagem de ficção. Ele tem que ser coerente com o que ele é e faz na ficção. O personagem real que inspirou o ficcional não deve se sobrepor jamais. Estou seguro de que não estaríamos falando sobre esse deslocamento se a história da Lava Jato pertencesse a um passado nem tão longínquo."

O principal elemento de narrativa da série está na exposição do mecanismo da corrupção política no Brasil. Isso determina a composição psicológica dos personagens. Se alguém assistir à série pensando que está vendo a realidade em todos seus detalhes, melhor procurar um psiquiatra.

É fake news?

O termo "fake news" já foi incorporado ao vocabulário político do brasileiro nas redes sociais. E voltou a ser citado com o caso de "O Mecanismo": a ex-presidente Dilma o usou em sua crítica contra a série e o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, ambos do PT, sugeriu, ironicamente, a criação de um novo gênero cinematográfico, a "fake fiction" (ficção falsa, em tradução livre).

Para Pablo Ortellado, professor e membro do projeto "Monitor do Debate Político no Meio Digital", da USP, não cabe a definição de fake news às polêmicas da série. "A ficção, por definição, é 'fake'. Não é um documentário. De qualquer forma, se você quer retratar um fenômeno que aconteceu e que é de grande relevância política, há certos fatos que seria razoável você respeitar".

A mudança em uma frase que se tornou tão simbólica acabou criando um ruído desnecessário, na avaliação de Ortellado. "Desqualifica outras informações bem representeadas. Se deslocou-se uma fala importante e icônica do noticiário brasileiro, que confiabilidade posso ter? Isso está tão colado a um episódio político recente, cujas feridas estão completamente abertas, que acho uma opção muito equivocada, do ponto de vista político e do ponto de vista dramático."

O professor de ética da Unicamp Roberto Romano discorda da opinião de Ortellado. De acordo com ele, o cinema não é uma ciência objetiva, mas corre o risco de servir como peça de propaganda política, incorporando técnicas narrativas bem-sucedidas de modo estético, mas perversas no campo ético.

"Um exemplo notório está no filme 'O Triunfo das Vontades' (1935), de Leni Riefenstahl. Naquela obra-prima de cinema e propaganda, o artifício levou ao endeusamento ainda maior de Adolf Hitler e do regime nazista. É um trabalho de cinema exemplar e um trabalho de propaganda mentirosa exemplar. Sempre que o cineasta rompe os limites da elaboração que nutre a fantasia, ele penetra no campo da manipulação das massas, a serviço de uma ideologia".

Karima Shehata/Netflix Karima Shehata/Netflix

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