Pede pra sair

Como "Tropa de Elite" enfrentou tráfico, polícia e pirataria antes de se tornar um fenômeno

Natalia Engler e Tiago Dias Do UOL, em São Paulo

Há dez anos, chegava aos cinemas "Tropa de Elite", um filme que se tornou um fenômeno pop e lançou o ator Wagner Moura e o diretor José Padilha ao estrelato, com cenas fortes e bordões que ainda seguem no imaginário nacional.

Mas quem se lembra das polêmicas em torno da história de uma polícia corrupta e violenta nem imagina as dificuldades que o filme –e todos os envolvidos– enfrentou antes de chegar às telas naquele outubro de 2007. Um verdadeiro teste de resistência, digno de um treinamento do Bope (Batalhão de Operações Especiais).

Notícias de uma guerra particular

Era 12 de junho de 2000. O país assistia ao vivo ao desenrolar do sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, que acabou com a morte de uma refém e do sequestrador Sandro do Nascimento, assassinado na viatura do Bope. O capitão da PM Rodrigo Pimentel também acompanhava o caso, que ressoou muitas das críticas que ele já vinha fazendo à polícia desde o depoimento que deu ao documentário "Notícias de uma Guerra Particular" (1999), de João Moreira Salles e Kátia Lund.

Moreira Salles foi quem fez a ponte entre Pimentel e o cineasta José Padilha, que à época preparava um documentário sobre o caso, seu primeiro longa-metragem, lançado em 2002 com o nome "Ônibus 174".

As conversas sobre a possibilidade de fazer um filme sobre o Bope começaram já naquela época. E as duas produções tinham muito em comum. "Em 'Ônibus 174', narrei a história da violência urbana carioca do ponto de vista de um pequeno criminoso. Em 'Tropa de Elite', narrei esta história do ponto de vista de um policial violento. Dei ao capitão o mesmo sobrenome de Sandro para que as pessoas entendessem que era outro ponto de vista, mas que a realidade subjacente era a mesma", afirma Padilha, em entrevista por e-mail ao UOL.

O roteiro de "Tropa de Elite" foi uma aventura tanto para o diretor quanto para Pimentel, ambos "virgens" na empreitada. "O Zé Padilha comprou dois manuais de roteiro e me deu um de presente. E a gente começou ali, meio na orelhada", relembra o ex-PM. A primeira versão do texto seria o embrião para o livro "Elite da Tropa" (2006), assinado por Pimentel, pelo também policial André Batista e pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares. No fim, o texto ainda sofreu cortes e modificações nas mãos do roteirista Bráulio Mantovani ("Cidade de Deus").

David Prichard/Divulgação David Prichard/Divulgação

Baseado em fatos reais

"Tropa de Elite" não é exatamente biográfico, mas nem por isso é menos verídico. "Pimentel me apresentou a vários policiais do Bope e eu os entrevistei. Construímos o primeiro tratamento do roteiro com base nos personagens que achei mais relevantes e nas histórias que me pareceram mais reveladoras", conta Padilha.

"Isoladamente, são histórias verdadeiras que, reunidas, fazem parte de uma obra de ficção", explica Pimentel, lembrando que o "aspira" do filme, André Mathias (André Ramiro), tem um pouco do policial André Batista, que também estudou direito na PUC-RJ e se defrontou com a postura liberal de seus colegas; seu próprio filho nasceu durante uma operação, assim como o do Capitão Nascimento (Wagner Moura); um traficante chamado Baiano realmente matou um colega do Bope; e, como Neto (Caio Junqueira), "um garoto corajoso ao extremo" foi baleado durante uma operação e morreu.

As histórias estavam tão próximas do dia a dia dos integrantes do Bope que a mulher de um oficial pensou que Pimentel estava bisbilhotando a vida do casal.

Quando saiu o filme, a mulher do capitão René, que é a inspiração do capitão Renan, me perguntou se eu estava assistindo às discussões deles em casa, porque eu tinha detalhado uma briga com todos os detalhes. Expliquei que os dilemas é que eram parecidos: estávamos sobrecarregados, amávamos o batalhão, mas queríamos sair do quartel. Não aguentávamos mais aquela pressão.

Rodrigo Pimentel

David Prichard/Divulgação

Onde os fracos não têm vez

André Ramiro trabalhava como porteiro de cinema no Rio e Wagner Moura ainda não era uma estrela (a novela "Paraíso Tropical" estrearia após as filmagens) quando uma verdadeira tropa de choque foi montada para as filmagens. A preparação seguiu o padrão Bope: muito esforço e provação

Retirados em um sítio em Vargem Pequena (RJ), os atores experimentaram um curso parecido com o retratado no filme. Ao receber uma gororoba chamada pelos policias de engodo ("uma mistura bem ruim de arroz, feijão, goiabada, suco de caju e frango", explica Pimentel), Milhem Cortaz incorporou o Tenente Fábio: "Não vou comer essa porra. Prefiro abandonar a produção do que comer isso". Foi persuadido aos berros.

O psicológico dos atores também foi levado ao extremo por uma capitã infiltrada: Fátima Toledo, uma referência na preparação de atores e de métodos controversos. O ator Michel Melamed desistiu de interpretar o administrador da ONG que termina morto pelos traficantes por não concordar com as técnicas dela.

Em três semanas, um calmo Wagner Moura se transformou no agressivo Nascimento. O ator chegou a dar um soco em um capitão do Bope que o provocava intencionalmente falando da família. "Todo mundo achou ótimo, mas fiquei horrorizado", disse à "Trip" em 2010. A fisionomia mudou e ele passou a ser visto sempre suando, com os olhos arregalados, como se estivesse à beira de um ataque de nervos. Pimentel não tem dúvidas: "Fátima poderia ser uma instrutora do Bope".

Para dar ainda mais realismo, ela propunha um ritual e colocava os atores para brigar de verdade. A tensão extrema esquentava a discussão. Por pouco não se perdia o controle. Era neste momento que Fátima avisava:

Pronto, pode filmar.

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Operação de Guerra

As filmagens começaram em outubro de 2006, em uma época em que não havia favelas pacificadas no Rio. "'Tropa de Elite' falava da violência no Rio de Janeiro, da corrupção, as pessoas sabiam disso. O livro já tinha sido lançado, já era um best-seller. A temática era muito ruim para o governo [de Rosinha Garotinho]", relembra Pimentel.

As dificuldades começaram nas autorizações para filmar em locais públicos. Órgãos responsáveis pelo tráfego, energia elétrica e limpeza pública davam seu OK, mas quando chegava na PM a coisa encrencava. "Os batalhões só negavam o 'nada a opor' [o documento de autorização] pra gente. Tínhamos certeza de que era alguma coisa contra o nosso filme. De alguma forma, o governo tentava estabelecer uma censura sobre um filme que nem tinha sido feito ainda", conta o ex-PM. As coisas só começaram a andar depois que Padilha foi pessoalmente negociar com o Estado.

Mas o entrave com a polícia era só um aperitivo. O verdadeiro desafio foi filmar em comunidades então dominadas por facções e milícias. Para entrar nas favelas, a equipe negociava com representantes das associações de moradores, e o processo às vezes falhava.

"No primeiro dia de filmagem no Morro do Chapéu Mangueira (zona sul), um menino de 14 ou 15 anos pegou uma pistola com laser e começou a mirar no peito do Wagner. Se eu fosse o Wagner, eu não voltaria no dia seguinte, ia morrer de cagaço, mas ele superou tudo isso", relembra Pimentel.

O garoto desapareceu no dia seguinte, depois que um membro da equipe foi conversar com lideranças locais, e as filmagens prosseguiram por nove noites, chegando a ter 700 figurantes para a cena do baile funk.

Mas este não seria o último encontro da produção com o tráfico.

Mais estranho que a ficção

Madrugada do dia 3 de novembro de 2006. Último dia de filmagens na Ladeira Ary Barroso, no Leme. Uma van levando cerca de 90 armas cenográficas foi abordada e cinco integrantes da produção ficaram em poder de criminosos armados por algumas horas. O estrago estava feito: além do roubo de objetos de cena alugados, algumas pessoas decidiram deixar a produção, as filmagens foram paralisadas para a investigação, e o filme perdeu uma de suas locações.

"Eram armas reais adaptadas para a cenografia, mas o processo de torná-la arma de novo é inviável. Foi inutilizada", esclarece Pimentel. "Os bandidos dessa favela talvez não soubessem que eram cenográficas. Faltou talvez, na inocência, esclarecer para todo mundo que eram armas de mentira". Segundo reportagens da época, a equipe de filmagem vinha sendo monitorada pelos criminosos. Alguns deles foram presos, mas a polícia nunca conseguiu reaver todo o armamento.

"Foi um momento muito tenso. Criou um problema de segurança pública, envolvendo o Exército (que autorizou o uso das armas); a Polícia Civil (que instaurou investigação); e a Polícia Militar (que autorizou as filmagens nas locações)", disse Padilha à "Folha", na época. "Paramos o filme. A polícia entrou na favela. A locação acabou. O equipamento ficou lá em cima. O dinheiro foi acabando".

O dinheiro, no caso, eram os R$ 4,9 milhões previstos inicialmente, que depois saltaram para R$ 10,5 milhões, um dos orçamentos mais altos do cinema daquele ano.

O caso foi solucionado, ao menos em parte, mas os obstáculos não paravam de aparecer. "Na última semana de filmagem em favelas, o chefe do Morro dos Prazeres chamou a equipe e disse: 'Não quero mais que filme aqui'", conta Pimentel. Acompanhado de outros traficantes, todos armados, eles foram ao set argumentar que a produção estava chamando muita atenção para a comunidade, e que poderia atrair também a polícia, o que prejudicaria os "negócios".

"O traficante que foi ao set levava um exemplar do livro 'Elite da Tropa'. Não rolou ameaça a ninguém, mas só a presença de uma pessoa armada ali causa um dano emocional", diz Pimentel. Naquele momento, faltava ainda a cena final do filme: a morte do traficante Baiano (Fábio Lago). Novamente, a equipe precisou da intermediação da associação de moradores para negociar com o tráfico a retomada das filmagens.

Essa pica (não) é do aspira

As filmagens estavam encerradas, mas ainda havia muito chão a percorrer. E por muito pouco “Tropa de Elite” não se tornou um filme completamente diferente do que conhecemos.

Quando os rolos do filme chegaram ao montador Daniel Rezende (que acabou de estrear na direção com "Bingo, o Rei das Manhãs"), o material focava em Mathias. Era o aspirante honesto que narrava sua saga, desde a entrada na polícia até o confronto com a corrupção e o encontro com um mentor, um tal de Capitão Nascimento.

O primeiro corte mostrou um filme sem energia. "Fomos experimentando na ilha de edição e percebemos que a melhor estrutura narrativa era ter Nascimento exprimindo a sua visão de mundo na narração", conta Padilha. "Quando Mathias narrava, sabia-se logo de cara onde ele ia parar. Com Nascimento narrando, não". A nova versão injetou adrenalina na tela.

Rezende, que havia chegado ao Oscar anos antes com a montagem de "Cidade de Deus", modificou toda a história na ilha de edição. "Foi o filme mais radical em que eu trabalhei como montador. Mudamos o protagonista e a sinopse do filme na montagem", recorda.

Batido o martelo, Wagner Moura foi chamado em cima da hora para gravar sua narração, com a voz um pouco mais grave por causa de uma rouquidão.

Fizemos a narração em off em 30 minutos, nas coxas mesmo, sentados em uma mesa, num sábado de manhã.

Rodrigo Pimentel

Blockbuster de camelô

Com Capitão Nascimento à frente da história, o filme adotou seu ponto de vista repressor e violento, no qual os fins justificam os meios, e chegou às ruas antes da hora.

Faltavam quatro meses para a estreia quando apareceu nas bancas de camelôs um filme intitulado "Bope - Tropa de Elite". A cópia não finalizada, vendida a R$ 10, se tornou febre no mercado informal e chegou até ao Haiti. Uma pesquisa do Ibope na época estimou que 11 milhões de pessoas haviam assistido a versão pirata, mais de quatro vezes o público total de 2,5 milhões de espectadores que depois foram aos cinemas.

As cópias circulavam livremente até nos corredores da TV Globo (Wagner Moura teria recebido uma de um funcionário da emissora) e em Brasília. Gilberto Gil, então ministro da Cultura, teria feito uma sessão em sua casa. Preocupado, Padilha foi bater na porta do ministro. "Fui à casa de Gil em sinal de protesto. Um ministro da Cultura, um compositor e cantor que sempre vendeu a sua arte e recebeu direitos autorais por sua música, e que representava o setor cultural do país, inclusive o cinema, não pode usurpar a arte dos outros. Um absurdo total", defende Padilha. Procurado pelo UOL, Gil não quis comentar o assunto.

Pimentel, que saíra da polícia em 2001, relembrou os velhos tempos e se juntou à investigação. "Começamos a fazer o caminho inverso. Chegávamos no camelô e perguntávamos: 'Você comprou de quem?'". A polícia não demorou a chegar à Drei Marc, empresa de legendagem para cópias internacionais. Três técnicos foram indiciados por violação de direitos autorais, mas o processo acabou arquivado.

Com o filme programado para chegar aos cinemas em novembro, a equipe antecipou a estreia para 12 de outubro. E Padilha jamais voltou a trabalhar com cópias digitais. "Para o 'Tropa 2', fizemos tudo em película".

As frases de "Tropa de Elite"

Divulgação

Um herói que toma Rivotril

"Tropa de Elite" se tornou o filme brasileiro mais visto em 2007 e ampliou o fenômeno para além dos cinemas. O público deixava as salas fazendo eco das falas do Capitão Nascimento e levava para as mesas de bar a discussão sobre corrupção, descriminalização das drogas e as táticas violentas da polícia. De um jeito ou de outro, Nascimento personificou um sentimento real da população: justiça e segurança a qualquer preço.

Pimentel conta que acompanhou sessões de "Tropa" de Bangu ao Leblon. Em todos os lugares, a mesma cena se repetia: "Pessoas aplaudiam as cenas de tortura. Quando o policial do Bope fazia menção de enfiar um cabo de vassoura no ânus de um bandido e o bandido confessava, as pessoas davam gargalhada no cinema, independente da classe social, do bairro, da formação acadêmica", lembra. "O cara tomava Rivotril, e era um herói." Pouco antes da estreia, ao ter seu Rolex roubado no Rio de Janeiro, o apresentador Luciano Huck pediu por mais segurança: "Chamem o comandante Nascimento!".

Para Padilha, o público ignorou o comportamento "inaceitável" do personagem por conta da "relação diária que a população tem com criminosos violentos e policiais corruptos". Alguns viam o filme como o retrato cruel da corrupção sistêmica, enquanto outros enxergavam em suas duas horas um panfleto para o fascismo.

A "Folha de S.Paulo" chamou o filme de "desumano e autoritário": "Não dá para aplaudir nem sob tortura". Uma ONG de direitos humanos entrou na Justiça para proibir a exibição por "espetacularizar" a tortura. Policiais também agiram para censurar o filme, mas por denunciar práticas da corporação.

"Ganhamos todas as ações", diz Padilha, que, após "Tropa de Elite 2" (2010) sofreu uma tentativa de sequestro. "Me vi forçado a ter segurança em tempo integral. Depois de um tempo, e apesar de amar o meu país, achei melhor viver de outra forma". O cineasta mora em Los Angeles há três anos.

Silêncio e prêmio em Berlim

Foi com a polêmica na bagagem que "Tropa" estreou no tapete vermelho do Festival de Berlim em 2008. Após a última cena, em que Mathias mira na cara do traficante Baiano, não houve aplausos nem vaias. Era como se a plateia não soubesse como reagir a um filme tão forte e impactante.

Nos dias que se seguiram, o filme foi duramente atacado pela crítica e se tornou um dos competidores mais comentados daquela edição. Sem unanimidade, o presidente do júri, o cineasta franco-grego Constantin Costa-Gravas, ícone cultural da esquerda e do cinema político, bancou o prêmio máximo. O Brasil levava para casa seu segundo Urso de Ouro.

Hoje, a acusação de ser um filme fascista ainda incomoda Padilha. "É [uma visão] equivocada, com fortes tendências de patrulha ideológica".

Divisor de águas

Uma monótona celebração da violência, um filme de recrutamento para bandidos fascistas.

"Variety"

Padilha descreve com realismo um universo que causa tanto medo quanto a criminalidade que quer combater.

"El País"

'Tropa de Elite' herda do cinemão americano o roteiro esquemático, o moralismo mistificador, o cinismo utilitário, a hipocrisia social, o pensamento monolítico. Banaliza e glamouriza a tortura (...) É um filme desumano e autoritário.

Plínio Fraga, na "Folha de S.Paulo"

Uma das piores coisas que pode acontecer numa democracia é a polícia não trabalhar para proteger as leis, mas querer fazer as leis. A denúncia de José Padilha ficou evidente para mim, ainda que muitos não tenham entendido o filme, chamando-o de fascista.

Constantin Costa-Gravas, Presidente do júri do Festival de Berlim

Divulgação Divulgação

Dez anos depois

Desde o momento em que anunciou "Tropa de Elite 2", quando Nascimento finalmente descobre que os maiores criminosos não são as milícias nem os traficantes, Padilha sentenciou: não haveria uma terceira parte.

Pimentel, no entanto, não deixa de sugerir um tema que poderia ser abordado em um novo filme: a derrocada das unidades pacificadoras do Rio, as UPPs, proposta do Estado na esteira da discussão promovida pelo primeiro filme.

"Boa parte dos cariocas, da mídia, aplaudiu o processo de pacificação, e esse processo falhou. Uma geração de jovens foi iludida, fizeram concurso para a Polícia Militar para ingressar no processo de pacificação, e esses jovens hoje estão sendo trucidados", acredita.

Enquanto finaliza a série "O Mecanismo", que estreia na Netflix em 2018, Padilha diz continuar de olho nos problemas do Brasil. De alguma forma, o novo projeto pode fechar uma ponta aberta há dez anos. Baseada na Operação Lava-Jato, a produção se passa em Brasília –a mesma que aparece na última cena de "Tropa 2", quando Nascimento depõe na CPI e descobre, finalmente, que o inimigo é outro.

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