A década que não acabou

Sucesso na TV e no cinema, os anos 80 continuam vivos. Por que não conseguimos superá-los?

Beatriz Amendola Do UOL, em São Paulo

Quando “Stranger Things” chegou à Netflix, em junho de 2016, pouco se esperava da série além de um retorno triunfal da atriz Winona Ryder, em seu maior papel depois dos 40. Mas, em poucos dias, ela se tornou um fenômeno global. A mistura de aventura, fantasia, suspense e um elenco mirim extremamente carismático deu certo, com a ajuda de um empurrãozinho especial: situada nos anos 1980, a produção resgatou todo o charme da época em referências explícitas a clássicos como “E.T. – O Extraterrestre”, “Os Goonies” e “Conta Comigo” -- uma fórmula aperfeiçoada na segunda temporada, que estreou no último dia 27.

Mas “Stranger Things” não está só: o cinema e a TV vêm há anos prestando homenagem à década que projetou mundialmente nomes como Madonna, Michael Jackson e Prince e levou aos cinemas produções que se tornaram marcas de sucesso, como “Indiana Jones” e “Mad Max”. De referências sutis como o walkman do Senhor das Estrelas em “Guardiões da Galáxia” a uma onda de remakes, reboots e sequências que inclui o recente “Blade Runner 2049” e a versão televisiva de “Máquina Mortífera”, os anos 80 estão em todos os lugares -- até no Brasil, onde "Bingo - O Rei das Manhãs" os resgatou para contar a história proibida para menores do palhaço Bozo.

Mas por que, afinal, somos tão obcecados com essa época?
 

Inocência e nostalgia

De tudo o que pode explicar a febre dos anos 1980, a nostalgia é o que mais aparece nas respostas. E isso tem muito a ver com aquela velha ideia de que tudo era melhor no passado. “Nosso cérebro engana a gente, cria uma aura de ‘nossa, como essas coisas eram legais’. E aí por conta disso a gente fica tentando recriar essas sensações”, explica Thiago Costa, 37, professor da Faculdade de Comunicação da FAAP.

Por isso, nada mais natural do que quem era criança naquela época e está na indústria hoje em dia usar essas referências e “realizar o sonho de criança”, como foi o caso dos criadores de “Stranger Things”, os irmãos Ross e Matt Duffer, 33. Em entrevista ao “The Guardian” no lançamento da série, no ano passado, ambos assumiram a vontade de prestar homenagem aos filmes que fizeram parte de sua formação: “Quando você é criança, você não assiste a um filme só uma vez. Você vê 10, 20 vezes. Esses eram os filmes com os quais crescemos. Eles se tornaram parte de nós”.

E quem também está na casa dos 40 anos, mas não necessariamente atrás das câmeras, tem potencial para ser um grande mercado consumidor.

Do lado de quem assiste também a favor o fato de produções como “O Clube dos Cinco” e “Conta Comigo” trazerem histórias de amizade e aventuras em grupo, que têm um apelo universal, ainda mais em uma época em que o contato é, principalmente, digital, segundo Costa: “Essa ideia de grupo de suporte tem um apelo muito bom num mundo em que a gente está se sentindo meio isolado, meio sozinho, mesmo em um mundo conectado com muita gente”. Com isso em vista, não é difícil entender porque "Stranger Things" faz sucesso inclusive com o público mais novo, nascido depois dos anos 2000. 

E por que os anos 1980, especificamente, são tão mais reverenciados no cinema e na TV do que as outras décadas? Aqui, não é só a nostalgia que vale, mas também a ingenuidade das produções. “Nos anos 1980 havia uma certa inocência que fazia a gente produzir coisas muito simples, e a simplicidade sempre ajuda o público a responder àquelas produções. E se a gente pensar no que veio antes e no que veio depois, nos anos 1970 havia uma ideia de romper com a ordem estabelecida, a contracultura; nos 1990 a gente tinha um cinismo, uma ideia de que eu não posso ser tão bobinho. E os anos 1980 não queriam fazer nada disso, era simplesmente para divertir.”

"Acho que essa época tem um lance mágico!"

A nostalgia é a explicação da eterna Rainha dos Baixinhos para o sucesso permanente da década. Foi nos anos 80 que Xuxa, hoje com 54 anos, viu sua carreira decolar. Modelo e namorada do ex-jogador Pelé, ela passou rapidamente das capas de revistas ao posto de mais bem-sucedida apresentadora de programas infantis do Brasil. E se tornou quase onipresente: seu “Xou da Xuxa”, nas manhãs da Globo, marcou a infância de muita gente, assim como as músicas chicletes “Quem Qué Pão” e “Ilariê”, até hoje um sucesso dos karaokês. Ela vendeu milhões de álbuns – em 1986, conseguiu superar até Roberto Carlos.

“Era uma época de muito trabalho, quase não tinha tempo livre, gravava muito, viajava muito...”, recorda a apresentadora ao UOL.

O que mais me marcou foi a quantidade de cartas que recebia. Eram mais ou menos 80 mil cartas por dia! Não tinha como ler tudo ou mesmo guardar... É como receber 80 mil e-mails por dia e não ter como ler e responder a todos. É uma época que eu guardo com muito amor e carinho.

Xuxa pode ter deixado os infantis para trás, mas arranjou um novo jeito de reconquistar os baixinhos: o XuChá, feito, nas palavras dela, “só pras crianças dessa geração, que cresceram comigo e enlouquecem com  as músicas”. Em turnê desde 2016, o espetáculo é feito sob medida para agradar aos fãs mais antigos, com direito a nave e paquitas. E essa não foi a única incursão de Xuxa por seu passado: em uma série de comerciais para a Netflix, a loira botou um disco para tocar ao contrário e lembrou até seu “senta lá, Cláudia”, que virou meme na internet.

Amava ver 'Trapalhões', esperava ansiosa as férias pra poder ir ao cinema, e, músicas eram: Blitz, Rita Lee, Cazuza, Lulu Santos... Caramba!... Muita música boa e ritmos incríveis

Xuxa

"Era um universo quase utópico"

Quem também vê uma magia nos anos 80 é o ator André De Biase, 60, que marcou uma geração como o surfista Ricardo de “Menino do Rio” (1982) e o Lula da série “Armação Ilimitada” (1985-1988).

“Nos anos 90 e nos 2000 não aconteceu nada de diferente. Na última década a gente viu o nascimento da tecnologia, que mudou o mundo. Os anos 80 foram uma ‘década diferente’, de muita criatividade e cultura. Não só no Brasil, mas no mundo. E no Brasil, especificamente, o Rio comandou a festa. Os baianos vieram pro Rio, o pessoal de Brasília veio, o surfe brasileiro nasceu no Rio, o voo livre nasceu no Rio”.

André curtiu o melhor que a época teve a oferecer em bairros como Ipanema, na zona sul do Rio – que define como uma parte especial da cidade:

Era uma época tão fértil de ideias, de leveza. Era um mundo à parte, um mundo leve, um mundo gentil, um universo quase utópico comparado aos dias de hoje, principalmente nessa cidade do Rio de Janeiro. A gente andava de bicicleta, a gente via o pôr do sol com pouca gente, todo mundo se abraçava, fumava maconha, ouvia música. Não era uma coisa dos anos 70, em que tinha uma coisa hippie. Não era um modismo, era uma coisa espontânea.

Nada mais natural, então, que “Menino do Rio” surgisse desse meio. “Foi um belo trabalho. E foi muito espontâneo. Nem o cinema nem a Globo me encomendaram”, lembra o ator, acrescentando que muitas cenas, como aquela em que Ricardo ensaia como pedir Patrícia (Claudia Magno) em namoro, saíram da vida real.

O espírito daquela época, acredita André, não poderia estar mais longe do presente no Brasil de hoje. “A gente saiu de uma época em que a gente tinha a repressão política, dos militares, mas era muito mais cool do que essa repressão que a gente sofre do Congresso, do Senado. Essa pressão mata mais do que na época militar. Eu não sentia essa frustração que sinto hoje. Me lembro muito bem de que foram anos mágicos. E não é nostalgia, é um estado de espírito diferente. Vejo isso pelos meus filhos, por essa garotada que está aí hoje. As pessoas andam na rua e de carro olhando no celular”.

Ninguém substituiu os anos 80 no rock no Brasil. A Blitz foi um achado, uma coisa misturada de teatral com música, que contava história. Foi genial. Eu ouvia muito também Renato Russo, que virou um hino na nossa turma.

André de Biase

"Depois não houve nada de novo em termos de estética, música, moda"

O Trem da Alegria, ao lado da Turma do Balão Mágico, foi a principal banda infantil dos anos 1980. Fundado com Patrícia Marx e Luciano Nassyn em 1984, o grupo entrou no repertório das festinhas de criança com canções como “He-Man” e “Thundercats” -- referências a outros sucessos da época.

Patrícia e Luciano, que mais tarde virariam um trio com a chegada de Juninho Bill, guardam boas lembranças da época e do trabalho. “As brincadeiras, os shows, programas de TV como o do Chacrinha”, recorda o cantor de 44 anos, que tinha 11 anos no início da banda, ao falar sobre os momentos que mais o marcaram.

Patrícia, que tinha 10 e hoje tem 43, curtia tudo o que a carreira precoce proporcionava: “A minha amizade com os meninos, as viagens, fazer shows, e ir nas piscinas dos hotéis”. Mas suas memórias da época também estão cheias de momentos familiares – e musicais. “Me lembro da casa dos meus pais, dos vinis que escutávamos juntos, eu no colo do meu pai, cantando com ele e lendo as letras nos encartes; dos álbuns do João Gilberto ao vivo na Globo, do álbum do Tom Jobim instrumental -- eu cantava ‘Samba de Uma Nota Só’ e ‘Chovendo na Roseira’ sobre o instrumental; dos álbuns dos Beatles que meu pai gostava, o “Yellow Submarine” também instrumental. Cantava ‘à lá’ cantora lírica.”

Quanto aos motivos para a “ressurreição” dos anos 80, os dois têm palpites diferentes. Luciano a atribui ao apelo estético da época. “Assim como os anos 70, era uma década colorida, porém com um toque futurista”, afirma. Já a colega acredita que seja porque, hoje, nada mais é original: “Porque essa época talvez seja mais atual do que os anos 70 e talvez, depois da década de 80, os anos 90 em diante, não houve nada de novo em termos de estética, música, moda. Veio a internet e tudo começou a se replicar, se repetir, com um termo ‘novo’ de ‘reciclagem’.”

O que não significa que Patrícia não goste de alguns dos produtos dessa onda – ela, aliás, adora “Stranger Things”.“É meio ‘Os Goonies’! Lembrei das brincadeiras do pessoal do Trem, e era bem parecido”, conta, antes de elencar outro revival da década que aprovou: “Ouvi o álbum do baixista americano Thundercat e me remeteu muito à essa década. Achei muito interessante o jeito que ele trouxe a sonoridade da black music do tipo que eu ouvia na época – The Commodores, Earth Wind & Fire – pros dias atuais. Gosto de referências que trazem uma nostalgia de maneira inteligente.”

Gostava de assistir o Clube do Mickey, os desenhos que passavam na TV Manchete. Quando saiu o vídeo clipe do "Thriller" do Michael Jackson, eu morria de medo, mas era um medinho que eu gostava de sentir daquela risada final [risos]

Patrícia Marx

Eu comecei a curtir a banda Iron Maiden em 1985 quando os vi a primeira vez na TV no Rock In Rio, na época que ainda era rock [risos]. Filmes como o "Superman" com Christopher Reeve e "E.T." marcaram muito minha infância

Luciano Nassyn

As referências dos anos 80 em Stranger Things

Produções inspiradas nos anos 80

  • "Black Mirror: San Junipero"

    O episódio mais badalado (e fofo!) da terceira temporada da série da Netflix se passa em uma cidade litorânea dos EUA em 1987, com direito a penteados extravagantes e muito glitter.

    Imagem: Divulgação/Netflix
  • "Glow"

    A série da Netflix se inspira em "Gorgeous Ladies of Wrestling", um programa de luta livres de mulheres que surgiu em 1986. Espere muitos colants, polainas, permanentes e brilho.

    Imagem: Divulgação/Netflix
  • "MacGyver"

    O herói de ação eternizado por Richard Dean Anderson na série de 1985 ganhou nova vida em um remake que estreou em 2016.

    Imagem: Divulgação
  • "Caça-Fantasmas"

    O clássico de 1984 ganhou em 2016 um remake controverso, estrelado apenas por mulheres (Melissa McCarth, Kristen Wiig, Kate McKinnon e Leslie Jones)

    Imagem: Divulgação
  • "The Americans"

    Na série do FX, uma das melhores coisas da TV atualmente, os anos 80 não são extravagantes: o que dá o tom é o jogo de espiões da Guerra Fria.

    Imagem: Divulgação
  • "Mad Max: A Estrada da Fúria"

    A franquia de George Miller se transformou em um dos maiores nomes do cinema de ação e retornou às telas em 2015, com um filme estrelado por Charlize Theron.

    Imagem: Divulgação
  • "It: A Coisa"

    O filme de terror se passa em 1988, que é o ano em que o palhaço demoníaco Pennywise começa a aterrorizar as crianças da pequena cidade de Derry.

    Imagem: Divulgação
  • "Blade Runner 2049"

    O filme lançado por Ridley Scott em 1982 ganhou uma continuação 35 anos depois, com um Deckard (Harrison Ford) bem mais velho e um novo protagonista, K (Ryan Gosling).

    Imagem: Divulgação
  • "Máquina Mortífera"

    Quase 30 anos depois de sua estreia nos cinemas, o filme estrelado por Mel Gibson e Danny Glover deu origem a uma série sobre os casos de Riggs e Murtaugh.

    Imagem: Divulgação
  • "Bingo - O Rei das Manhãs"

    O filme escolhido para representar o Brasil no Oscar 2018 traz uma história inspirada na de Arlindo Barreto, o primeiro Bozo do Brasil, e traz ícones dos anos 80 por aqui, como a rainha do bumbum, Gretchen.

    Imagem: Luiz Maximiano/Warner

Opinião: Por que precisamos deixar os anos 80 para trás

Por Chico Barney

Boa parte do acervo emocional dos anos 80 é recheado de filmes de ação sem muito espaço para tons de cinza. O degradê moral e ético variava apenas entre a luz da inocência e as trevas do inimigo.

Nos píncaros da Guerra Fria, o entretenimento norte-americano servia para educar o mundo a respeito do seu lado na grande batalha psicológica do século 20 - o que culminou nesses anos 2000 cheios de questões psiquiátricas.

A filmografia de astros como Stallone, Schwarzenegger, Chuck Norris e Charles Bronson ocupou-se durante aquele período de demonstrar o quanto o inferno eram os outros. Por mim, tudo bem.

São filmes divertidíssimos e não há nada de especialmente errado com eles. Preocupa-me apenas a perpetuação de linhas de raciocínio rasas advindas de histórias como Rocky salvando a América dos comunistas, um campeonato de boxe por vez, e Charles Bronson mostrando que bandido bom é bandido morto.

Depois que os anos 80 passaram, crescemos com o grunge, as raves e o pagode romântico, além de versões ainda mais violentas dos heróis do passado. O processo de se tornar adulto sempre teve a ver com o entendimento de que a vida é mais enroscada do que essa dicotomia entre “bem” e “mal”, “certo” e “errado”.

Quando o Brasil se lembrar que termos como “cidadão de bem” e “família tradicional” não passam de abstrações para entreter moleques de 30 anos atrás, finalmente poderemos sair da puberdade.

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