O grito das urnas

O ano em que a democracia perdeu as eleições

Roger Cohen
Todd Heisler/The New York Times

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Ao mesmo tempo em que os eleitores do mundo inteiro expressam sua revolta com as elites nas urnas, a ordem mundial pós-guerra começa a se desmantelar. O que ocupará seu lugar?

A onda, longa, finalmente começou a arrebentar. E talvez não seja surpresa que as duas sociedades que mais sintam sua força -- os EUA e o Reino Unido -- sejam também dois modelos abertos do grupo do turbocapitalismo e das finanças globalizadas.

Durante pelo menos uma década, insuflados pela crise de 2008, os medos e ressentimentos pela impunidade das elites, pela ruptura vertiginosa causada pela tecnologia, pelo influxo de imigrantes e pela precariedade da existência moderna vinham crescendo.

Nas sociedades ocidentais, há tempos não havia vitórias, nem glórias e as certezas vinham diminuindo cada vez mais. Houve guerras que ninguém sabia como seriam vencidas. Suas feridas, ainda vivas, abundavam. A distância entre as metrópoles e a periferia só fez aumentar o abismo cultural. Muitas coisas se tornaram indizíveis; até o gênero se tornou questão controversa. A verdade foi ofuscada para depois ser deixada de lado em uma cacofonia tribal on-line.

Os empregos sumiram. A inequalidade é esfregada na cara das pessoas. O que os poderosos dizem e a vida que as pessoas levam eram coisas tão diferentes que a política, cada vez mais, parecia um golpe gigantesco. Foi desastre atrás de desastre – o euro, a Guerra do Iraque, a recessão – e quem os tramou nunca foi responsabilizado por nada.

A Síria representa a recém-descoberta impotência do Ocidente, um tipo de amoralidade "filtrada" -- e no seu desmembramento sangrento, o país mandou para a Europa uma massa humana denunciada pelos agitadores e encrenqueiros de plantão.

Assim, os britânicos votaram pela saída da União Europeia, símbolo do triunfo de um continente sobre o fascismo e o nacionalismo destrutivo; os norte-americanos, em oito de novembro, elegeram Donald Trump, que usou grande parte da linguagem xenofóbica e alarmista da Europa de 1930 para arregimentar uma multidão revoltada, grande o suficiente para fazê-lo triunfar sobre uma Hillary Clinton conciliadora.

Nenhuma das duas vitórias foi significativa, mas a democracia pode enveredar para as mudanças radicais mesmo com a margem mais apertada. O presidente eleito republicano, aproveitando a deixa, intuiu a imensa inquietação e a abordou com uma linguagem, no mínimo, explícita.

Damon Winter/The New York Times Damon Winter/The New York Times

Vinte e cinco anos depois do auge das democracias liberais e economia neoliberal pós-Guerra Fria, o iliberalismo e o autoritarismo estão em marcha. É temporada aberta para a intolerância generalizada. A violência está no ar, aguardando apenas uma faísca. A estratégica política vencedora – como provou Trump e como Marine Le Pen pode reforçar nas eleições presidenciais francesas de 2017 -- é liderar "o povo" contra um "sistema viciado", barrar a imigração muçulmana e explorar o consenso tirânico de especialistas mais que bem pagos.

A ordem pós-guerra, incluindo as alianças militares, os pactos comerciais, a integração política e a estrutura legal, se mostra fragilizada e a natureza do poder norte-americano, fortalecido por seus aliados, de repente perdeu a clareza. Ninguém entusiasma Trump mais do que o russo Vladimir Putin, que está para a democracia assim como a marreta está para um vaso de porcelana. Homens fortes e autocratas de todas as partes, não mais só no Egito e nos países do Golfo, exaltam a vitória de Trump.

É muito cedo para dizer o que ele fará, quantas promessas malucas de campanha vai cumprir, mas não é difícil prever turbulência. A irascibilidade, impetuosidade e falta de atenção o definem, por mais que o séquito que o cerca e as novas responsabilidades, de certa forma, as limitem. Por enquanto, ele está com a corda no pescoço.

A Otan enfraquecerá; os países bálticos se sentirão mais vulneráveis. Bashar al-Assad, com respaldo da colaboração Putin-Trump, se fortalecerá. As tensões comerciais entre chineses e norte-americanos ficarão mais fortes, da mesma forma que a inquietação militar no mar do Sul da China.

O acordo nuclear com o Irã, negociado cuidadosamente com seis nações líderes, pode desandar, dando ao Oriente Médio potencial para se tornar mais perigoso. Qualquer ataque jihadista ou outra violência nos EUA não será resolvido com cautela ou prudência, já que Trump parece achar que as armas nucleares são uma vantagem pouco utilizada.

Os combustíveis fósseis voltarão com força total. O acordo de Paris, assinado pelo mundo para combater as mudanças climáticas, perderá a força. Os aproximadamente 65 milhões de imigrantes que se movimentam pelo mundo, dos quais pelo menos 30% são refugiados, terão mais dificuldade em encontrar abrigo e recuperar a dignidade, já que o nacionalismo xenófobo ganha espaço político na Europa Central e em outras paragens.

O avanço implacável da tecnologia e o espaço cada vez maior ocupado pela inteligência artificial certamente porão à prova a intenção de Trump de recuperar os empregos do setor industrial. Algumas funções desapareceram para nunca mais voltar e nem um empreendedor salvador pode recuperá-los. A Parceria Transpacífico já parece morta; outros acordos comerciais, incluindo o Nafta, símbolo do sistema aberto das décadas passadas, podem acabar vetados ou substancialmente enfraquecidos.

Ilvy Njiokiktjien para The New York Times Ilvy Njiokiktjien para The New York Times

Será que tudo isso vai aplacar a ira das pessoas? Talvez Trump realmente tenha um pozinho mágico que possa usar durante algum tempo. Mas, é claro, que "as pessoas" são só uma parte da população dividida, da qual milhões não querem -- e resistirão -- ao nacionalismo global e o avanço autoritário. E o farão nas ruas, nos tribunais, através da imprensa e dos freios e contrapesos limitadores que a constituição norte-americana criou justamente para segurar a sanha dos demagogos.

Mesmo assim, Trump tem um poder imenso, um Congresso controlado pelos republicanos e a missão de recuperar a grandeza dos EUA, o que quer que isso signifique ou exija.

A luta para preservar o liberalismo será longa. E pode ter que ser liderada por gente como a alemã Angela Merkel e o canadense Justin Trudeau. Para Trump, a responsabilidade pelo bem-estar do mundo livre parece exploração, uma vez que o que lhe interessa são acordos e nada mais. Talvez com isso os EUA passem a tocha para outrem.

As democracias ocidentais estão em meio a uma reviravolta que apenas estão começando a compreender. A democracia direta virtual através das redes sociais superou a democracia representativa. O impacto do smartphone na psique humana ainda é pouco conhecido; seu poder viciante é perigoso e pode ser inimigo da razão.

Trump sequestrou o Partido Republicano como o sujeito que pega emprestado um paletó por uma noite. Sua campanha foi feita através do Twitter para as massas em polvorosa; não tinha utilidade nem necessidade dos canais tradicionais. Os maiores partidos políticos do Reino Unido e EUA terão que provar sua relevância novamente.

Claro está que as democracias não estão funcionando para os menos privilegiados, que perderam o pouco que tinham ou foram descartados com o avanço irrefreável da tecnologia. É preciso muita habilidade agora para encontrar uma maneira de recuperar as sociedades liberais de comércio livre, provar que podem ser mais justas e equilibradas, oferecendo oportunidades para todo o espectro social.

A Alemanha, com um bom equilíbrio entre o capitalismo e a solidariedade, o respeito pela força de trabalho e o compromisso com a educação superior e o treinamento técnico, oferece um modelo. A fúria de 2016 não diminuirá por si só.

A arrogância e a ignorância das elites liberais são impressionantes. É hora de ouvir as pessoas que votaram pela mudança, ser humilde, repensar -- o que não significa sucumbir aos incitadores do ódio e racistas, que devem ser combatidos sempre, o tempo todo. Nem se deixar levar por uma sociedade pós-verdade, pois os fatos são a base do progresso. Porém, uma punição tão violenta não pode ter uma reação que seja mais do mesmo. Temo pelo mundo em que meus filhos vão viver, mais do que jamais imaginei ser possível.

The New York Times The New York Times

Roger Cohen é colunista do "New York Times". Seu livro mais recente é "The Girl from Human Street: Ghosts of Memory in a Jewish Family."

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