Mar de corrupção no sertão

Fraudes em municípios do Nordeste desviaram R$ 2,9 bilhões em recursos públicos em três anos

Edson Luiz Do Eder Content
Moa Gutterres

Carrapateira, Poço Dantas, Marizópolis, Bernardino Batista e Vieirópolis têm mais em comum do que o Estado da Paraíba, a pequena população, a pobreza, o castigo da seca e os baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH).

Localizadas no sertão nordestino, todas essas cidades foram alvo de inúmeras fraudes em licitações que desviaram mais de R$ 27 milhões de seus minguados cofres públicos --e estão entre dezenas de cidades brasileiras que passaram por uma grande devassa da CGU (Controladoria-Geral da União), da PF (Polícia Federal) e do MP (Ministério Público) a partir de 2014.

De um total de 370 investigações realizadas entre março de 2014 e abril de 2017, 73 aconteceram em Estados nordestinos, região onde o volume de recursos movimentados passou de R$ 2,9 bilhões.

O Nordeste também concentra o maior número de Estados com dependência de 50% a 75% de recursos da União: Paraíba, Sergipe, Maranhão e Piauí, de acordo com o Balanço do Setor Público Nacional, da Secretaria do Tesouro Nacional, divulgado em agosto. As demais unidades federativas do Nordeste recebem entre 25% e 50% da verba federal.

Entre os grandes esquemas de irregularidades praticadas no interior do Nordeste, há desvios em pequenos municípios que envolvem obras de baixo custo e alto impacto para a população.

Em Marizópolis, as investigações apuraram que recursos que deveriam ser destinados à ampliação de escolas, melhoria de ruas e manutenção da praça da cidade foram parar em bolsos alheios.

Em Poço Dantas, com 3.700 habitantes, o dinheiro público desviado deveria ter sido aplicado em manutenção e ampliação de três escolas. Em Carrapateira, a verba de que a corrupção se apropriou era para a recuperação de estradas, uma das carências do município de 2.400 moradores.

Assim como na Lava Jato, o nível elevado de corrupção desdobra as investigações em múltiplas fases. A Operação Andaime, por exemplo, realizada na Paraíba, no Ceará e no Rio Grande do Norte, já está na quarta fase de apuração das fraudes cometidas por empresas de construção civil. Pelo menos 30 pessoas foram presas ao longo da investigação e outras 70 se tornaram rés em ações judiciais.

A situação no sertão nordestino era tão espantosa que uma auditoria da CGU concluiu que duas pequenas empresas fraudaram, sozinhas, 177 licitações.

Para dar uma ideia da dimensão da Operação Andaime, ao todo foram cometidos mais de 420 crimes

As firmas não tinham funcionários, sede, material de construção nem clientes privados, apenas contratos do serviço público. Mesmo assim, a movimentação financeira dessas duas empresas chegava a alguns milhões de reais, dinheiro que foi sacado na boca do caixa do banco, segundo os investigadores.

O esquema milionário, que deixou ainda mais pobres as carentes cidades nordestinas, só veio à tona porque um empreiteiro arrependido resolveu delatar as falcatruas e denunciou outros empresários. Os investigadores acreditam que outros casos ainda podem aparecer e aumentar o número de prefeituras e de recursos envolvidos nos desvios.

Em dezembro de 2015, até choveu dinheiro de corrupção em um bairro do Recife. Foi durante a Operação Pulso, que investigou irregularidades na Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás). O direcionamento de licitações para coleta de plasmas, segundo a PF, desviou R$ 5,2 milhões.

Ao cumprirem um dos 28 mandados de busca e apreensão, agentes federais foram recebidos por maços de dinheiro jogados da janela de um apartamento das Torres Gêmeas, no centro da capital pernambucana. Um dos investigados na operação, o presidente da Hemobrás Rômulo Maciel Filho, residia numa das torres.

Os pacotes de cédulas foram recolhidos pelos policiais, que não informaram a quem pertenciam. Dois dirigentes e diversos funcionários foram presos, afastados de suas funções e denunciados pelo Ministério Público. O processo corre em segredo de Justiça.

Polícia Federal/Divulgação Polícia Federal/Divulgação

Bahia lidera operações de combate à corrupção no Nordeste

Se o Nordeste lidera o ranking das regiões brasileiras onde os investigadores mais atuaram nos últimos três anos no combate à corrupção, a Bahia concentra o maior número de operações na região. Cerca de 40 casos ocorreram em municípios baianos.

Na cidade de Mirante, a cerca de 500 km de Salvador, a Justiça decretou a prisão preventiva de 26 agentes públicos em novembro de 2016. Entre eles, o então prefeito, a primeira-dama, dois secretários da prefeitura e 12 servidores comissionados do município. Quase todos já tinham sido alvo de outras investigações por fraudes em 2015.

Um ano antes, conluio semelhante foi descoberto em Caatiba, distante 550 km da capital baiana, onde o prefeito, sua mulher e dois secretários direcionaram licitações nas áreas de saúde, logística e transporte escolar.

Em Cansanção, também na Bahia, o dinheiro da prefeitura seguia para um grupo empresarial do próprio prefeito que recebeu mais de R$ 20 milhões dos cofres municipais por meio de licitações forjadas.

O ex-prefeito de Mirante Hélio Ramos Silva (PMDB) ganhou liberdade em fevereiro de 2017, com medidas restritivas. Assim como os demais envolvidos, à época da operação da PF em sua cidade, ele não se manifestou sobre a prisão. Os outros acusados também estão em liberdade. Em Caatiba e Cansação, onde houve buscas e apreensões da Polícia Federal, os então prefeitos Junior Mendes (PMDB) e Ranuldo Gomes (PSD), respectivamente, não se pronunciaram, depois da ação da PF.

Esquema semelhante também foi apurado em Capela, município de Sergipe com 34 mil habitantes e distante 70 km de Aracaju. Lá, o ex-prefeito, sua mulher, dois ex-secretários e uma empresária foram acusados de irregularidades na aplicação e prestação de contas de recursos federais, segundo a PF, além de prática de lavagem de dinheiro e crimes de responsabilidade.

Preso e liberado um mês depois, o prefeito foi condenado em abril deste ano a 13 anos e nove meses de prisão por fraudes eleitorais, cometidas em 2012, e a outra pena de um ano por calúnia e difamação. Nos dois casos, ele recorreu em liberdade. Enquanto isso, a ex-primeira-dama ocupou a vaga do marido na Prefeitura de Capela.

Políticos com mandato são protagonistas das fraudes

O envolvimento de políticos com mandato em práticas corruptas não é exclusividade dos altos escalões federais sediados em Brasília. No interior do Nordeste, as ações da Polícia Federal mostraram que a prática é disseminada.

Em agosto de 2015, a pequena cidade maranhense de Bom Jardim, com 40 mil habitantes, testemunhou o contraste entre a ostentação nas redes sociais da jovem prefeita Lidiane Leite, de 25 anos, ao mesmo tempo em que alunos da rede municipal tiveram o período de aulas reduzido por falta de merenda.

Lidiane, que ganhou notoriedade nacional também pelos 39 dias em que passou foragida, foi acusada de desviar R$ 15 milhões da educação. Ficou 11 dias presa e saiu sob habeas corpus com tornozeleira eletrônica para responder aos processos em liberdade. O advogado da ex-prefeita, Carlos Sérgio de Carvalho, afirma que "ser gestor não é fácil e todos estão sujeitos a erros, mas de antemão podemos afirmar que ela (Lidiane) não se apropriou de nenhum recurso público”.

Em 23 de setembro de 2017, Lidiane foi condenada pelo Tribunal de Justiça do Maranhão por 'uso unicamente pessoal' de R$ 1 milhão destinado ao asfaltamento de duas ruas da cidade. A sentença prevê a devolução do dinheiro e a perda dos direitos políticos da ex-prefeita por cinco anos

Moa Gutterres Moa Gutterres

Em abril de 2014, dois prefeitos, dois ex-prefeitos, quatro vereadores, cinco secretários municipais e nove servidores foram presos durante uma ação da Polícia Federal que desbaratou outra organização criminosa que atuava em 20 cidades baianas.

Segundo a PF, foram desviados R$ 30 milhões dos cofres públicos no direcionamento de serviços de obras, transporte escolar, fornecimento de medicamentos e até promoção de eventos sociais. As investigações começaram na Prefeitura de Fátima, onde empresas sem qualquer estrutura eram usadas nas fraudes.

Já em Riacho do Santana, cidade baiana com menos de 30 mil habitantes, outro grupo atuava isoladamente, mas também contou com o apoio do então prefeito local, para desviar R$ 3,3 milhões destinados ao transporte escolar.

O prefeito Tito Eugênio Cardoso (PDT) foi preso na Operação Imperador, assim como o chefe de gabinete da prefeitura. Em janeiro deste ano, Cardoso afirmou que não havia provas contra ele. "Lamento que meu nome, construído com tanto sacrifício, tenha sido destruído dessa forma. Não me envolvi em nada errado", disse o ex-prefeito a uma rádio local.

Em Redenção do Gurguéia, pequeno município do Piauí com cerca de 8.000 habitantes, as fraudes foram no fornecimento de merenda e transporte escolar. Com ajuda do prefeito local, um vereador, dois secretários e vários empresários, foram desviados R$ 4,2 milhões dos cofres municipais.

Além de prender o prefeito Delano Parente (PP), a Operação Déspota executou 18 mandados de prisões temporárias e preventivas. Parente entrou com recurso e apresentou novos documentos para sanar os problemas encontrados na investigação.

Segundo ele, os papéis demonstram que não houve malversação de recursos públicos, desvios, superfaturamento ou omissão no âmbito da sua competência e que adotou medidas necessárias para que não houvesse qualquer lesão ao patrimônio público.

Em 2016, uma investigação de irregularidades em licitações em pelo menos 18 municípios da Bahia levou o Ministério Público Federal a denunciar os deputados estaduais Carlos Ubaldino de Santana e Angela Maria de Sousa, ambos do PSD.

Além dos parlamentares baianos, o MPF denunciou um ex-prefeito de Ruy Barbosa, cidade de 32 mil habitantes localizada na área da Chapada Diamantina, e outras dez pessoas pelo desvio de R$ 43 milhões em verbas destinadas à educação. O MPF pediu R$ 10 milhões de cada um como reparação por danos morais coletivos.

Os deputados denunciados na Operação Águia de Haia alegaram inocência. Segundo a assessoria de Angela Sousa (PSD), a parlamentar ressalta que, em mais de 20 anos na vida pública, sempre teve uma conduta ilibada, nunca participou de qualquer esquema fraudulento e também não praticou ato ilícito de desvio de recurso público. O deputado Carlos Ubaldino de Santana (PSD) afirmou que é inocente e, como cristão, "não deve, não teme" e que o povo acredita na sua inocência.

Saques em série no Maranhão

No Maranhão, um esquema bilionário de fraudes atingiu diretamente uma área crucial para a população. Pelas contas da Polícia Federal, pelo menos R$ 1 bilhão foi desviado do sistema de saúde do Estado.

O alvo da Operação Sermão dos Peixes --batizada em alusão à repreensão dada pelo padre Antônio Vieira aos colonos, em 1654, ao criticá-los sobre a prática da corrupção-- eram organizações não governamentais encarregadas de gerenciar unidades hospitalares no interior ao longo dos últimos três anos.

Só o volume de saques em dinheiro, realizados desde 2015, variou entre R$ 18 milhões e R$ 36 milhões --algo como entre 36 e 72 malas semelhantes à que a Polícia Federal flagrou o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) recebendo da JBS numa pizzaria paulistana.

Foi necessário que os investigadores ficassem de campana por 70 dias para flagrar os saques. Neste período, havia uma retirada frequente de dinheiro em espécie que era entregue diretamente aos dirigentes das entidades e a políticos locais. Nas quatro fases da operação, cerca de 30 pessoas foram presas, mas algumas já se encontram em liberdade.

Moa Gutterres Moa Gutterres

Consórcios fraudulentos se espalham na região

Outra prática que cresceu no Nordeste nos últimos dois anos foi a formação de consórcios fraudulentos envolvendo agentes públicos e empresas. Organizações criminosas se utilizam de várias empresas para burlar licitações sem despertar suspeitas nos certames.

A merenda escolar, um atrativo para manter crianças na sala de aula em pequenas cidades do Nordeste, foi um dos alvos frequentes dos consórcios, assim como o serviço de transporte escolar.

Em Alagoas, pelo menos 14 municípios foram investigados pela Polícia Federal e CGU durante a Operação Brotherhood, realizada para combater os desvios de recursos em licitações. Apenas numa primeira etapa da ação policial, foi constatado um prejuízo superior a R$ 12 milhões, dinheiro que era destinado à merenda escolar.

Também em Alagoas os investigadores identificaram que o esquema cooptava diretores de escolas para apresentarem planilhas das firmas fantasmas em troca de 10% do superfaturamento dos produtos. Já em Ibateguara, cidade alagoana com menos de 16 mil habitantes, a fraude foi na locação de veículos para o transporte escolar e gerou um rombo superior a R$ 18 milhões.

Em Cocal, no Piauí, a CGU descobriu também que as empresas contratadas entre 2013 e 2015 para fazer o transporte escolar não tinham sede e muito menos capacidade operacional para atuar no ramo. As firmas, que eram do Ceará, operaram apenas como intermediárias entre a prefeitura e os executores de fato do serviço, causando mais de R$ 18 milhões de prejuízos.

No interior de Pernambuco, agentes da Polícia Federal identificaram desde um cartel de livrarias e papelarias até o pagamento de verbas com as licitações ainda em curso. Em Serrita, cidade no sertão pernambucano onde a PF já esteve em 2008 investigando desvio de recursos públicos, os agentes voltaram seis anos depois para apurar um superfaturamento de mais de 80% em licitações de dois programas federais. O prejuízo: R$ 2 milhões.

Em fevereiro deste ano, outro cartel foi descoberto pela PF, desta vez atuando nas áreas da saúde em Agrestina (PE). O esquema era comandado por um ex-secretário municipal e se estendia a outras oito cidades pernambucanas, cujos contratos somaram mais de R$ 80 milhões. Para cooptar alguns prefeitos, o grupo os presenteava com carros de luxo, uma forma de pagamento pelas vantagens obtidas.

Nos pequenos municípios pernambucanos de Itapetim e Brejinho, empresas de fachada receberam os R$ 40 milhões contratados em três anos para serem investidos em obras nas áreas de educação, saúde e infraestrutura. Detalhe: os repasses foram feitos com as concorrências ainda em curso, o que também foi descoberto em Passira, Limoeiro e Glória do Goitá. Nessas cidades, houve direcionamento de licitações para o serviço de transporte escolar envolvendo uma verba superior a R$ 50 milhões em quatro anos nos três municípios.

"Kit licitação"

A descoberta da comercialização de "kits licitação" por uma organização em cidades do interior da Paraíba, em 2012, abriu caminho para uma grande devassa no Estado.

Em 2015, uma força-tarefa formada pelos órgãos de fiscalização e o Ministério Público investigou 15 empresas que se alternaram nas licitações de obras em 83 prefeituras paraibanas.

Em três anos, essas empresas receberam em torno de R$ 45 milhões, segundo o Tribunal de Contas do Estado (TCE-PB), mas parte do trabalho foi executado pelos próprios municípios.

A prática, segundo a CGU, também acontecia em Arara, Araçagi, Barra de São Miguel, Cruz do Espírito Santo, Mulungu e Salgado de São Félix, no interior do Estado.

Entre 2014 e 2015, por exemplo, cidadãos da cidade de Patos se mobilizaram para fazer o que a empreiteira contratada deveria ter feito: construir 11 unidades básicas de saúde, uma academia de saúde e uma quadra de esportes. O prejuízo foi de R$ 807 mil.

Curtiu? Compartilhe.

Topo