Bilhões de reais em família

Esquemas no Centro-Oeste revelam fraudes com parentes de políticos e servidores públicos de diversos escalões

Edson Luiz Do Eder Content
Moa Gutterres

Simbólica no combate à corrupção no país pelos números que produziu, a Operação Lava Jato tornou-se referência também por ter investigado ramificações em diversas esferas dos Poderes.

O modelo foi adotado em outros casos, como em Mato Grosso do Sul, onde a Operação Lama Asfáltica chegou à sua quinta fase para desmontar um gigantesco esquema de fraudes e corrupção que já desviou mais de R$ 150 milhões dos cofres públicos, segundo a Polícia Federal. Deflagrada em julho de 2015, já levou 15 pessoas para a cadeia --que hoje aguardam o fim das investigações em liberdade.

Em Mato Grosso, a retirada do sigilo da delação premiada do ex-governador Silval da Cunha Barbosa levou o STF (Supremo Tribunal Federal) a determinar, em agosto deste ano, abertura de inquérito para apurar o destino de R$ 310 milhões desviados dos cofres do Estado entre 2004 e 2014.

Na delação, Barbosa acusou políticos com mandato, deputados estaduais, conselheiros do TCE (Tribunal de Contas do Estado), empresários, agiotas, ex-secretários, grandes empresas e o ministro da Agricultura, Blairo Maggi --que negou participação no esquema.

A delação de Barbosa mostrou cenas que os brasileiros já viram antes e têm vergonha de ver de novo: políticos enchendo caixas, mochilas, bolsos e bolsas com dinheiro oriundo de corrupção.

Imagens registradas também em Brasília, em 2015, durante a Operação Caixa de Pandora, a primeira a prender um governador no exercício do mandato. Desencadeada para apurar desvios de dinheiro público, a investigação levou o ex-governador José Roberto Arruda (ex-PSDB, ex-DEM, ex-PR, atualmente sem partido) direto do Palácio do Buriti para a prisão.

Gravado recebendo maços de dinheiro do presidente da Companhia de Desenvolvimento do Planalto, Durval Barbosa, Arruda (então no DEM) alegou que "os recursos eventualmente recebidos foram regularmente registrados ou contabilizados" em sua campanha. Posteriormente, em entrevista, afirmou que recebeu o dinheiro e o devolveu - trecho que teria sido apagado do vídeo, segundo o ex-governador. Em maio deste ano, José Roberto Arruda foi condenado em primeira instância a três anos e dez meses de prisão em regime semiaberto por usar notas falsas de compra de panetones para justificar o que recebeu como caixa dois.

O Centro-Oeste foi alvo de mais de 50 operações das 370 ações desencadeadas pela PF e os órgãos de fiscalização e controle no mesmo período da Lava Jato, iniciada em março de 2014.

Somadas as operações nos quatro Estados e no Distrito Federal, os recursos desviados chegam a cerca de R$ 3 bilhões, maior valor entre todas as regiões do país, no levantamento  feito pela reportagem. Foram reunidos dados de 370 operações contra fraudes e corrupção realizadas pela PF (Polícia Federal), pela CGU (Controladoria-Geral da União) e pelo MP (Ministério Público), entre março de 2014 e março de 2017.

Em alguns casos, grandes golpes contra os cofres públicos se misturaram a delitos de menor porte com grande impacto para a população. Como em quase todas as falcatruas, também envolveram políticos e servidores dos mais diversos escalões.

Negócios em família

Abreulândia, no Tocantins, tem apenas 2.500 habitantes. Em dezembro de 2015, os órgãos de fiscalização descobriram o desvio de R$ 2,6 milhões dos cofres municipais destinados ao pagamento de obras que seriam realizadas por empreiteiras. Os serviços, no entanto, foram executados por servidores da prefeitura, segundo a CGU.

Os acusados são o ex-prefeito Elieze Venâncio (PSB), a irmã dele, que era secretária de Administração, o irmão, secretário de Finanças, além de outro servidor da Secretaria Municipal de Educação.

Afastado do cargo em dezembro de 2015 por 180 dias, Venâncio não se manifestou sobre as acusações e reassumiu em junho de 2016 por decisão do Tribunal de Justiça do Tocantins.

Menos de dois meses depois, a Justiça Federal determinou seu afastamento pela segunda vez. Em outubro de 2016, Venâncio concorreu à reeleição e foi derrotado nas urnas.

Outras cidades no Estado adotaram o mesmo esquema, segundo as investigações. Em Sampaio, ex-prefeitos, familiares e empresários utilizaram funcionários públicos como mão de obra para desviar o dinheiro destinado à contratação de empresas.

Em Piraquê, cidade de 3.000 habitantes, os recursos desviados somaram R$ 3 milhões. Em Araguatins, a concorrência para a realização de 11 obras foi vencida por empresas ligadas a familiares de políticos locais. O valor pago pela prefeitura foi de R$ 4 milhões, mas o trabalho contratado não foi concluído.

Em abril de 2017, na Operação Rota 26, policiais federais descobriram o envolvimento de vários ex-prefeitos em fraudes semelhantes. O dinheiro público foi desviado de obras de estradas rurais, somando R$ 1,5 milhão, com a participação de servidores do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Polícia Federal/Divulgação Polícia Federal/Divulgação

"Gado de papel" e aviões que teriam de ser abastecidos no ar

Quando realizou a primeira fase da Operação Lama Asfáltica em Mato Grosso do Sul, em 2015, PF (Polícia Federal), CGU (Controladoria-Geral da União) e MP (Ministério Público) não esperavam que o caso se estendesse por mais dois anos. O volume de delitos era tão grande que foi necessário formar uma força-tarefa para avançar nas investigações, que descobriu desvios de pelo menos R$ 150 milhões em atividades que iam de obras de rodovias até compras de livros. Com isso, a operação original desdobrou-se em outras três: Fazendas de Lama, Aviões de Lama e Máquinas de Lama.

Para maquiar a movimentação do dinheiro fraudado, os envolvidos faziam negociações fictícias com aeronaves, propriedades rurais e aluguéis de maquinários. Um dos acusados na Lama Asfáltica era o ex-governador do Estado André Puccinelli (PMDB). Na lista de obras investigadas estão o Aquário do Pantanal e as rodovias MS-171, MS-228 e MS-187 --todas executadas na administração do peemedebista.

Na época da operação, a assessoria do ex-governador informou que "todas as contratações seguiram rigorosamente a legislação vigente e aplicável ao caso" e "que ele não tem nada a esconder".

Levado coercitivamente para a sede da PF em Campo Grande, saiu de lá usando uma tornozeleira eletrônica e teve os bens bloqueados. Os outros envolvidos eram ex-secretários, empresários e vários servidores públicos. O processo corre em segredo de Justiça.

No Tocantins, a Polícia Federal chegou a três esquemas que totalizaram R$ 600 milhões em desvios. Um deles era uma prática de lavagem de dinheiro público, chamada de "gado de papel", envolvendo a compra e venda fictícia de fazendas e cabeças de gado. A fraude envolvia transações em que a extensão da área negociada não seria suficiente para abrigar a quantidade de gado adquirida.

A PF também identificou distorções no aluguel de aviões pelo governo do Tocantins. Os valores pagos por horas de voo obrigariam as aeronaves a reabastecerem em pleno ar, segundo os levantamentos

Na Operação Reis do Gado, realizada em novembro do ano passado para desbaratar o esquema, a PF informou que a lavagem de dinheiro somou cerca de R$ 200 milhões. Na ação, sete pessoas foram presas, inclusive parentes do governador Marcelo Miranda (PMDB-TO), conduzido coercitivamente para depor.

Ao final de seu mandato, em dezembro de 2016, Miranda disse que os políticos acusados pela PF na operação "sempre serviram ao Estado do Tocantins e não merecem o que estão passando" --referindo-se aos ex-governadores Siqueira Campos (PSDB) e Moisés Avelino (PMDB). "Se houve um acontecimento externo, a intenção dos governantes não é fazer mal a sociedade. Nós queremos sempre o melhor para o Estado", afirmou. Todos os bens de Marcelo Miranda, do pai e de um dos irmãos foram bloqueados. 

Um mês antes, a Polícia Federal já tinha encontrado outro esquema no Tocantins para desviar dinheiro público.

Durante uma investigação, que depois gerou a Operação Ápia, desencadeada em quatro etapas, foi identificado o direcionamento de recursos na contratação de 1.500 caminhões de brita. Se enfileirados, os caminhões teriam uma extensão de 27 km, percurso maior do que a rodovia para onde o material era destinado. E mais: em alguns contratos os valores cobrados eram equivalentes a 24 horas ininterruptas de trabalho.

Moa Gutterres Moa Gutterres

O rombo total foi de R$ 200 milhões, dinheiro liberado para as obras e que também iria abastecer campanhas políticas.

“O extrato de pagamento das obras investigadas apresentou um salto altamente significativo nos anos e, especialmente, nos meses que precederam as eleições de 2014”, afirmou o delegado Júlio Mitsuo Fujiki no final de julho de 2017, quando indiciou o ex-governador Sandoval Cardoso (SD) e outras 28 pessoas. Cardoso chegou a ser preso, mas pagou fiança de R$ 50 mil e aguarda em liberdade. Ao deixar a prisão, o ex-governador afirmou que irá provar sua inocência.

Outra prática milionária investigada no Tocantins foi classificada como cruel pelo juiz federal Aldeimar Aires Pimenta ao decretar a prisão de seis pessoas durante a Operação Pronto Socorro, realizada em 2014.

A ação revelou fraudes de mais R$ 200 milhões em licitações da Secretaria Estadual de Saúde. “O desvio ou a apropriação de verbas destinadas à saúde pública, se confirmado ao final da instrução, constituiu um ato de perversão e crueldade porque atinge diretamente a população mais pobre e vulnerável deste Estado”, afirmou o magistrado.

Cinco servidores estaduais foram presos, entre eles uma ex-secretária de Saúde, além de um empresário.

Polícia Federal/Divulgação Polícia Federal/Divulgação

Quando agentes públicos se tornam cúmplices

Independentemente do tamanho das fraudes, as ações desencadeadas pela PF e órgãos de fiscalização têm detectado, cada vez mais, a cumplicidade de servidores com as quadrilhas que agem na administração pública.

Em Cáceres (MT), cidade com cerca de 91 mil habitantes, 30 dos 47 presos na Operação Fidare da Polícia Federal, em abril de 2014, eram funcionários do município. Segundo as investigações, eles teriam contribuído para o desvio de R$ 2,5 milhões em recursos de três programas financiados pelo governo federal na cidade. A denúncia foi feita pelo próprio prefeito, que depois também passou a ser investigado.

No ano passado, a partir de uma investigação no Entorno de Brasília, a CGU, a PF e o Ministério Público descobriram que pelo menos R$ 4,5 milhões estavam sendo desviados da Companhia de Saneamento de Goiás (Saneago) para abastecer um esquema de propina e pagamentos de campanhas políticas. Em agosto de 2016, agentes da PF prenderam 15 pessoas e fizeram diversas buscas em três cidades de Goiás, inclusive no diretório do PSDB, partido que governa o Estado atualmente. Oito servidores da estatal foram afastados de suas funções.

Na outra ponta, geralmente estão cidadãos que dependem do poder público ou de seus servidores, como aconteceu em Amambai (MS), cidade com menos de 35 mil habitantes a 300 km da capital, Campo Grande. A PF e a Previdência Social descobriram que um funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) estava à frente de um grupo que registrava crianças como filhos de indígenas mortos para requerer pensões e cadastrava índios paraguaios como brasileiros para obter aposentadoria rural. Total da fraude: R$ 4,6 milhões.

Moa Gutterres Moa Gutterres

Em São Simão, pequeno município no interior de Goiás com uma população de 17 mil pessoas, as vítimas da corrupção foram as crianças do ensino infantil.

As investigações apontaram que, entre 2013 e 2016, a prefeitura fraudou em R$ 200 mil quatro licitações para a compra de merenda escolar. A Polícia Federal escolheu um nome sugestivo para a operação que prendeu o prefeito da cidade: Recomeço. Ou seja, os estudantes poderiam ter de volta a merenda com regularidade, o que não estava acontecendo. Além do prefeito, os desvios contaram com a participação de outros servidores públicos.

Em Rosário Oeste, cidade de 18 mil habitantes na região central de Mato Grosso, se a PF não tivesse agido, os cofres da Previdência poderiam ter um rombo maior que o R$ 1 milhão descoberto. No município, que tem apenas uma cadeia pública, os investigadores descobriram que a concessão de auxílio-reclusão representou 6,24% dos benefícios pagos no ano passado, 12 vezes acima da média nacional, que é de 0,49%.

O volume pago superou a soma do benefício pago nos municípios vizinhos de Rondonópolis, Cáceres e Várzea Grande. A fraude envolveu a falsificação de certidões que elevavam penas de detentos, entre outras distorções. O auxílio-reclusão é um benefício pago pela Previdência aos dependentes do segurado do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) preso em regime fechado ou semiaberto.

Em Formosa (GO), a conivência de servidores da Previdência Social viabilizou um rombo de pelo menos R$ 31 milhões ao erário em um esquema de fraudes em vigor havia dez anos. A PF desvendou o esquema em junho de 2015, ao identificar irregularidades em 400 benefícios. Sem a investigação, os prejuízos poderiam chegar a R$ 170 milhões. 

Três décadas de trabalho fantasma

Em Jataí, no interior de Goiás, um servidor fantasma da Secretaria Estadual da Saúde recebeu mais de R$ 1 milhão ao longo de 30 anos sem nunca ter dado expediente na repartição pública. Funcionário da União, ele era diretor financeiro de um grupo empresarial do ramo moveleiro com atuação em todo o país. No emprego privado, tinha uma remuneração maior do que os R$ 4.000 que recebia como servidor público.

O servidor fantasma só se materializava na repartição para assinar o ponto diariamente e receber seus proventos no final do mês. A vida dupla tinha o apoio dos colegas de trabalho e se estendeu até agosto de 2016, quando a Polícia Federal descobriu a farsa.

Curtiu? Compartilhe.

Topo