A voz de Deus

Cid Moreira chega aos 90 anos em atividade, diz não sentir falta do "JN" e que sua missão é narrar a Bíblia

Gilvan Marques Do UOL, em Campinas (SP)
Rodrigo Souto/UOL
Montagem/UOL Montagem/UOL

Ícone da TV brasileira, reconhecido até hoje por sua voz, Cid Moreira, ou Cidão, como é conhecido pelos amigos, chegou aos 90 anos sem planos de se aposentar. Ainda contratado da Globo, diz não sentir falta da bancada do "Jornal Nacional" e que sua verdadeira missão é narrar a Bíblia, atividade que começou no final dos anos 90.

Não tenho saudade nenhuma porque hoje, na altura dos meus 90 anos, eu vivo uma fase que considero mais gloriosa: eu invisto em mim levando a palavra de Deus sempre que eu posso. É uma missão que vou cumprir até o último dia da minha vida.

Com mais de 60 milhões de cópias de suas leituras da Bíblia vendidas, o apresentador ainda empresta sua voz para narrações no "Fantástico", estreou recentemente na publicidade --após ser liberado pela emissora--, faz sucesso com o seu Canal da Bíblia no YouTube e realiza palestras pelo país. Incansável, se prepara para seu próximo projeto: narrar poemas de domínio público. 

A reportagem do UOL passou um dia ao lado do jornalista na clínica Cevisa, em Campinas (SP), onde estava hospedado para a realização de um check-up e o tratamento de uma dor na coluna. Ele estava acompanhado da mulher, a jornalista Fátima Moreira, com quem se relaciona há 16 anos.

Com uma memória prodigiosa, ele relembrou os 27 anos como âncora do "JN", o dia que tentou "subornar" um diretor da Globo para fazer um comercial com cachê de 1 milhão, a recusa de R$ 2 milhões para fazer propaganda de carne ao lado de Fátima Bernardes e a aplicação de silicone líquido no rosto que quase resultou na perda da visão.

O locutor, como gosta de se definir, fala ainda o que pensa sobre a morte, declara o seu amor à companheira, e garante que a vida sexual "vai muito bem, obrigado".

Cid só perde o bom humor quando é questionado sobre o relacionamento com os dois filhos, de casamentos anteriores. Um deles o processou em 2008 por danos morais, alegando falta de afeto e pedindo indenização de R$ 1 milhão.

"Não sinto saudades do JN"

Rodrigo Souto/UOL Rodrigo Souto/UOL

"Tentei subornar diretor"

Apresentador lembra proposta milionária para fazer comercial de TV

Cid Moreira sempre foi um profissional bastante requisitado por agências de propaganda. Nos anos 1960, por exemplo, de cada 10 anúncios no horário nobre da TV pelo menos 8 tinham a voz inconfundível do locutor.

De olho nesta popularidade, a Colgate enviou um representante dos Estados Unidos para contratar a principal voz do mercado local. O problema é que, àquela altura, em 1969, a Globo já havia divulgado a regra interna proibindo seus jornalistas em propagandas. Mas a empresa não desistiu e ofereceu uma quantia muito grande para a época: 1 milhão na moeda nacional.

Eu tentei subornar a direção oferecendo 10%. Armando Nogueira, diretor de jornalismo que era muito amigo meu, disse 'Não. Você vai ter que escolher'. Aumentei [o valor] para 20%, mas não adiantou. Então pensei, pensei, e resolvi ficar no jornalismo.

Liberado da regra pela Globo só recentemente, Cid conta que foi abordado pelo grupo JBS. A proposta, desta vez, era estrelar comerciais de carne ao lado de Fátima Bernardes. O cachê era ainda mais tentador: R$ 2 milhões. Sem entrar no mérito das investigações à empresa, alvo de cinco operações da Polícia Federal, o apresentador afirma ter recusado a proposta sem arrependimentos por ser vegetariano. "Tenho princípios".

Os bastidores da notícia

  • Incêndio no estúdio

    "Botaram um plástico em um dos holofotes e, com o calor, aquilo começou a pegar fogo. O jornal estava no ar, eu e o [Sérgio] Chapelin na bancada. O fogo gerou fumaça e a gente não sabia se continuava. Depois, colocaram o slide do 'JN' e fomos para os comerciais."

    Imagem: Reprodução/Globo/CEDOC
  • Apresentação de short

    "Foi num sábado de Carnaval. Eu estava descendo a serra e, por causa de um temporal, caíram árvores. Vim por Teresópolis e, por isso, perdi muito tempo. Cheguei em cima da hora. Faltavam cinco minutos e o Léo Batista já estava sentado na bancada. Eu tinha camisa, gravata e paletó. Como era só da cintura para cima, botei e sentei. De vez em quando, ainda tenho pesadelos [com o episódio]."

    Imagem: FSP-TV.Folha
  • Mosca invasora

    "Espantei [a mosca] com a mão durante a apresentação. Por causa disso, foi proibido comer lanche dentro do estúdio. Dava até demissão neste caso. As pessoas comiam na redação e isso atraía moscas."

    Imagem: Reprodução / YouTube

"Eu sou apolítico"

Cid se exime de cobertura na ditadura militar e relata convite para o Senado: "Não é a minha praia"

À frente do telejornal de maior audiência do país por quase três décadas, Cid Moreira era a voz oficial da Globo no período mais difícil da história recente do Brasil, a ditadura militar (1964 - 1985). A emissora foi acusada de ter apoiado o regime --em 2013, o grupo admitiu o apoio por meio de um editorial e fez um mea culpa.

Sobre o tema, o apresentador é econômico nas palavras e minimiza seu papel como âncora mais longevo da emissora. "Sobre isso aí eu não falo, mesmo porque eu não era editor do jornal. Eu era apresentador. Ia para a Redação apenas para apresentar e ler. Então, não tenho responsabilidade nenhuma".

Mesmo definindo-se como "apolítico", Cid revela o convite que recebeu para concorrer a uma das cadeiras do Senado. Sem identificar o partido, conta que recusou logo em seguida. 

Eu sou apolítico, não gosto de política. Fui convidado para ser senador. Acho que [o sujeito] estava de porre, não tenho jeito para isso, não é a minha praia.

Incomodado com o assunto, ele arrisca dizer que a falta de "patriotismo ao brasileiro" é a causa da atual crise política. "O que está faltando [ao brasileiro] é amor à pátria. Se todo o mundo amasse a pátria, amasse o Brasil, então o país seria uma potência e a crise política de hoje não existiria. Onde há ordem, há progresso”.

A reportagem lembra a ele que Valéria Monteiro, sua colega na bancada do "JN" nos anos 1990, quer se candidatar à presidência da República. "Eu acho uma maravilha. O Luciano Huck parece que desistiu. Mas se eles acham que são capazes é um problema deles", desconversa.

Vitalidade, vaidade, vida sexual

Rodrigo Souto/UOL Rodrigo Souto/UOL

Silicone no rosto

Cid relata intervenção estética para atenuar ruga que quase o fez perder a visão: "Fiz bobagem"

Além da voz grave e singular, a boa pinta e os holofotes da bancada fizeram de Cidão um homem muito assediado, principalmente nos anos 1970 e 1980. "Na época, fui considerado um dos dez mais [bonitos da TV], mas isso nunca me contaminou".

Ele lembra ter recusado papéis no cinema --em que atuou como narrador e dublador-- e na televisão. "Fui substituído pelo Adriano Reis, um dos galãs da época", conta, orgulhoso. Mesmo sem admitir ser um homem vaidoso, é traído pelas próprias palavras. "Está bagunçando o meu cabelo", reclama ele para a mulher, Fátima, que tenta arrumar a cabeleira branca para a gravação.

Nos anos 1970, um amigo aconselhou o apresentador a realizar a aplicação de silicone líquido para atenuar uma ruga na testa e, assim, deixá-lo com uma expressão mais simpática no ar. Seria, ele afirma, sua primeira e única intervenção estética.

Cid seguiu o conselho, mas o resultado não foi muito bem o que imaginava. Após a aplicação, o silicone escorreu pelo rosto e quase o levou à perda da visão.

"O produto começou a descer e criou uma 'bola'. Batia e doía. Fui obrigado a corrigir com vários cirurgiões", relembra.

Soube depois que se não tivesse corrigido, o globo ocular poderia ser 'travado'. Já pensou? O silicone foi uma bobagem.

Em 1999, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que proíbe o uso do silicone líquido no organismo humano. O seu uso pode provocar lesões em várias partes do corpo e levar à cegueira. 

Processado pelo filho: "Deixei para trás"

Cid Moreira casou-se quatro vezes e teve três filhos: uma menina e dois meninos --um deles, adotivo. A menina morreu cedo, e os outros dois mantêm pouco contato com o pai atualmente.

O filho mais velho o processou em 2008 por danos morais, alegando falta de afeto e pedindo indenização de R$ 1 milhão. O apresentador ganhou o processo, mas os dois nunca mais tiveram contato.

Falar sobre o episódio é o único momento da entrevista que o tira do sério. "Prefiro não tocar [no assunto]. É uma fase que eu deixei para trás. Sempre existiu [o carinho entre pai e filho]. Mas, como eu disse, sou um homem de fases". E lamenta:

A fase passou, fracassou. Houve várias tentativas, que não deram certo.

Rodrigo Souto/UOL Rodrigo Souto/UOL

"Não uso esses Viagras da vida"

Jornalista diz que a vida sexual "vai bem, obrigado" e o segredo é "continuar apaixonado"

Cid Moreira e a atual mulher, a jornalista Fátima Sampaio Moreira, estão juntos há 16 anos. Os dois se conheceram durante uma entrevista que ela fez com ele para a revista "Caras", em 2001. 

O locutor conta que sentia-se solitário após dois anos solteiro e havia pedido em suas orações uma nova namorada depois de três casamentos desfeitos. "Eu tinha pedido a Deus uma companheira e senti pela vibração que seria ela. Fátima foi um presente de Deus", derrete-se.

Sem hesitação, Cid diz, sorridente, que "a vida sexual vai bem, obrigado".

Não uso nada desses Viagras da vida. É preciso que tenha uma atração. Me apaixonei e continuo apaixonado. Está tudo em dia.

Sempre ao lado do companheiro, Fátima, que é 36 anos mais jovem, diz nunca ter dado bola para a diferença de idade. Mas relata já ter sofrido preconceito ao lado de Cid. 

"Um rapaz do Detran pegou os documentos e me perguntou se eu era filha dele. Eu disse: 'Não, sou a esposa'. Esperei na fila para pegar o documento e, no final, ele me abordou de novo e perguntou: 'Como você teve coragem de casar com aquele velho?' Fiquei chocada", relembra.

Amigos de longa data

  • William Bonner

    "É um ótimo profissional. Um dia eu falei para ele: 'Eu estou no Guiness Book, com 25 anos na bancada, e você tem tudo para bater o meu recorde'. Daí ele falou: 'Não me deseje esse mal'".

    Imagem: Reprodução/TV Globo
  • Glória Maria

    "Uma ótima pessoa. É minha amiga, desde o começo. Quando fui para a Globo era ela bem novinha"

    Imagem: Divulgação
  • Chico Anysio (1931 - 2012)

    "Trabalhamos juntos e, durante um período muito grande, eu anunciava onde ele ia se apresentar. Nós éramos muito amigos."

    Imagem: Bandnews

"Vivo a minha fase final"

"Eu não tenho medo da morte, não. De jeito nenhum. Quando Ele quiser, espero eu, não sendo pretensioso, mas quero estar nos braços Dele"

Sobre como encara a morte após chegar com saúde aos 90 anos

Edição: Amauri Arrais | Edição de imagens: Marcio Komesu | Imagens: Rodrigo Souto | Reportagem: Gilvan Marques 

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