A democracia ameaçada

O Reino Unido votou pela saída da União Europeia, chocando o mundo

Francis Fukuyama
Petras Malukas/AFP

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Quando líderes usam a validação democrática para enriquecer e reprimir a oposição, todos perdem.

No Vale do Silício, onde moro, a palavra "ruptura" tem um significado indiscutivelmente positivo: milhares de jovens inteligentes chegam aqui todo ano na esperança de romper com os métodos tradicionais de negócios –e, com isso, se tornam extremamente ricos.

Para praticamente todo o resto do mundo, ruptura não é boa coisa. Por natureza, o ser humano valoriza a estabilidade e a ordem. Aprendemos a ser adultos acumulando hábitos previsíveis e criamos laços uns com os outros valorizando nossos ancestrais e as tradições. Por isso, não é surpresa que, no mundo globalizado de hoje, muita gente se veja incomodada com a interrupção de práticas estabelecidas devido às poderosas forças tecnológicas e sociais, mesmo que se veja melhor em termos materiais.

É claro que a globalização gerou benefícios enormes. Entre 1970 e a crise financeira de 2008, a produção mundial quadruplicou e os benefícios não chegaram exclusivamente só aos ricos. De acordo com o economista Steven Radelet, o número de pessoas que vivem na pobreza extrema em países em desenvolvimento caiu de 42% em 1993 para 17% em 2011, enquanto a porcentagem de criadas nascidas nesses mesmos países que morreram antes do quinto aniversário despendou de 22% em 1960 para menos de 5% em 2016.

Só que estatísticas como essas não refletem a experiência vivida por muita gente. A mudança das operações de manufatura do Ocidente para regiões onde a mão de obra é barata significa que a classe média asiática, em ascensão, cresceu à custa das comunidades trabalhadoras dos países ricos. Do ponto de vista cultural, o forte movimento de ideias, pessoas e bens pelas fronteiras nacionais mexeu com as comunidades e os meios tradicionais de se fazer negócio. Para alguns, isso representa uma tremenda oportunidade, mas para outros é uma ameaça.

Kevin Lamarque/Reuters Kevin Lamarque/Reuters

Essa ruptura está intimamente ligada ao crescimento do poderio norte-americano e a ordem mundial liberal que os EUA criaram desde o final da Segunda Guerra Mundial. É compreensível que tenha havido consequências tanto contra os Estados Unidos como quanto dentro do país.

Os sistemas políticos modernos são classificados como democracias liberais porque unem dois princípios díspares: o liberalismo é baseado no estado de Direito que mantém um nível de igualdade para todos os cidadãos, principalmente a garantia à propriedade privada, essencial para o crescimento econômico e a prosperidade. A parte democrática, a escolha política, reforça as decisões comuns e envolve a cidadania como um todo.

De uns anos para cá, testemunhamos revoltas da segunda parte dessa equação contra a primeira; o fenômeno foi enfatizado de forma mais contundente há dois anos, pelo primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, quando afirmou que seu país procurava ser um "Estado iliberal". Em 2014, quando seu partido, o Fidesz, ganhou a maioria do voto popular e a imensa proporção do Parlamento, ele começou a modificar a constituição para centralizar o poder em suas mãos. A seguir, passou a reprimir os canais de imprensa que lhe faziam críticas e as ONGs que não controlava.

Com isso, Orbán estava imitando Vladimir Putin, provavelmente o principal praticante mundial da democracia iliberal. O russo se tornou extremamente popular em seu país, principalmente depois da anexação da Crimeia, em 2014. E não se sente cerceado pela lei: tanto ele como seus comparsas usam o poder político para enriquecer e garantir, através de seus negócios, a permanência no poder.

Adem Altan/AFP Adem Altan/AFP

Ali perto, na Turquia, Recep Tayyip Erdogan, presidente e líder político dominante há longa data do país, também recebeu um poderoso voto de confiança dos eleitores, em 2014. Uma tentativa de golpe, dois anos depois, se tornou desculpa para atacar milhares de funcionários públicos, militares, jornalistas e acadêmicos de quem suspeita deslealdade.

Orbán, Putin e Erdogan chegaram ao poder em países com um eleitorado dividido entre uma elite urbana cosmopolita, mais liberal –seja em Budapeste, Moscou ou Istambul– e uma base rural menos educada. Essa divisão social é similar àquela que motivou o referendo Brexit na Grã-Bretanha e a ascensão de Donald Trump nos EUA.

A ascensão de Trump representa um desafio ímpar ao sistema norte-americano porque ele se adequa perfeitamente à tendência da democracia iliberal. Conseguiu validação através do apoio popular, mas durante sua carreira inteira tentou passar por cima de regras inconvenientes –como a obrigação de pagar seus fornecedores, por exemplo. Grande parte de sua popularidade se deveu à disposição de romper com as noções existentes de correção política– e o que a princípio parecia revigorante em termos políticos, logo se tornou preocupação quando sugeriu que, como presidente, "ampliaria as leis contra difamação" para poder entrar na justiça civil contra seus críticos na imprensa. Seu discurso para o eleitor norte-americano rezava que "só ele" poderia resolver os problemas do país com a força de sua personalidade e não através de uma reforma nas instituições.

O fato de Trump expressar admiração por Putin e esse retribuir a gentileza não deveria ser surpresa para ninguém. Como o russo, ele parece querer usar o mandato democrático para enfraquecer os freios e contrapesos que caracterizam a democracia liberal genuína. Será um oligarca nos moldes russos: um homem rico que usou sua fortuna para ganhar poder político e certamente o usaria para enriquecer enquanto estivesse no poder. E, também como Putin, conseguiu criar narrativas alternativas que praticamente não foram questionadas por seus defensores.

Damon Winter/ The New York Times Damon Winter/ The New York Times

Porém, o equilíbrio entre liberalismo e democracia também vem mudando em outros países. Os cidadãos da Índia e Japão elegeram líderes nacionalistas que, para muitos, defendem uma forma de identidade mais fechada que a de seus antecessores. Enquanto esses líderes observam os princípios de liberalismo de forma mais escrupulosa que os Orbáns e Erdogans do mundo, seus críticos suspeitam que estejam discretamente fomentando a intolerância entre seus apoiadores.

Até onde vai essa tendência à democracia iliberal? Será que estamos nos encaminhando para um período como o do início do século XX, no qual a política global partiu para o conflito por causa de um nacionalismo fechado e agressivo? O resultado dependerá de vários fatores importantes, principalmente a maneira com que as elites reagirão ao retrocesso que engendraram. Nos EUA e na Europa, elas cometeram bobagens políticas homéricas de uns anos para cá, prejudicando mais as pessoas comuns que a si mesmas. A desregulamentação dos mercados financeiros lançou as bases para a crise do subprime nos EUA, enquanto o euro, mal planejado, contribuiu para a crise da dívida grega e o Espaço Schengen, de fronteiras abertas, dificultou o controle da onda de refugiados no continente. As elites têm que reconhecer seu papel na criação dessas situações.

O mais surpreendente hoje não é que haja populismo, mas sim que ele tenha demorado tanto para se materializar. Agora depende das elites a reparação das instituições prejudicadas e a tentativa de compensar de alguma forma os segmentos de suas sociedades que não se beneficiaram da globalização da mesma forma que os outros.

Acima de tudo é importante ter em mente que reverter a ordem mundial liberal existente hoje provavelmente vai piorar as coisas para todo mundo, incluindo os que ficaram para trás no processo de globalização. Afinal, a grande causa do desemprego no mundo desenvolvido não é a imigração, nem o comércio, mas as mudanças tecnológicas. O setor manufatureiro norte-americano passou por um renascimento nesta última década, mesmo tendo perdido postos de trabalho nas fábricas altamente automatizadas. Precisamos de sistemas melhores para proteger o povo contra a ruptura, mesmo que reconheçamos que ela é inevitável. A alternativa é acabar com o pior dos dois mundos, onde um sistema comercial global fechado, à beira do colapso, gera ainda mais desigualdade.

 Francis Fukuyama Francis Fukuyama

Francis Fukuyama é membro da Universidade Stanford e diretor Mosbacher de seu Centro para a Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito

 

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