Estava numa pequena procissão de helicópteros. Voltávamos da cidade de Mariana, em Minas Gerais, após fazer um reconhecimento aéreo da região. Alguns dias antes, uma tragédia ambiental ocorrera ali e ceifara a vida de 18 pessoas, além de outra desaparecida. Foi apenas uma das consequências, a mais dramática, do rompimento da barragem de Fundão.
Eu estava a serviço da companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores exportadoras de minério de ferro do mundo e uma das duas controladoras -- junto com a australiana BHP -- da Mineradora Samarco, responsável pela barragem que rompera. Enquanto sobrevoávamos, olhava aquele cenário silencioso, monumental e que nos deixava ainda mais conscientes da insignificância humana perante a vastidão de tudo.
Na volta para Belo Horizonte, naquele novembro de 2015, vinha pensando em outra tragédia que acompanhara de perto. Tragédias humanas, quando envolvem perda de vidas, são sempre únicas, independentemente da dimensão. Toda vida é única e, nesse sentido, sua perda, infinita. Era nisso que pensava antes de chegar para avaliarmos os próximos passos em relação àquele grande acidente. Iremos tratar disso mais adiante.
Por ora, eu estava observando as imponentes montanhas das alterosas, naquele fim de tarde, e me lembrava do sofrimento contido de Fernando Cavendish, três anos antes.
Falamos ao telefone poucos minutos após ele ter perdido a mulher, a cunhada e os amigos mais íntimos num desastre de helicóptero no sul da Bahia. Ele só não morreu porque ficou de ir na viagem seguinte para sua casa de praia. Na falta do que dizer, na surpresa daquele momento, cometi a tolice de tentar ver algo positivo na situação. Era meu cacoete de consultor de crise: sempre tem um lado bom. Queria confortá-lo de algum modo, mas soei estúpido. Ele me disse depois que, das conversas que teve naquela noite pavorosa, só se lembrava de meu aloprado telefonema.
Fernando Cavendish foi dono da Delta Construção, um cometa empresarial que alcançou seu auge no final da primeira década do século 21. Trabalhei com ele nas terríveis crises que enfrentou. Crises em todos os campos, de todas as formas, de múltiplas dimensões. Nunca vi um sujeito tão forte. Viramos amigos pra sempre. Quando escrevia este livro, houve um mandado de prisão de Fernando, por conta das acusações de anos antes. Ele estava fora do Brasil e, de onde estava, ainda teve o carinho de mandar um recado:
- Meu amigo. Saudades suas!!!! Estou de volta para a terra natal em breve e gostaria de mandar um abraço. Até porque saudadeé um sentimento que é regado pelo silêncio...
Respondi:
- Saudades suas!!!!
Confesso que senti a tristeza do ser humano que estava indo encontrar seu destino, mas fiquei feliz por ser destinatário de um dos poucos e-mails que deve ter enviado naquele dia difícil.
A Delta sempre foi esfaqueada aqui ou ali no noticiário devido a seu crescimento súbito. O então governador carioca, Sérgio Cabral, estava na crista da onda e a Delta também. Isso atraia a ira dos concorrentes e a empresa era um alvo político valioso para fustigar com notinhas, reportagens, perfis (que servem mais para queimar e expor do que para descrever, no caso de fornecedores do governo). Isso tudo era do jogo.
No desastre que deixou o empreiteiro viúvo, a Delta entrou definitivamente no radar da imprensa. Ao lado do drama pessoal, Cavendish teve que administrar a súbita visibilidade e o embaraço político que a circundava.
O então governador do Rio, Cabral, estava junto com o empresário no dia da tragédia. O governador havia seguido para lá de carona no jatinho de um ícone brasileiro da época, o megainvestidor Eike Batista. Então, somando tudo -- desastre de helicóptero, vítimas fatais, revelação de um fim de semana de confraternização doméstica com um governador de estado (e cliente de Cavendish) -- era um coquetel explosivo.
Mas o pior ainda estava por vir: um bicheiro de Goiás, Carlinhos Cachoeira, foi flagrado em inúmeras gravações feitas a partir de celulares “confiáveis”. Um dos seus constantes interlocutores era um executivo da Delta no estado. A empresa caiu no olho do furacão. Houve CPI e, no meio disso tudo, cobertura diária das TVs, capas de revista e a fornalha de reputações de sempre.
A Delta era um dos alvos principais da CPI. Jáé difícil administrar situações como essa, mas o golpe de misericórdia apareceu na memória de um celular da ex-esposa, então morta.
Alguém muito próximo a ela recolhera o aparelho e o entregara para um adversário da política carioca. Havia ali dentro um vídeo de Fernando comemorando o noivado, anos antes, com a futura falecida, numa mesa de um restaurante chique em Paris. Na mesa, os noivos e o governador carioca. Era uma associação a mais da relação entre o político e o empresário.
Como não fosse pouco, havia fotos de uma comemoração, também em Paris, em que secretários de estado e autoridades confraternizavam com o empresário. Todos com guardanapos na cabeça. Virou a "festa do guardanapo" e varreu o noticiário. Simbolizava a promiscuidade do poder público com uma empresa visada.
Essa agitação toda culminou na ida de Fernando à CPI. Ele obteve o direito de permanecer calado, mas houve negociações prévias para que não fosse submetido a constrangimentos ou exageros desnecessários. Foi, sentou e saiu em menos de dez minutos.
Naqueles meses sombrios, tudo podia acontecer. Certa vez, tomamos a iniciativa de procurar a CPI para entregar os contratos da empresa. Era uma forma de nos anteciparmos e demonstrarmos que queríamos colaborar para o esclarecimento dos fatos.
Para frisar esse aspecto, colocamos aquelas folhas numa caixa enorme com a logomarca da Delta. O presidente da companhia circulou com aquele cubo insólito pelo Congresso e ela se tornou no grande ícone da cobertura daquele dia: a caixa da Delta.
Às vezes, factoides ou produção de ações simbólicas podem hipnotizar a mídia. Foi o que aconteceu. A simples entrega dos documentos do protocolo talvez não criasse aquele ápice, aquele apelo dramático. Uma caixa de papelão de menos de dez reais ajudou um pouco aquela alma ferida naquele dia.
Alguns chamam isso de manipulação. Eu acho que é uma forma de linguagem. Quando se entende o idioma da mídia, pode-se conversar com ela através da produção de fatos simbólicos que só ela entende. Às vezes, isso fala mais do que tudo o mais.
Com o passar do tempo, Fernando foi forçado a vender sua ex-promissora empresa. Abriu mão de seu sonho, mas aguentou diversos sofrimentos, sem ressentimentos, sem aparentes traumas. Fernando era forte.
Não conheci Eike Batista quando ainda resplandecia, a pino, o sol da logomarca de seu grupo X. Em seu auge, Eike figurara na lista da revista americana “Forbes” como a sexta maior fortuna do mundo, “a caminho do primeiro lugar”, conforme alardeava.
Seu conglomerado era formado por empresas de exploração de gás e petróleo, mineração, estaleiros, terminais portuários, hotelaria e uma longa lista de setores. Era o símbolo do milagre econômico lulista. Como na época em que fui jornalista da madrugada na televisão e só entrava no ar caso alguma tragédia dramática acontecesse antes do telejornal matinal, só tive o privilégio de conhecer Eike Batista quando o império daquele gigante já estava em sua hora crepuscular.
O Eike que conheci era um general cansado de tantos reveses e que queria reencontrar a sorte na batalha. No auge, Eike Batista triunfara com sua poderosa capacidade de convencer o mercado e o sistema de que suas múltiplas apostas empresariais estavam fadadas ao sucesso
Fui levado a ele por um italiano simpaticíssimo de suas relações, profissional do ramo capilar. Esse amigo fez o meio de campo e, no dia certo, adentrei os domínios de sua icônica casa no Rio de Janeiro e quartel-general de um momento exuberante de nossa economia, no qual ele seria capaz de praticamente triunfar em tudo.
A casa era surpreendentemente sem qualquer traço demasiado de luxo ou afetação. Com meu já razoavelmente desenvolvido olho de empregado doméstico de bilionários, eu chamaria de austera até.
Deslumbrante mesmo era a vista espetacular do Cristo Redentor, sob o qual a mansão estava privilegiadamente alojada. No passado, a casa de Eike virara notícia por conta dos hábitos excêntricos do proprietário: jazia estacionado na sala um chamativo carro de alta velocidade. No mundo de Eike, a admiração pela poética engenharia das máquinas era patente. Eu vi com meus olhos uma enorme turbina de uma lancha de competição abaixo do caracol da escada. Coisas de Eike.
Não muito tempo depois, o grande Eike me convidou para ir com ele até a capital da Colômbia, a bordo de seu Gulfstream, um castelo dos ares, ainda em uso após seu império começar a fenecer. Um amigo meu, curioso, na época me perguntou como era a vida de Eike depois do baque. Tentei explicar como pude:
- Olha, o Eike na miséria é muito parecido comigo cheio da nota. Muito parecido mesmo…
O voo durou mais de cinco horas. Fomos conversando e voltamos no mesmo conchavo. Eike procurava entender onde toda a confusão política de sempre iria dar. E falava de seus novos empreendimentos na área de tecnologia e também de uma espécie de Viagra sublingual, na forma de uma fina lâmina de gel que se dissolvia.
Havia um calo na paciência de Eike naqueles dias. Ele não sabia ainda como lidar com uma biografia sobre ele. Seus ex-executivos, muitos deles respaldados pelas declarações sob anonimato, estavam escancarando lembranças e descascando o ex-chefe. Eike achava que a história dele não cabia em nenhum livro. Tentei mostrar o lado positivo:
- Toda biografia é a favor.
- Você acha mesmo?
- Claro, só é biografado quem se destacou muito no que fez. Hitler não era um genocida. Era o genocida. Pablo Escobar não era um traficante. Era o traficante. Então, se vão falar de você, bem ou mal, só vão falar porque você foi o cara.
Era o que eu achava mesmo. Uma coisinha aqui ou ali negativa podia escapar. Mas, na essência, o que leva uma pessoa a ser merecedora de uma biografia é a magnitude de sua aventura humana.
Naquela viagem, participei de uma negociação que me mostrou que Eike era uma fera ferida, mas uma fera, acima de tudo. Ele adquirira anos antes o controle de uma mina de carvão na Colômbia. Com a crise do grupo X, vira-se na contingência de assinar um contrato, vendendo o ativo por um preço bem abaixo do que imaginava valer.
Pois bem: o investidor indiano, que havia comprado aquele tesouro, estava convicto de que Eike precisava queimar patrimônio -- e queria tirar algum tipo de vantagem adicional da situação. Eike, por sua vez, queria mesmo era recomprar o que havia vendido. Acompanhei as mais de cinco horas da árida negociação em inglês. Eike facultou-me a presença como uma deferência especial.
Os dois machosalfa postavam-se, ali, fazendo a dança do acasalamento. No final, Eike desfere um escracho elegante e contundente, assim como que sem querer: oferece na saída alguns de seus géis sublinguais tipo Viagra para o oponente, o formal e cerimonioso indiano:
-- Você precisa provar. Tome…
E Eike derramou envelopinhos do seu Viagra na mão do, até aquela altura, viril negociador. Nunca vi alguém ser questionado em sua potência com tanta simpatia. Risos amarelos se seguiram do outro lado. Eike, definitivamente, tinha um abrasivo brilho solar.
Quantas vezes, ao longo de tantos anos, não vi a mesma fisionomia arregalada de um vencedor acuado? Perdi a conta. Lembro-me do dia exato em que conheci o dono da empreiteira GDK, lá pelos idos do escândalo do mensalão. Sua empresa entrara naquilo porque oferecera uma Land Rover de presente para um prócer do Partido dos Trabalhadores. Como tinha interesses diretos na Petrobras, a GDK estava na linha de tiro. Seu dono, que sempre fora bonachão e cheio de alegria de viver, estava atordoado, olhos arregalados. Passamos por aquilo juntos, uma longa e desgastante jornada.
Quando conheci o então presidente do HSBC no Brasil, eu acabara de ser contratado pelo banco para auxiliar na condução do chamado Swiss Leaks. Um ex-executivo do banco na Europa havia compartilhado com um consórcio internacional de jornalistas os arquivos da instituição na Suíça e os correntistas estavam expostos na mídia. Muitos deles não tinham declarado aqueles créditos em seus respectivos países. No Brasil, essa lista serviu de base para a CPI do HSBC. Há poucas coisas piores para qualquer marca do que batizar o nome de uma investigação parlamentar.
O presidente do HSBC no Brasil nada tinha a ver com nada: ele não tinha acesso a nenhuma base de dados do banco em outro pais, como é obvio que não poderia ter. Logo aqueles nomes todos que surgiram eram tão surpreendentes para ele quanto para qualquer leitor. Você acha que o HSBC da Turquia tem acesso à lista de correntistas do banco na Suécia e assim por diante? Claro que não. E o HSBC Brasil nada tinha a ver com a operação do HSBC Suíça, Tinham de comum apenas o fato de compartilharem a mesma marca. Mas eram instituições totalmente diferentes.
O que isso queria dizer? Que a convocação do presidente do HSBC no Brasil para a CPI fazia todo o sentido político, mas não poderia gerar nenhuma consequência prática. Das operações de fora do país, ele não podia falar nada por desconhecimento. Das operações de dentro do pais, ele também não podia falar nada, por conta do sigilo bancário.
Coube a mim esclarecer essa situação. Uma vez, falei com o relator da CPI sobre esse nó, destacando que não havia má vontade do presidente do banco. Era absoluta falta de condições de colaborar. O senador Ricardo Ferraço sabia perfeitamente bem disso e conduziu a inquirição do presidente do banco com profissionalismo e equilíbrio. Todos os integrantes da comissão adotaram uma postura que honra as melhores tradições do espírito público.
Nessas horas, o tamanho da dor não tem a ver necessariamente com o tamanho da ferida. Uma das preocupações do presidente do banco, um profissional de mercado, era “manchar” seu Google. Pode parecer café pequeno quando comparado com os problemas enfrentados por outros nestas memórias, mas para ele era motivo mais do que suficiente de preocupação.
Aliás, numa das reuniões preparatórias para o depoimento na CPI, na sede da empresa CDN em São Paulo, o consultor de crises chutou o balde. É que os advogados, muito cautelosos, estavam antecipando cenários teóricos do que poderia acontecer na CPI: se alguém gritar, se xingá-lo disso ou daquilo, se chamá-lo de mentiroso, se ameaçar com alguma medida radical…
Como exercício teórico, era uma contribuição importante. Mas o presidente, que era muito cioso e não tão afeito ao ambiente da política, foi ficando tenso e estressado, imaginando tudo o que podia acontecer. Nessas horas, uma das funções de um consultor de crises é dar a noção mais exata possível do que é provável. Muitas vezes, isso significa furar o balão da paranoia:
- Olha, presidente, o senhor não está indo lá como investigado nem como um correntista que não tem como justificar sua conta. Então, no limite, se encherem o seu saco, o senhor pede demissão ali na hora, começa a falar mal do banco e pede licença a todos porque, desse momento em diante, o senhor não tem mais nada a ver com o objeto da CPI.
Era importante dar um balizamento para aquele profissional. Essa referência extrema deu segurança a ele. O consultor de crises não é um agourento. Muitas vezes, é o que espanta maus agouros para tranquilizar quem precisa entrar no ringue.
Numa daquelas circunstâncias curiosas que cruzaram meu caminho, certa vez fui contratado para ser uma espécie de produto de conveniência bancária.
Ivo Lodo, dono do banco BVA, foi um dos caras mais agradáveis e corretos que conheci neste mundo. Quando me chamou, pensei que fosse para servir de “bombeiro” dele mesmo, já que o BVA estava sempre sendo alvo de sussurros na imprensa e no mercado de que seria a bola da vez. Acabou sendo, mas bem depois.
Lodo me chamou para que, além de ajudá-lo com algumas questões de imagem do banco, eu fosse uma espécie de “diferencial” da instituição para clientes especiais. Ou seja, ia ganhar para ser apresentado a alguns dos grandes correntistas. Da mesma maneira que algumas seguradoras oferecem serviço de guincho e de chaveiro, aquele banco oferecia a possibilidade de um atendimento pontual de um consultor de crises para clientes especiais. Achava o máximo.
Uma vez, Lodo me pediu que fosse atender um dos maiores aplicadores do BVA na época. Era um benefício do cartão especial do banco, que provisionava consultores de crises para alguns de sua carteira.
O correntista estava com um problema de imprensa: o jornal “Folha de S.Paulo” havia enviado questionários a diversas empresas perguntando se elas haviam ou não contratado os serviços do ex-ministro Antonio Palocci, antes de ele se tornar uma figura proeminente do governo. Andamos pelo fio da navalha naquele caso.
Uma empresa daquele grupo empresarial tinha contratado, sim, a consultoria do ex-ministro, disse-me o controlador e correntista ilustre, a quem só atendi naquela ocasião. Mas não era a empresa específica que o jornal indagava. “A empresa tal contratou o ex-ministro?”. Respondemos: “Não”, secamente.
Era absolutamente verdade, mas, se o jornal fosse mais direto em relação à empresa correta ou fosse abrangente na pergunta para questionar se “alguma empresa” havia contratado, iríamos responder que sim, é claro.
O que esse caso mostra é que, muitas vezes, os próprios alvos de desgaste na imprensa cavam sua sepultura. Muitas vezes, acontece de um jornalista “jogar um verde”, perguntar ou afirmar algo de que não tem prova e obtê-la justamente com a admissão antecipada do questionado. Era sempre muito atento a essas minúcias.
Nas minhas palestras por aí, para times de comunicação muitas vezes acuados pelo desgaste da relação com jornalistas sempre críticos, costumava confortá-los com uma comparação positiva.
Da mesma forma que ninguém hoje em dia contesta a lei da gravidade, no Egito antigo ninguém contestava que o faraó era um deus vivo. A premissa fundamental daquela sociedade é que esse deus vivo, depois de morto, voltaria para se reconhecer em sua máscara mortuária, para assim continuar vivo pela eternidade. A imagem, assim, era um fio condutor para a eternidade do deus/faraó.
Nesse sentido, as pirâmides eram muito mais do que uma construção física: eram um veículo de comunicação para preservar uma imagem sagrada e transmiti-la através da eternidade, a imagem do faraó.
Assim, aqueles sacerdotes que aplicavam as gazes sobre a múmia não eram manipuladores nem criadores de mitos. Spin doctors nas catacumbas? Creio que não. Faziam um trabalho não profano, mas espiritual, ao ajudar a preservar a imagem daqueles a que serviam. De outras formas, com outros nomes e rituais, acho que fazemos o mesmo até hoje.
Noutra comparação, acho que os chefes das tribos sempre decidiram o destino de seus liderados e a mobilização para a guerra. Mas eles contavam também com os pajés, consultores que, de alguma forma, dialogando com o invisível auxiliavam os chefes sobre qual dia seria o mais abençoado para começar a batalha. Praticavam em suas tendas o que ainda se faz nas tribos corporativas de hoje: o ritual sempre misterioso das decisões.
Aquele dia em Mariana tinha sido intenso.
Tinha ido acompanhar a equipe jurídica e de comunicação da Vale num dia especialmente importante. O presidente da empresa, Murilo Ferreira, e o presidente da BHP, Andrew Mackenzie, estavam indo pessoalmente ao lugar da tragédia. Queriam mostrar o comprometimento dos dois acionistas da mineradora Samarco, sinalizando que iriam assumir as responsabilidades cabíveis para superar o episódio. Acompanhei a preparação das falas de cada um. Também estava no local da coletiva e, depois, no sobrevoo em torno da barragem que havia cedido.
A grande questão é que a Samarco possuía uma autonomia gerencial quase que absoluta. Por regras rígidas de governança, nem a Vale nem a BHP podiam se envolver diretamente no dia a dia da companhia. A Samarco era reconhecida mundialmente pela excelência de seu quadro técnico e por suas práticas de gestão. Mas…
Quando o desastre aconteceu, a Samarco era uma marca frágil demais para proteger as gigantes que a controlavam, Vale e BHP. As duas eram muito mais fonte de curiosidade e, portanto, de notícia. Não havia sido um problema da Vale, mas, na mídia, muitas vezes, era como se fosse.
Nessas horas, é preciso ter uma capacidade intensa de lidar com adversidades que surgem de repente. Os dois presidentes, ali, queriam e poderiam facilmente ter anunciado um fundo de R$ 1 bilhão para socorro das vítimas. Seria um primeiro compromisso, sem prejuízo nenhum de futuros aportes. No dia seguinte, esse seria o fato mais forte.
O problema é que nem sempre a comunicação em crises se pauta pelo mais lógico, mas pelo mais adequado. Assistentes da área jurídica entenderam que o anúncio daquele fundo poderia envenenar a relação com as autoridades que estavam conduzindo as investigações. O que era melhor: ir para uma coletiva sem um fato forte para anunciar ou anunciá-lo e criar um problema a mais entre os tantos existentes?
Aquela entrevista de dois líderes empresariais de peso teve de se circunscrever a manifestações mais vagas, tendo em conta a necessidade de criar uma base de confiança e não contaminar já desde o início um mínimo de interlocução com os operadores do Direito. Quem assistisse à entrevista do ponto de vista da imprensa veria uma sessão meio sem sal. Não houve nenhum anúncio de impacto, nenhuma decisão de grande repercussão.
Olhando, porém, a partir do jogo como um todo, a cautela retórica era a melhor coisa a fazer.
Crises de comunicação são ambíguas e, muitas vezes, não podem ser medidas por sua superfície: decisões teoricamente acertadas se mostram precipitadas e insustentáveis tempos depois. Certas prudências, sem muita eletricidade aparente, podem não produzir o frenesi nas audiências ou nas manchetes, mas podem fazer parte de um jogo de pôquer que só quem está dentro sabe o porquê. Era o caso, naquele dia. Acho que os dois líderes fizeram o melhor que podiam.
Poucos casos em que atuei evidenciaram tanto, como aquele, as contradições entre o que as recomendações teóricas diziam e o que as necessidades práticas impunham. A direção da Vale foi pressionada a tomar a “iniciativa” e teve que medir escrupulosamente suas ações, decidindo pelo mais difícil nessas horas: sofrer e apanhar calados, quando havia muita a coisa a fazer e a dizer.
No fim de 2015, a empresa estava sob forte pressão de investidores para que se defendesse, para que tomasse a iniciativa na comunicação. Mas o mar de lama que saíra da barragem de Fundão ainda vagava por 600 quilômetros do rio Doce e se dispersava no oceano. Já imaginou o que é uma mancha de quilômetros de lama se deslocando ao longo de inúmeras cidades em dois estados, atingindo a vida de centenas de milhares de pessoas ao longo do caminho e provocando crises de todo tipo, além de ser um espetáculo de imagens impactante?
A “lama” da Samarco era notícia o tempo todo. E muitos achavam que a Vale precisava fazer alguma coisa no meio daquilo.
Nessas horas, o time interno de comunicação sofre uma pressão extra. Eles lutaram bravamente. Aquele era um problema para o qual não havia mágicas. Qualquer factoide e a situação poderia ficar ainda pior. Meu papel, nos telefonemas diários e longos ou nas reuniões presenciais, era o de reforçar o diagnóstico de que o tempo iria, literalmente, dissipar aquilo tudo.
Lembro-me de que certa vez fui chamado a fazer uma apresentação para o comando da companhia. Havia quem imaginasse que a empresa deveria fazer um grande investimento de publicidade para se recolocar diante do incidente. Achei que não era a melhor opção. Como fazer propaganda se não havia ainda um plano claro para remediar os acontecimentos?
Então, abstratamente, vendo-se de fora, fazer “alguma coisa” era o apropriado. De dentro, poderia agravar um quadro já delicado. Assim, a companhia teve a firmeza de continuar sofrendo calada, sentindo a alma ferida e aguardando a hora de poder reagir.
(A propósito, o caso era impactante, mas ao mesmo tempo sem uma imagem humana comoventemente dramática. Explico: no drama dos refugiados sírios, a imagem de um menino morto na praia impactava o mundo sintetizando o sofrimento daqueles que tentavam a travessia para a Europa. Não houve uma imagem assim no caso Samarco. Havia a devastação impressionante do turbilhão de lama, o que conferia ao caso um traço mais ambiental do que especificamente humano. Um morto, menino, comovera mais o mundo do que o jorro de lama que ceifara 19 vidas. A matemática das crises nãoé exata. Lidar com isso é sempre um desafio para quem as enfrenta).
Planos de crise não são ciência. Estão mais para a imprevisibilidade da vida. Noutro ponto da crise da Samarco, o governo federal estava prestes a assinar um acordo que comprometia as empresas, os acionistas, as instâncias oficiais e os governos de Minas Gerais e Espirito Santo em torno de um plano de recuperação do rio Doce. Era um marco importante para a solução da crise. Bilhões e bilhões de reais ficaram orçados para investimentos nos anos seguintes no esforço de salvação do rio e de melhoria das comunidades ao longo da calha.
Para as empresas, o custo era elevado, mas o importante era virar a página. Eis que, a certa altura, o governo federal entendeu que era preciso fazer alguma publicidade às vésperas do acordo, para abrir um espaço de boa vontade para a iniciativa. Vontades de governos, ainda mais naquelas circunstâncias, são ordens. A Samarco fez uma campanha institucional em rádios, jornais, revistas e TVs. Foi questionada pela iniciativa: propaganda? Agora?
De fora, essa decisão poderia render questionamentos teóricos. De dentro, era um passo importante para a superação do problema. Se houve momentos em que havia pressão para que as empresas falassem e elas calaram por avaliarem outros aspectos estratégicos, houve também momentos em que elas tiveram de se expor, mesmo entendendo que não era o mais conveniente, mas, mais uma vez, respeitando necessidades e contingências da situação.
Por tudo isso, as escolhas durante crises podem não parecer as mais sensatas para quem as analisa como observador externo. Só quem teve a alma ferida sabe como é.